domingo, 22 de abril de 2018

A violência do Direito, por Durval Muniz de Albuquerque Jr


Por Durval Muniz de Albuquerque Jr.

Da Agência Saiba Mais

Costumamos acreditar no mito burguês de que o Estado de direito significa o abandono completo da violência como forma de exercício do poder. Costumamos acreditar que o império das leis representa uma garantia contra a violência sanguinária, contra todas as formas de violência. Faz parte de nossa servidão voluntária, de nossa submissão aos ditames do poder estatal, ignorar a violência inerente a qualquer forma de direito, a qualquer legislação. Somente em momentos excepcionais, momentos em que a própria violência inerente à forma Estado se explicita, é que intuímos o caráter violento do direito e das leis. Somente em momentos de exceção, em momentos que Giogio Agamben nomeou de Estado de Exceção, é que nos apercebemos da violência intrínseca à qualquer ordenamento jurídico e legal. Momentos como esse que vivemos no Brasil, quando o próprio funcionamento do aparelho judiciário nos permite visualizar a dimensão violenta do exercício do direito e da jurisdição. No entanto, como julgamos esses momentos como excepcionais, como sendo disfuncionais, como sendo de exceção, julgamos que o exercício violento da judicatura, que o uso discricionário e injusto do próprio aparelho de justiça, constitui-se apenas em um momento excepcional, em uma quadra marcada pela “politização da justiça”, como se ela, em algum momento, tenha deixado de ser política e politizada. Mesmo aqueles que se colocam no campo da esquerda parecem engolir o mito positivista da neutralidade da justiça, da imparcialidade do juiz, da capacidade de interpretar as leis sem que suas preferências ideológicas, de valores, de costumes, interfiram nessas interpretações.

O direito já nasce de um gesto de força. Uma lei nasce de um gesto de proibição e regramento. O direito, estatuído como saber no Império Romano, nasceu da dupla necessidade de que a dominação imperial e de que a dominação social, de que as conquistas coloniais romanas e os privilégios do patriciado, fossem perpetuadas e protegidas através de um arcabouço legal. O direito se funda na violência da própria lei, que de saída é um gesto de limitação das liberdades, das vontades, dos desejos, das pretensões, das necessidades de grupos e pessoas. O direito estatui uma ordem, a organiza, a legitima, a defende e busca perpetuá-la. A lei é a permanência no tempo de uma ação inaugural de violência física e simbólica. Os espanhóis após o massacre do povo asteca trataram de ordenar juridicamente sua dominação sobre as terras e os povos conquistados. A violência sanguinária da conquista colonial é sequenciada por sua extensão e permanência legal e jurídica no tempo. O gesto inaugural de apossamento do que viria ser a América, do que julgava ser as Índias, Colombo realizou através de um ritual que seguia a jurisprudência do Império Espanhol, obedecendo uma formalidade legal diante de indígenas embasbacados que, sem nada entender, deveriam ter, segundo o rito jurídico previsto, contestado em ato e naquele momento a tomada de posse de suas terras pelos brancos europeus. Como não o fizeram, juridicamente e legalmente, seguindo o direito do conquistador, suas terras passaram para a posse do soberano espanhol. A lei se funda num gesto de força, nem que seja simbólico, como aqueles que vêm sendo realizados sob os holofotes da mídia nativa por magistrados do nosso Supremo Tribunal Federal que, sem poder legislativo ordinário, estão alterando, ao seu bel prazer, e em nome da defesa e ataque a dadas forças políticas, a própria letra da Constituição Federal. Sob a pele de um discurso empolado e melífluo se esconde uma enorme violência, inclusive contra a própria letra da lei maior que, supostamente, eles estão ali para defender.

Nos últimos tempos, no país, nos damos conta da violência que se faz presente em todo gesto de leitura e interpretação das leis e do direito. Como toda hermenêutica, como todo gesto de interpretação, a hermenêutica jurídica não é um mero assentimento à letra da lei, já em si mesma fruto de um gesto de violência instituinte. Toda leitura, toda tradução é traição, é violação, é violência ao sentido. A pretensão da existência de uma leitura literal da lei é uma ingenuidade. Nunca conseguimos ser plenamente literais, pois ler implica olhar para o que se lê e nosso olhar está longe de ser neutro e desprovido de lentes e filtros ideológicos, políticos, ético, estéticos, religiosos, etc. Nosso olho nada lê, nosso olho apenas forma a imagem do signo, do significante que vai ser submetido à leitura. A leitura é feita por nossa cabeça, por aquilo que temos dentro dela, lemos com os conceitos de que dispomos, com as ideias e categorias que dominamos, com as concepções e prevenções, com as noções e pré-noções, com os preconceitos que formam nossa maneira de ver o mundo. Se a senadora do relho, Ana Amélia, vê Al Jazeera e lê Al Qaeda, não é por causa de sua miopia visual, mas por causa de sua miopia mental, por causa de um olhar ideologicamente torto e deformado. Os malabarismos mentais do voto da ministra Rosa Weber, quando do julgamento do Habeas Corpus em favor do ex-presidente Lula, explicita bem como a interpretação é situacional, contextual e politicamente motivada. A violência contra a Constituição e contra os direitos e garantias fundamentais do paciente (como eufemisticamente ficavam chamando o presidente Lula, para a ele não se referirem, como se com isso apagasse a dimensão política do voto que cada um estava dando ali), que esse e outros votos significaram, desmascara a pretensão de que a letra da lei é obedecida ou prevalece sempre quando se trata do exercício do direito. A letra depende de leitura e a leitura é, sempre, uma violência que se faz a um pretenso sentido original e literal do que está escrito.

Ainda no século XIX, numa crítica à filosofia idealista do direito, expressa na obra de Hegel, Marx já chamara atenção para o caráter de classe do direito. O próprio Nietzsche já observara que o direito se fundamenta na violência do vencedor, ele materializa o golpe de força e de vontade que deu início a uma dominação. O que se pretendeu com a democracia parlamentar foi fazer de amplos setores da sociedade a origem das leis e do direito, tentando retirar a dimensão excludente e violento dos atos de fundação do regramento e ordenamento legal. O fim das monarquias absolutas teve como uma de suas consequências imediatas o fim do monopólio real sobre a produção do direito e da jurisprudência. A partir da ideia de que existiria direitos naturais do Homem, direitos que não poderiam ser violados por qualquer governante ou forma de governo, o jus naturalismo foi fundamental para se fundar o direito burguês e o que veio a se chamar de direitos humanos, que seriam direitos inerentes à condição humana, direitos que cada ser humano teria só pelo fato de ser humano, de pertencer à espécie, direitos que já nasceriam com ele, que não poderiam ser desobedecidos por qualquer legislação, a não ser em casos excepcionais a ser também descritos em lei. A ampliação do acesso ao poder legislativo às várias camadas sociais daria ao direito, em sua origem, uma maior legitimidade, pois as leis não surgiriam de um golpe de força, mas de um consenso, dialeticamente produzido, através dos debates e acordos parlamentares. O direito se tornaria, assim, mais inclusivo e aberto aos reclamos daqueles que não seriam privilegiados.

O problema é que se do ponto de vista legislativo as sociedades burguesas puderam significar, em dadas circunstâncias históricas, uma maior diversidade de interesses e de pontos de vista na origem do regramento legal e jurídico, o mesmo não aconteceu com o chamado poder judiciário. Em todas as sociedades ocidentais, o poder judiciário tende a ser o menos aberto ao controle social, o menos democrático, constituindo verdadeiras castas burocráticas, profissionais e de classe social. Não apenas no Brasil, assistimos as intenções do legislador original ser completamente ignoradas ou deturpadas pelos tribunais e juízes. O conservadorismo, inclusive da formação acadêmica e universitária no campo do direito, o distanciamento que o judiciário mantém em relação a realidade social de seus países, a origem de classe e étnica da maioria de seus membros, tornam as decisões judiciais muito distantes das aspirações mais coletivas. O fenômeno novo, inclusive no Brasil, é um judiciário que parece estar fundamentalmente preocupado com sua imagem midiática, que se deixa claramente fascinar e pressionar pela opinião publicada, mas do que pela opinião pública. A jabuticaba brasileira que é a transmissão ao vivo pela TV dos julgamentos com maior repercussão social, fez de nossos juízes da Suprema Corte atores e atrizes canastrões, vaidosos, verdadeiros acrobatas das palavras difíceis, das citações de efeito, dos votos quilométricos, para, ao final, perpetrarem, muitas vezes, a violência da injustiça e da não observância daquilo que dispõe a Constituição Federal. O fato do STF estar “politizado” não é uma excrescência, não representa um mal funcionamento dele, a própria forma de escolha de seus membros faz desse tribunal o mais politiqueiro da República, pois desde a indicação seus membros se envolvem em desenvoltas negociações, sem não em conchavos políticos. A quase total impunidade dos membros do poder judiciário, uma corporação das mais corporativistas, sua sede crescente de poder, em muitos países do mundo, têm feito desse poder uma ameaça ao próprio funcionamento normal dos regimes democráticos. Munidos da força e da violência da lei, ele é um poder que tende a passar incólome pelo controle e pela crítica social. A própria mídia, tão crítica em relação ao executivo e ao legislativo, se omite na hora de fazer a crítica dos privilégios e do péssimo serviço que o judiciário brasileiro oferece à população, que dele desconfia, mais do que confia.

Se o direito é na origem, muitas vezes, a extensão no tempo de um golpe de força, de uma conquista, de um apossamento, de uma rapina, de uma dominação, o direito exige o uso da violência na sua aplicação. Uma lei estabelecida exige cumprimento e o cumprimento exige a fiscalização, a verificação, a vigilância. Uma lei exige ser cumprida e caso não o seja implica a violência da sanção e da punição. Para a fiscalização e para a repressão daqueles que não obedecem às leis são necessárias a existência das forças de segurança, as forças destinadas a fazer cumprir a legislação que, no Brasil, em muitas ocasiões, agem com extrema violência. Muitas vezes, em nome da observância da lei, as forças de segurança violam as leis, recorrendo à força bruta, à violência sanguinária, em nome da manutenção da ordem legal. É dado ao Estado o direito do uso da violência em nome do combate à violência que possa advir da sociedade civil. Esse direito à violência por parte do Estado é fundamental para a chamada manutenção da ordem, mesmo que ela seja uma ordem injusta e repressiva. A lei não é objeto apenas de obediência, ela abre um campo de disputa e desobediência. A lei não evita a luta social, o conflito social, ela é a cristalização momentânea desses conflitos, ela cristaliza um dado estágio da luta, podendo ser resultado de uma negociação e de um consenso entre as forças em litígio ou podendo ser a materialização de um gesto de força, de uma vitória de uma dada força. A nova legislação trabalhista brasileira é fruto de um claro momento de derrota das classes trabalhadoras em seu embate com o empresariado, que patrocinou o golpe de 2016, para desmontar as conquistas legais que os trabalhadores haviam feito ao longo do século XX, através de inúmeros momentos de luta e mobilização. Sendo uma legislação, que na maioria de seus artigos, é inconstitucional, ela explicita, como muitas outras decisões judiciais e legislativas que violam a Carta de 1988, tomadas nos últimos anos, que a Constituição de 1988, o conjunto de dispositivos legais ali plasmados, são fruto de uma dada conjuntura política, de um dado conjunto de forças em conflito e em aliança, de dadas correlações de forças políticas e ideológicas que deixaram de existir. A Constituição de 1988 vem sendo desrespeitada e violada porque a situação política e social que a produziu não existem mais. O golpe de força que a Carta de 1988 significou, mesmo que essas forças fossem plurais e contraditórias, a ponto de se ter redigido uma Constituição em que o arcabouço jurídico destinado a sustentar um regime de governo parlamentarista terminou por conviver com a definição final de um regime de governo presidencialista, se vê contrarrestado por golpes de forças conservadoras e reacionárias que, através de emendas constitucionais, de legislação ordinária, ou mesmo através de decisões judiciais, vêm tornando muitos direitos previstos naquele documento letra morta. Capítulos inteiros da Constituição de 1988 nunca foram devidamente aplicados por demandarem regulamentação por legislação ordinária, como o capítulo destinado a regulamentar os meios de comunicação no país, já que os lobbies das empresas de jornalismo e comunicação nunca permitiram que fossem regulamentados e aplicados esses dispositivos que significariam a democratização das comunicações no país.

O caso do presidente Lula, todo o processo judicial maculado por irregularidades, inconstitucionalidades, parcialidades e uso excepcional de procedimentos investigativos e de processualística explicita o caráter violento do exercício do direito, de como o direito pode ser um instrumento de violência simbólica, de violência psicológica e, inclusive, como no caso da condução coercitiva imotivada de que foi vítima e da prisão sem que tenham esgotado sua possibilidade de defesa, violência física. Um homem de setenta anos está confinado em uma sala de doze metros quadrados, sendo impedido sistematicamente de receber visitas, por uma juíza que não acha suficiente a violência da prisão, querendo condená-lo à solitária, não prevista em nosso ordenamento jurídico. A jornalista dos atos falhos, não tão falhos assim, profetisa o seu enlouquecimento, deixando claro a que ponto a pretensa observância do direito pode chegar a causar danos irreversíveis a saúde física e mental de um ser humano. É preciso que percamos a inocência e aprendamos que o direito sempre teve lado, o direito sempre esteve ao lado daqueles que lhe parecem direitos, ele sempre foi um instrumento de dominação, exploração e manutenção da ordem, por mais injusta que ela seja. Isso não exclui que as leis e o direito possam ser usados em benefício dos mais débeis, dos mais humildes e necessitados, dos injustiçados, dos explorados, isso dependerá de quem lê e aplica as leis, de quem opera o direito. Daí porque a operação do direito, o exercício da judicatura seja um campo de lutas e disputas. O PT, no poder, se mostrou completamente incapaz de fazer escolhas no campo do judiciário que pudessem favorecer leituras menos violentas e discricionárias do direito e vem pagando um alto preço por isso. O respeito às regras corporativistas da corporação judiciária, a falta de critérios mais detidos para a indicação de magistrados para a Suprema Corte e de promotores para a direção do Ministério Público, fez com que a passagem do PT pelo Executivo fosse incapaz de pelo menos arranhar a lógica familista, de privilégio, de casta, de corporação, de classe dos tribunais e instâncias superiores do judiciário brasileiro.

Como disse em entrevista o jurista Pedro Serrano, Lula, um nordestino, mestiço, que vem da classe operária, considerado um iletrado, vem sendo julgado por juízes sulistas, que se consideram, portanto, brancos, homens de origem social privilegiadas, letrados, que se julgam, portanto, superiores intelectual e moralmente em relação ao retirante-presidente. O fato de que tenha sido esse presidente o melhor presidente que o país já teve, o de maior sucesso nacional e internacionalmente, gera ódio, ressentimento, gera um mal estar nas elites brasileiras representadas por esses juízes, que só conseguem julgar Lula com o fígado e não com a cabeça. Lula nunca teve chance de ter um julgamento justo pois não é para beneficiar e contemplar gente como ele que o direito existe e as leis foram feitas, ao contrário, é contra gente como ele que o direito se exerce e as leis são lidas e executadas. O julgamento de Lula foi feito para ver se dessa vez ele reconhece o seu lugar na sociedade, se dessa vez ele aprende que poder e governo não é para gente da classe operária, para gente da igualha dele. Os almofadinhas que o julgaram tinham que deixar claro, para todo mundo, que exceções como ele devem e tem que ser punidas, para que não se repitam. Quanto mais violenta e discricionária for sua sentença e seu cumprimento de sentença mais ela servirá de exemplo amedrontador para outros que, como ele, queiram trilhar o seu caminho. É preciso que a ordem voltada para servir uma minoria, que não foi feita para atender interesses e vontades de pobres, trabalhadores, negros, minorias de toda tipo, seja restaurada, mesmo que para isso seja preciso usar a lei e o direito para retirar seu direito de disputar, com grande chance de ser reeleito, as eleições de outubro.

Não se está defendendo aqui a ausência de leis ou de direito, eles também são fundamentais para se proteger os mais débeis e os menos afortunados, essas foram conquistas do mundo moderno que não podemos deixar de por elas lutar: os direitos sociais e trabalhistas, o direito das minorias, os direitos humanos. Mas temos que, até para isso, denunciar o caráter violento da lei e do direito, notadamente quando se volta contra os interesses das maiorias e dos menos aquinhoados na vida. Devemos usar a lei e o direito contra a própria lei e o direito que buscam sustentar realidades e ordens sociais e políticas injustas e desiguais. Devemos lutar por mudanças nas formas de se instituir as leis e, principalmente, nas formas de sua aplicação, fiscalização e operação. Se devemos pensar em reformas no poder legislativo para torná-lo mais democrático, menos poroso ao domínio dos lobbies financeiros, empresariais e dos grupos dominantes social e politicamente, se devemos lutar por uma democratização dos meios de comunicação, responsáveis, inclusive, pela fiscalização das instâncias de produção e aplicação das leis, devemos lutar, urgentemente, em todo mundo, por uma mudança profunda nas instituições judiciárias e de segurança, que as tornem mais abertas ao controle social, a transparência de suas ações, que as submetam a órgãos de controle social e não a órgãos de controle internos e corporativos, por novas formas institucionais de ingresso, progressão e composição de suas diferentes instâncias. O Supremo Tribunal Federal, tal como é composto hoje, deve ser extinto e substituído por uma Corte Suprema de perfil profissional e mediante concursos por mérito. Assim como é urgente a extinção das polícias militares e sua substituição por uma polícia civil, fruto de concursos e de formação adequada, que tenha todas as suas atividades autorizadas e acompanhadas pelo judiciário e submetida ao controle de um órgão externo. A lei e o direito são campos de luta, são lugares abertos à negociação e à dissensão. Eles trazem consigo, de forma imanente, a violência, que buscam conter e disciplinar, que buscam evitar e proibir, pelo exercício de uma contraviolência, às vezes, e no caso do Brasil muitas vezes, com o uso explícito e sanguinário da violência. Por isso, devemos buscar formas de exercício do direito e da lei onde essa violência possa ser, ao mesmo tempo, explicitada e controlada, discutida e repelida em sua face sanguinária, discriminatória e exploradora.
 

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