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Balaio do Kotscho
Se a presidente Dilma Rousseff já terminou de ler o último
volume da trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas, editado pela Companhia
das Letras, deve ter bons motivos para ficar preocupada nesta entressafra entre
o seu primeiro e o segundo governo.
Talvez isso explique a indecisão dela para anunciar os
integrantes da nova equipe econômica, como demonstrou a dança de nomes
cogitados para o Ministério da Fazenda nesta semana que chega ao fim, mantendo
o suspense no ar.
Era este o livro que a presidente carregava na mão ao descer
do helicóptero no Alvorada, quando retornou a Brasília, depois de alguns dias
de folga numa praia da Bahia, logo após sua vitória apertada na eleição de 26
outubro.
É neste terceiro volume que o brilhante jornalista cearense
Lira Neto mostra o cerco formado por forças civis, militares e midiáticas
contra Getúlio Vargas, que começou antes da sua posse, e botou fogo no país, na
segunda metade do seu governo constitucional (1951-1954), levando-o a se matar
com um tiro no peito.
Dilma não é Getúlio, eu sei, o Brasil e o mundo não são os
mesmos de 60 anos atrás, mas há muitas circunstâncias e personagens bem
semelhantes nestes distintos períodos da vida nacional.
Não por acaso, o nome de Carlos Lacerda, o comandante em
chefe da guerra contra Getúlio, nunca foi tão lembrado numa campanha eleitoral
como nesta última.
Pintado pelos adversários como "O Corvo", com
muita propriedade, Lacerda ressuscitou nos discursos e nas manifestações contra
a reeleição de Dilma Rousseff, durante e após a campanha de 2014, que mobilizou
os setores mais conservadores do empresariado e da imprensa, a serviço de
múltiplos interesses estrangeiros, exatamente como aconteceu na tragédia de
1954.
Não por acaso, também, um dos principais focos da campanha
contra o então presidente da República era a Petrobras, por ele criada sob
controle estatal, após longa batalha no Congresso Nacional.
O papel que era da UDN (União Democrática Nacional) de
Carlos Lacerda foi agora alegremente assumido pela aliança da oposição liderada
por PSDB-DEM-PPS, que trouxe de volta, com Aécio Neves, até o mote do "mar
de lama", para atacar a presidente, o PT e a Petrobras, a bordo do
discurso sobre o "maior escândalo
de corrupção da nossa história".
Extinta pela mesma ditadura militar-cívico-midiática de
1964, que ajudou a implantar, dez anos após a morte de Getúlio, a UDN voltou às
ruas de São Paulo no último dia 15 de novembro, pedindo o impeachment de Dilma
e a volta dos mesmos golpistas ao poder, empunhando as mesmas bandeiras de
sempre, contra a corrupção e a inflação.
Foi neste dia comemorativo da Proclamação da República que,
em Roma, no café Ponte e Parione, ao lado da Piazza Navona, terminei de ler o
livro de Lira Neto e, embora tendo diante de mim algumas fas imagens mais bonitas
do mundo, não conseguia deixar de pensar no que estava acontecendo no nosso
Brasil naquele preciso momento. Passado e presente se confundiam na minha
cabeça e confesso que fiquei deveras impressionado com tantas coincidências.
A grande diferença é que, agora, os militares estão
recolhidos às suas tarefas constitucionais, e não dão o menor sinal de apoio
aos Bolsonaros da vida, que reencarnaram Carlos Lacerda na avenida Paulista.
Além disso, o país não está paralisado por greves orquestradas para encurralar
Getúlio pela esquerda e pela direita. E, pelo menos até onde a minha vista
alcança, não há tropas americanas se mobilizando para apoiar qualquer movimento
contra a democracia que vigora forte em terras brasileiras.
A história costuma dar muitas voltas para voltar ao mesmo
lugar, mas não precisa ter necessariamente os mesmos desfechos. Fiz algumas
anotações sobre o que têm em comum estes momentos conturbados, separados por
seis décadas:
* Os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, então alguns
dos protagonistas da ofensiva da mídia armada contra Getúlio, continuam os
mesmos, nas mãos das mesmas famílias, a desafiar o resultado das urnas e a
vontade da maioria _ simplesmente, não aceitam mais um período do PT no Palácio
do Planalto, completando, ao final do mandato de Dilma, 16 anos no poder.
* A TV Tupi, primeira e única emissora de televisão
brasileira nos tempos de Getúlio, que abriu câmeras e microfones para Carlos
Lacerda detonar o presidente e seu governo todas as noites, ao vivo, em horário
nobre, teve o mesmo destino da UDN e fechou as portas faz tempo, mas os métodos
dos Diários Associados de Assis Chateaubriand sobrevivem em outros veículos do
grupo, como o jornal O Estado de Minas mostrou na campanha passada. Com maior
ou menor sutileza, outras emissoras de TV, a começar pela toda poderosa Globo,
que dominaram o mercado após o golpe de 1964, cumprem mais ou menos o mesmo
papel nos governos petistas.
* A revista semanal Veja e seus escribas alucinados
reproduzem os melhores momentos da Tribuna da Imprensa, criada e comandada por
Lacerda, que foi o porta-voz oficial e amalgamou as forças reunidas para a
derrubada de Vargas.
* A flácida base parlamentar montada por Getúlio em tudo
lembra a de Dilma, embora ambos tivessem maioria no Congresso Nacional,
balançando entre contemplar direita e esquerda em seus ministérios, para se
equilibrar no centro, provocando assim sucessivas crises políticas e
econômicas.
* O PT de Dilma e Lula, com todas as suas contradições e
divisões internas, está cada vez mais parecido com o PTB de Getúlio, com o PMDB
agora no lugar do velho PSD das oligarquias regionais.
A lista do que há em comum é grande, e eu poderia passar o
resto do dia aqui escrevendo sobre isso. Antes de concluir este texto, porém, é
necessário registrar outra grande diferença: ao contrário de Getúlio, que tinha
a Última Hora, de Samuel Wainer, a seu lado, Dilma não conta com a boa vontade
de nenhum veículo da grande imprensa para mostrar e defender as conquistas do
seu governo, que também existem.
Dizem que a história só se repete como farsa, mas é bom
Dilma tomar cuidado. Recomendo a leitura desta bela obra do Lira Neto, não para
assustar ninguém, mas para vocês entenderem melhor o que está em jogo, agora
como em 1954. Foi o que aconteceu comigo.
Que Dilma e nós tenhamos melhor sorte.
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