Projeções de instituições privadas e oficiais falam em saldo
positivo para o país. Mas atrasos, comunidades afetadas e desperdício reduzem
aprovação
por Hylda Cavalcanti / http://www.redebrasilatual.com.br/
Falta pouco para a bola começar a rolar. Às 17h do próximo
12 de junho, quando soar o apito e abrirem-se as cortinas de Brasil x Croácia,
o país estará apreensivo, como em todo jogo da seleção em Copa do Mundo. Desta
vez, porém, depois de 31 dias, quando tudo acabar, as histórias das 12 cidades
brasileiras que receberão os jogos da competição, e as de outras em seu
entorno, poderão nunca mais ser as mesmas. O governo rebate críticas à
organização do evento e sustenta que haverá legado à população. A oposição, por
motivos óbvios, desconfia, mas há também preocupação por parte de movimentos
sociais.
No bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo, onde fica o
estádio que será o palco da abertura, já se notam mudanças. A região, que tem
um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital paulista, dá
sinais de renovação, sobretudo por conta de uma série de obras viárias e
intervenções privadas e públicas. A decisão de levar para lá uma das sedes do
Mundial – da qual participaram um presidente da República do PT, um governador
do PSDB e um prefeito então do DEM – selou de vez expectativas de moradores e
investidores.
O crescimento do poder de compra da numerosa população do
bairro chama a atenção dos empreendedores há alguns anos. O Shopping Metrô
Itaquera cresce desde 2007, quando foi inaugurado. Há 40 lojas em lista de
espera por um lugar. E comemora a cada ano faturamento sempre acima de dois
dígitos mais gordo. “Nunca vi fluxo de gente tão grande quanto aqui”, diz o
diretor de marketing da Handbook Fashion (HbF), Felix Mifune, que possui loja
no local desde 2011.
Mas de acordo com o secretário adjunto da Secretaria
Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo, José
Alexandre Sanches, o shopping não é o principal indicador das transformações.
Ele cita o trecho leste do Rodoanel Mario Covas, obras de infraestrutura da
Operação Urbana Rio Verde-Jacu, melhorias no transporte coletivo e iniciativas
de ampliação dos serviços, como o Polo Institucional Itaquera, que inclui a
Faculdade de Tecnologia (Fatec), erguida com recursos da União, do estado e do
município.
Se a zona leste de São Paulo fosse um município, Itaquera,
com 230 mil habitantes, seria o seu centro geográfico. E se a perspectiva de
que a população possa encontrar mais perto de casa empregos e os serviços se
confirmar, já seria um grande trunfo para a engarrafada cidade de São Paulo,
que demanda a redução urgente do volume de deslocamentos das pessoas para o
centro, a 20 quilômetros dali, e entre extremos.
Reação em cadeia
Segundo os organizadores, essas promessas de efeito Copa se
estendem a todas as cidades-sede e seus entornos. Um estudo feito pela empresa
de consultoria Ernst & Young e a Fundação Getúlio Vargas, calcula que pelo
menos uma dezena de setores econômicos desfrutarão impactos positivos diretos,
entre eles construção civil, serviços prestados a empresas, serviços
imobiliários, produção e comércio de alimentos e bebidas, serviços de
informação e de hotelaria. O trabalho projeta uma injeção de R$ 142 bilhões
adicionais na economia brasileira ao longo da temporada de preparação, de 2010
e 2014, e a criação de 3,6 milhões de empregos, proporcionando renda adicional
de R$ 63 bilhões e acréscimo de R$ 18 bilhões na arrecadação de impostos – tudo
decorrente dos impactos do evento, sempre segundo o estudo.
O Ministério do Esporte, em balanço divulgado no início do
ano, tendo como referência o mês de setembro, informa que os investimentos
públicos e privados já alcançam R$ 25,6 bilhões. E solta números. Desse total,
R$ 8 bilhões estão sendo aplicados em obras de mobilidade urbana; R$ 8 bilhões
em construção e reformas de estádios; R$ 6,3 bilhões em aeroportos; R$ 1,9
bilhão em segurança; R$ 600 milhões em portos; R$ 400 milhões em
telecomunicações; R$ 200 milhões em infraestrutura turística e R$ 200 milhões
em instalações complementares.
No fechamento das contas, o gasto total deve chegar a R$ 30
bilhões, em despesas de municípios, estados, da União e do setor privado. O
ministro Aldo Rebelo disse em entrevista ao portal da CUT, em março, que para
cada R$ 1 de gasto público na Copa há outros R$ 3,6 em investimentos privados.
Rebelo desaprova argumentos dos setores contrários à
realização da Copa, de que o país precisa de mais investimentos em saúde e
educação, em vez de estádios e obras. “Os recursos da União em educação quase
triplicaram. Os destinos à saúde mais que dobraram”, afirma, ao acrescentar que
entre 2007 e 2013 a educação recebeu R$ 311 bilhões e a saúde, R$ 447 bilhões.
E afirma que a preocupação com desperdícios e superfaturamentos existe desde
que se decidiu que a Copa seria no Brasil. “O presidente Lula pediu à
Controladoria-Geral da União que o dinheiro aplicado fosse o mais fiscalizado
do país. O Tribunal de Contas da União destinou um ministro para cuidar
exclusivamente da Copa”, observa.
Perspectivas
Os serviços em torno do turismo estão entre os que mais
devem crescer – em número de ocupações e em programas de qualificação. A
Embratur estima uma movimentação de 3 milhões de turistas brasileiros durante o
Mundial, além de 600 mil estrangeiros. “Se olharmos bem, percebemos
transformações tanto no cidadão que estava desempregado e fazia bicos na venda
de sulanca em Toritama (interior de Pernambuco) como no ex-presidiário que
encontrou uma oportunidade de voltar à vida laboral na construção do estádio
Mané Garrincha”, destacou Roberto Vilar, doutor em políticas sociais pela
Universidade de Brasília (UnB) e economista da Companhia de Planejamento do
Distrito Federal (Codeplan).
“Posso dizer que a Copa salvou minha vida”, diz o pedreiro
Hugo Aleixo, morador de Samambaia, no Distrito Federal, que trabalhou nas obras
do Mané Garrincha. Aleixo tinha acabado de sair da prisão, onde cumpriu pena em
regime fechado durante mais de quatro anos por tentativa de homicídio e lesão
corporal. Ele foi indicado a trabalhar na construção do estádio por meio do
programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Somente no
Mané Garrincha, 640 egressos do sistema prisional foram incluídos no programa.
A técnica em secretariado Inácia Mendonça também comemora a
realização da Copa. Ela trabalhava num escritório de contabilidade em Recife
até ficar desempregada, em 2010. No ano passado, com o crescimento das
confecções de camisetas e bandeiras pelas pequenas fábricas de Toritama,
conseguiu vaga na área administrativa. Toritama, com 37 mil habitantes, é sua
cidade natal. “Meu emprego tinha previsão de ser temporário, até o começo de
janeiro. Mas terminei sendo contratada e vou ficar.”
Segundo Prudenciano Gomes, presidente da Associação de
Lojistas do Parque das Feiras, em Toritama, as indústrias de confecção
existentes na região devem aumentar o número de funcionários em 6% de março até
julho. No trecho do município e adjacências, isso corresponde a 12 mil pessoas
em novas vagas, conforme cálculos do governo estadual. “Estamos localizados na
rota onde vão passar os turistas a caminho dos jogos e também no percurso entre
os jogos e pontos históricos do interior, como Fazenda Nova” – onde fica o
maior teatro ao ar livre do mundo. “Todos estão se preparando, fábricas e
lojas, restaurantes, pontos de artesanato e alimentação”, afirma Gomes.
Tempo de reciclar
A camareira Gerusa Silva, que trabalha há sete anos em hotel
na Paraíba, foi se reforçar. Funcionária da rede Accor, em João Pessoa, ela
iniciou em agosto um curso de inglês e conta que já se vira bem. “Consigo
interagir com os hóspedes e entender o que pedem. Apesar de a cidade não sediar
jogos da Copa, nossos gerentes têm feito várias reuniões e passado orientações
sobre o aumento do número de hóspedes. Somos o país da Copa e não podemos fazer
feio”, enfatiza.
No Paraná, o maître executivo João Barbosa, com 24 anos de
profissão, admite que mesmo se considerando experiente fez cursos de reciclagem
em Curitiba. “A receita para atender bem é gostar do que se faz e tentar
melhorar sempre”, ressalta ele, que hoje trabalha na rede de hotéis Bourbon, em
Londrina. Estudo do Ministério do Turismo calcula que os visitantes, durante
Copas do Mundo, gastam em média R$ 11.400 nos países que sediam esses eventos.
Suas viagens costumam durar de 15 a 20 dias e vão além das cidades-sede. Entre
os jogos da Copa das Confederações, em junho passado, até o final do ano, 740
mil turistas estrangeiros visitaram 132 cidades brasileiras.
A rede hoteleira teve expansão de 22 mil unidades entre 2010
e 2013. O setor não teme haver um déficit de hospedagem – mesmo havendo de
hotéis. Tem crescido a procura por acomodações alternativas, como hostels,
imóveis alugados e casas de família. De acordo com o Ministério do Turismo, já
são 4.200 os imóveis oferecidos para aluguel a turistas nas 12 cidades-sede,
não incluídos outros municípios.
Dois grandes gargalos que perturbavam governo e investidores
– abastecimento de energia e capacidade dos aeroportos – também não preocupam
as autoridades. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) informou ter
concluídas 77 obras de reforço nas redes elétricas nas cidades sede da Copa e
que estão em fase de conclusão outros 33 projetos. No setor aéreo, a Agência
Nacional de Aviação Civil (Anac) autorizou em janeiro 1.973 novos voos no
período da Copa. A operação da Anac envolve 25 aeroportos, 12 ficam nas
cidades-sede e 13 a até 200 quilômetros delas. Há de se torcer para que a
infraestrutura acompanhe esse incremento de voos.
“A Copa se paga, dá lucro e gera riquezas que ajudarão a
resolver problemas seculares e estruturais da sociedade brasileira. Deixa como
utilidade pública aeroportos, portos, viadutos, vias de trânsito, melhoria da
segurança e novidades em telecomunicação”, defende o ministro Aldo Rebelo.
Contradições em campo
Pesquisas mais recentes, entretanto, apontam queda na taxa
de aprovação da realização da Copa do Mundo no Brasil. No final de fevereiro, o
instituto Datafolha detectou que 52% dos entrevistados se diziam favoráveis,
ante 38% contrários. Na primeira pesquisa, em 2008, o placar era de 79% a 10%.
O Ibope, no mesmo mês, observou que 58% defendem o evento no país e 38%, não. O
instituto verificou ainda que o percentual dos que preveem que a Copa trará
mais benefícios que prejuízos ao país é apertado: 43% a 40%.
Vistos como flancos por onde podem prosperar críticas ao
governo na presidenta Dilma Rousseff, os aspectos negativos da competição devem
ser explorados, à esquerda e à direita; faz parte de um outro jogo, em que as
chances de algum oponente superar Dilma nas eleições de outubro andam escassas,
segundo as mesmas pesquisas. Mas em detrimento do peso político do tema, há
críticas consistentes de quem não vai deixar de fazê-las só porque é ano
eleitoral. O site Contas Abertas, dedicado a observar e analisar gastos
públicos, apontou logo na primeira parte dos preparativos cerca de R$ 600
milhões em gastos considerados “excessivos”.
Na conta do desgaste político, entram ainda mobilizações de
comunidades e coletivos que se organizaram em torno de bandeiras concretas,
como a revolta contra a remoção de famílias ou o veto ao trabalho a alguns
atores econômicos nos espaços controlados pela Federação Internacional de
Futebol (Fifa), organizadora da Copa. Muitas dessas bandeiras foram
acompanhadas de movimentos tanto de contestação como de elaboração de propostas
alternativas de soluções urbanas.
“Trata-se de uma Copa que vai render lucros imensos para a
Fifa, mas vai deixar recursos a serem pagos aos bancos estatais”, afirmou o
especialista em contas públicas Arnaldo Nóbrega. Para ele, no caso específico
dos estádios, dos R$ 8 bilhões usados para a construção e reforma, tirando R$
820 milhões que saem do caixa da iniciativa privada, outros R$ 4 bilhões são
operações de crédito e portanto deverão retornar para instituições como BNDES e
Caixa Econômica Federal, principais financiadoras dos governos estaduais,
empreiteiras e clubes que herdarão estádios construídos e reformados.
O ministro Aldo Rebelo enfatiza que a Copa é um “evento
privado”. Segundo ele, as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
de mobilidade urbana, já previstas antes da competição, “não serão levadas” por
nenhuma seleção de futebol. “Nenhum viaduto, nem universidades, nem
aeroportos”, brinca. O ministro diz ainda que os estádios são arenas multiuso,
que se destinam a jogos, feiras, congressos e eventos, e, numa comparação
questionável, cita Wembley, maior estádio da Inglaterra, que recebe oito jogos
por ano e sobrevive de eventos. “Na Arena de Natal, o espaço destinado a lojas
é negociado pelo melhor preço da cidade.” De acordo com Rebelo, esse destino
vale para todas as arenas, inclusive as de Cuiabá, Brasília e Manaus.
Em relação aos cuidados com o mundo do trabalho, a diretora
do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Laís
Abramo, alerta que existem riscos embutidos na realização de um evento deste
porte, como aumento da ocorrência de práticas inaceitáveis, a exemplo do
trabalho infantil, forçado, tráfico de pessoas e aumento dos casos de
exploração sexual de crianças e adolescentes. Laís acentua que é preciso
fiscalização rígida: “Como diminuir os riscos e aumentar as potencialidades?
Dialogando, somando esforços, integrando ações e iniciativas”.
O jogo já começou, com muitas dúvidas – não sobre a
capacidade de Neymar e companhia, mas dos gestores. Mais do que o time dentro
de campo, a torcida é para que a Copa realmente tenha os brasileiros como
vencedores. O tempo mostrará.
Remoções e reações
Há três anos, organizações populares das 12 cidades-sede vêm
denunciando remoções de comunidades, questionando obras e reivindicando o direito
ao trabalho em áreas sujeitas a exigências da Fifa. Protestos, abaixo-assinados
e ações judiciais trouxeram algumas vitórias que, talvez, sejam o principal
legado que a Copa deixará a essa população organizada. A agência Pública
registrou essas histórias, cuja íntegra pode ser lida neste atalho:
http://bit.ly/publica_copa
Em Natal, um projeto alternativo de tráfego foi revisto após
pressão popular e evitou despejos. “O que eu aprendi? Aprendi que temos
direitos”, resume a professora de Geografia Eloísa Varela, que morava – e ainda
mora – ao longo da Avenida Capitão-Mor Gouveia, zona oeste da capital potiguar.
Em agosto de 2011, ela recebeu uma notificação da prefeitura avisando que seria
removida da casa onde vive há 21 anos.“De início a pessoa se aperreia”, lembra.
Cerca de 250 famílias residentes ao longo da via que liga o aeroporto ao
estádio Arena das Dunas receberam o mesmo papel. “Tinha gente que vivia lá há
40 anos.”
Eloísa começou a participar dos encontros do Comitê Popular
da Copa, que reuniam moradores, arquitetos, urbanistas, advogados.“Estudando o
projeto, começamos a ver que a obra em si estava irregular: não atendia aos
parâmetros do plano diretor, não houve audiência pública, licença ambiental.”
Criaram a Associação Potiguar dos Atingidos pela Copa (Apac), a princípio para
tocar ações judiciais, e depois foi organizado um projeto alternativo.
Depois de realizar seminários e workshops para propor um
novo traçado, com a ajuda de arquitetos e urbanistas, o grupo chegou a um
modelo em que vias paralelas à avenida também seriam utilizadas para o
deslocamento, sem necessidade de alargá-la. O projeto foi entregue à
prefeitura, em 2012, mas em ano de eleição seria difícil sair do papel. Os
moradores passaram a pressionar os candidatos. Ao tomar posse, o eleito
prefeito Carlos Eduardo Alves (PDT) revogou os decretos de desapropriação.
“Nenhuma remoção foi realizada”, comemora Eloísa. “O cidadão tem o direito de
discutir a cidade.”
Em Salvador, em 5 de abril de 2013 cerca de 100 baianas
paramentadas tomaram a entrada do estádio Fonte Nova, durante a cerimônia de
inauguração, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, do governador Jaques
Wagner e do prefeito ACM Neto. “Levamos tabuleiro, distribuímos acarajé de
graça, 200 camisas do Vitória e do Bahia, e outras falando ‘A Fifa não quer
acarajé na Copa’”, conta Rita Santos, presidenta da Associação das Baianas de
Acarajé.
Normas da Fifa impediam que as baianas vendessem o quitute.
Elas levaram um abaixo-assinado com mais de 17 mil adesões. A carioca Rita
Santos, mãe do goleiro Felipe, do Flamengo, gosta de contar a história que
terminou com a vitória das baianas. “A Dona Norma, a Solange, a Meirejane
trabalham em todos os jogos. A Dona Norma trabalha lá há mais de 50 anos”,
explica Rita. “Por causa dessas três eu comecei a brigar.” As baianas acabaram
autorizadas a trabalhar na arena na Copa das Confederações.
Outra tradição sob ameaça, a tradicional Feira de Artesanato
do Mineirinho, em Belo Horizonte, só foi reaberta após uma série de protestos.
Entre 2011 e abril de 2013, a feira de todas as quintas-feiras e domingos foi
fechada para dar lugar às estruturas temporárias da Copa das Confederações.
Rumores de que esse fechamento seria permanente ameaçavam expositores e cerca
de 4 mil empregos. “Tentamos diálogo várias vezes”, diz a presidenta da
associação dos feirantes, Thereza Marques. Mas a solução foi ir às ruas.
“A gente continuou indo ao Mineirinho no horário da feira,
pedindo a nossa volta. Tinha umas 100 pessoas a cada dia com faixas, cartazes,
panfletos.” A convite do Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa (Coapc), os
feirantes ampliaram a presença nas ruas, durante a Copa das Confederações. “No
dia 17 de junho, seguimos da Praça 7 ao Mineirão. Firmes em trazer a feira de
volta”, relata Thereza. Hoje, os feirantes ocupam o primeiro andar do estádio.
Não pode ter medo
Em meados de 2010, os moradores da comunidade Caminho das
Flores, no bairro de Parangaba, Fortaleza, foram visitados por técnicos
contratados pelo governo do Ceará para fazer o cadastro das 45 famílias
residentes na única rua da comunidade. A 18 metros dali passaria o primeiro
trecho do Veículo Leve sobre Trilhos, que ligaria o oeste da capital cearense
ao porto de Mucuripe. A cessão de uma faixa de terreno para o novo VLT
significava que boa parte das casas seria desapropriada. “No meu caso, por
exemplo, meu terreno tem 135 metros. Eles queriam desapropriar 35”, lembra
Thiago de Souza, morador e integrante do Comitê Popular da Copa na capital do
Ceará. A comunidade se juntou a outras 21. “As 22 comunidades existem há mais
de 50, 60 anos. E o governo num passe de mágica quer acabar com elas”, resume
Thiago.
O movimento conseguiu com que a Defensoria Pública entrasse
com uma ação. Houve três audiências e a Defensoria mediou as negociações com o
governo. O terreno da Caminho das Flores foi reduzido, e os moradores
conseguiram reconstruir suas casas no próprio terreno, com maior recuo. “Na
comunidade Lauro Vieira Chaves iam ser 200 famílias removidas e conseguimos
reduzir para 50. Na Alcir Barbosa também”, comemora Thiago.
O Comitê Popular contabiliza em 5 mil o número de famílias
inicialmente em risco. Atualmente, há 2.185 residências em processo de remoção.
“O governo diz que foi ele que reduziu esse número, mas isso nada mais é que
fruto da luta das comunidades. Se ninguém tivesse resistido, hoje estaria todo
mundo na rua.”
O Rio de Janeiro também foi palco de mudanças de planos por
conta de mobilização popular contra a destruição do complexo Júlio Delamare, da
sede do ex-Museu do Índio, do estádio de atletismo Célio Barros e da Escola
Municipal Friedenreich (o Pelé do início do século passado). A revolta contra a
descaracterização do local unia os cariocas antes dos protestos de junho: “O
Maracanã resumia o que estava acontecendo na cidade: privatização,
autoritarismo, falta de interlocução com a sociedade, expulsão dos pobres. Mas
a partir de 2012 virou um símbolo de luta”,
explica Gustavo Mehl, membro do Comitê Popular.
Aos protestos puxados pelo comitê uniram-se indígenas, pais
de alunos da escola Friedenreich, 10ª melhor do país no índice do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), atletas que treinavam no Célio de
Barros e no Delamare. “Se o governo tivesse sensibilidade, teria visto que
aquilo era um caldo que estava começando a entornar”, avalia Gustavo.
O prédio do Museu do Índio está em reformas e será
transformado em um Museu Vivo da Cultura Indígena. A escola continua e uma
reforma está prevista. O parque aquático voltou a funcionar. Mas o estádio
Célio de Barros segue como estava antes do recuo de Cabral. O governo do estado
deve, ainda, apresentar projeto de reforma à Caixa, responsável por acompanhar
a execução. “Estão empurrando”, critica o velocista Nelson Rocha dos Santos, o
Nelsinho, campeão estadual, brasileiro, sul-americano e mundial. Mesmo assim,
ele não se decepciona. “Aprendi o seguinte: a gente não pode ter medo.”
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