terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Educação jurídica e barbárie: quem não beber deste cálice morrerá

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Redação
Educação jurídica e barbárie: quem não beber deste cálice morrerá

 “São tempos difíceis para os sonhadores” 
(O fabuloso destino de Amélie Poulain)

Operadores; técnicos; agentes. Tais termos utilizados para designar, comumente, estudantes nas faculdades de Direito Brasil afora, revelam um projeto pedagógico formulado na primeira década do século XX: a pedagogia tecnicista. A pedagogia nova – que surge após imenso desgaste da pedagogia tradicional, baseando-se na aprendizagem a partir das diferenças, da marginalidade -, na primeira década do séc. XX já dava sinais de exaustão após se tornar dominante; nesse contexto, surgem tanto as tentativas de uma “Escola Nova Popular” – que tem por expoentes Paulo Freire e Célestin Freinet -, quanto práticas preocupadas com um ensino objetivo e operacional, como a pedagogia tecnicista.

A partir do pressuposto de uma (im)possível neutralidade científica e de uma racionalidade, a pedagogia tecnicista vem para reestruturar “a educação de modo a dotá-la de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência[1]. O elemento central da pedagogia tecnicista passa a ser, diferentemente do escolanovismo, a organização racional dos meios – nessa ótica, tanto professor quanto aluno são personagens secundários do processo de aprendizagem, estando submetidos ao controle externo de especialistas “neutros e competentes” para corrigir as deficiências do professor. O tecnicismo ignora as diferenças, porque a neutralidade pressupõe que todos estão em mesmas condições e torna o marginalizado (isto é, aquele à margem da educação formal) em incompetente, improdutivo e ineficiente; o tecnicismo visa superar o marginal a partir da formação técnica do outro que irá contribuir para a sociedade com a partir do aumento da sua eficiência.
Warat diz que esse tecnicismo, aplicado às faculdades de Direito, produz “um conhecimento desmotivado e inócuo, que não serve para mobilizar o homem na procura de um agir transformador (emancipatório) da sociedade”[2], porque oculta os efeitos do desejo sobre o saber. O conhecimento formado pelas faculdades de Direito se torna assim um conhecimento desinteressado, desligado da realidade social que engendra a própria Ciência Jurídica, em que “a vida é atenuada e a eficiência técnica exaltada. O professor contribui, inconscientemente, para afogar qualquer possibilidade de emergência de vetores de singularidade e espaços de afetos[3].
Os estudantes de Direito entram nas faculdades ansiosos para transformar o mundo, para promover a “justiça” que a sociedade tanto anseia, entram sonhadores e, ao longo de cinco anos, morrem os sonhadores e nascem os burocratas: perdem o tesão e o desejo de um Direito emancipatório. Assim, nosso ensino jurídico não forma juristas de resistência ou, como o juiz Gerivaldo Neiva diz, artesãos do Direito, mas deforma-os, de modo que caibam no “jurista ideal”: sisudo, técnico e autoritário.
O jurista ideal não se equivoca e não necessita aprender com os outros, é fruto do narcisismo.
O resultado disso tudo é a existência de milhares de professores [e estudantes] de direito inteligentes, estudiosos, dedicados, mas, apressados nos estreitos limites do que lhes é permitido pensar, e temerosos de serem excluídos de seus grupos acadêmicos de pertinência[4]. O modelo de jurista-ideal é um produto de mercado, vendido pela moral capitalista que exige que as ações humanas sejam baseadas com vistas ao alcance de determinados objetivos, sem que seja possível adentrar em debates abstratos e conceituais: a cultura imediatista. Multiplicam-se manuais de Direito Penal Esquematizado/Simplificado/Descomplicado; as faculdades de Direito se tornam cursinhos preparatórios para Exame da Ordem ou outro concurso público; as disciplinas propedêuticas são ignoradas e o estudante se torna ávido, já nos primeiros semestres, para começar a estudar o “Direito de verdade” – isto é, as cadeiras de Direito Civil e Penal.
Por outro lado, a docência se torna um simples caminho para satisfação de ego e carreira estabilizada, muitas vezes, num concurso público, sem se dar conta que “a única vitória que interessa passa pela luta pela felicidade [sua e de seus alunos]. Isto é o que o professor deveria ensinar com sua própria práxis. O professor narcisista é um mesquinho manipulador[5]. Palavras do mestre Warat.
As salas das faculdades de Direito, assim, se encontram abarrotadas de alunos que precisam cumprir créditos, mas que não estão interessados no aprendizado – apenas na frequência; e de professores que precisam cumprir carga horária, mas que não estão interessados em lecionar.
Esquecem que o ato de aprender é uma forma de estar na vida e que ninguém pode se sentir vivo encarcerado. A pedagogia torna-se, então, narcisista e agressiva: os alunos são ultrajados e humilhados por uma verdade e uma voz hierarquicamente superior. Não surpreendente se torna a ausência de senso crítico por parte de professores e estudantes de Direito: a ausência de discussões de gênero, sexualidades, raças e alteridades em geral, são frutos de uma política educacional desengajada, que visa a preservação do modelo atual, no rigor mecânico das leis. A exemplo, vê-se a incompreensão de promotores de justiça perante questões indígenas ou relativas à transexualidade, por exemplo: tudo aquilo que foge aos manuais e ao Senso Comum Teórico dos Juristas, lhes causa estranheza.
Nessa ótica, quem não beber deste cálice morrerá – é o que profetizam os professores-ideal, vez que “os professores impõem os códigos aprendidos, ensinando a guardar a compostura diante do saber, diante dos livros eruditos, ensinando-nos a resguardar-nos em uma indiferença salvadora. Com eles aprendemos a manipulação de uma distância que evite as zonas perigosas onde o pensamento enfrenta-se a si mesmo como obstáculo[6]. O medo da perseguição (como dito brevemente em nosso artigo anterior, ver aqui), da exclusão dos círculos sociais e do mercado de trabalho são a morte proporcionada pela não ingestão do líquido escuro no cálice do mestre. E deste modo, o ensino jurídico crítico deixa de ser ensino jurídico crítico para ser… qualquer outra coisa! Um ensino que não forma, mas deforma; que não crítico, mas asséptico. Assim, a ausência de um processo de ensino que vise a preservação de uma capacidade de engajamento dos estudantes numa práxis transformadora é o desafio que se impõe a revolução no ensino jurídico. É preciso encontrar na base da prática pedagógica o estímulo à criatividade para além dos manuais simplificados, o entusiasmo pela vida, a capacidade de sonhar – lembremos dos calouros que já existiram em nós – e, como disse Warat, uma trama de afetos, vez que “a prática dos juristas unicamente será alterada na medida em que mudem as crenças matrizes que organizam a ordem simbólica desta prática. A pedagogia emancipatória do Direito passa pela reformulação do seu imaginário instituído[7].
Ou a educação jurídica emancipatória, ou a barbárie. Esta já vivemos há algum tempo. A primeira se apresenta como uma janela aberta para além do totalitarismo. Sem sonhos, pensamos com Warat, não há transformação da realidade social. Deste modo, “se quisermos impedir isto [a consolidação de uma estrutura social totalitária], devemos procurar uma relação mais rica com a razão, capaz de perceber e transcender seus condicionantes totalitários e de denunciar o substrato de desumanização que acompanha a razão instrumental[8].
Gilson Santiago Macedo Júnior é Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Integrante do NAJA – Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa. 
Claudio Oliveira de Carvalho  é Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos. Bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté. Professor adjunto em Direito Ambiental e Urbano e Agrário da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Integrante do NAJA – Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa.”

[1] SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. 32ª ed. Campinas: Autores Associados, p. 24, 1999.
[2] WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma ecologia do desejo. São Paulo: Editora Acadêmica, p. 89, 1990.
[3] Ibidem, p. 90
[4] Ibidem, p. 91
[5] Ibidem, p. 92
[6] Ibidem, p. 77
[7] Ibidem, p. 98.
[8] Ibidem, pp. 89-90.

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