Em 2006, a socióloga Valquíria
Padilha lançou um livro premonitório sobre os rolezinhos, Shopping Center: a
catedral das mercadorias (Boitempo, 2006).
Saul Leblon – Carta Maior
São Paulo - A socióloga Valquíria
Padilha não se surpreendeu com o fenômeno dos rolezinhos. Professora de
Sociologia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, na USP de
Ribeirão Preto, ela lançou em 2006 um livro premonitório, “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo, 2006). Nele sublinha o papel
segregacionista desses bunkers do consumo que, em sua opinião jamais serão
democratizados. Autora também de outras obras que remetem diretamente à busca
de identidade implícita na adesão da juventude pobre aos rolezinhos (são dela: “Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito” (Alinea); “Dialética do lazer” (organizadora; Cortez), Valquíria desabafa: a identificação de cidadania com
consumo ‘é o fracasso da humanidade’. A seguir, trechos de sua entrevista a
Carta Maior
Carta Maior: Shopping center - consumismo
- desigualdade e exclusão urbana
interligam-se há muito tempo nas grandes cidades brasileiras. Por que só
agora a coisa explodiu na forma de rolezinhos?
Valquíria: Eu venho afirmando que os shopping centers são espaços
privados travestidos de públicos desde que publiquei o meu livro “Shopping
Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo), em 2006. São espaços de compras
que segregam, impedindo a entrada de quem não tem poder aquisitivo ou de quem
não se adequa ao ambiente dos shoppings – seja pelo modo de se vestir ou pelo
modo de agir. Recebi muitas críticas por afirmar isso. Agora estamos vendo as
provas: pobres não devem compartilhar os shoppings centers com os ricos.
CM: O marketing da segurança dos shoppings traz a
segregação no DNA?
Valquíria: Eles funcionam como os
clubes privados, as escolas privadas, os hospitais privados: são bunkers onde
as classes mais altas devem se sentir protegidas do mundo real que fica do lado
de fora. Isso só é possível com a exclusão de todos aqueles que supostamente
significam alguma ameaça, ou seja, que tragam a realidade do lado de fora – a
desigualdade social - para essa ilha da fantasia. Shoppings são templos do
consumo para poucos. Sempre foi assim no Brasil, desde os anos 1960-70 quando
tivemos nossos primeiros shoppings.
CM- O problema não está só no
Shopping...
Valquíria- Tudo isso ganha um
contorno próprio quando analisamos a organização urbana de nossas cidades
brasileiras - indubitavelmente pautada na segregação social e econômica: há os
espaços de quem tem dinheiro e há os espaços de quem não tem. Quem não tem
normalmente trabalha para os que têm. No caso dos shoppings, os vizinhos ou
parentes dos jovens que fazem os chamados “rolezinhos” são os que têm os
empregos mais precários: faxineiros e seguranças terceirizados. Como mão de
obra barata, servem, sempre servem! O
shopping é mais um dos espaços das cidades brasileiras reservados para o
deleite das classes média e alta --servidas pelas ‘classes baixas’....
CM- Retomando, por que o protesto
só acontece agora justamente quando se dá a emergência da chamada ‘classe média
popular’?
Valquíria- O fato de supostamente
uma parcela dos pobres brasileiros estarem aumentando seu poder de compra não
significa que eles tenham adquirido o direito de compartilhar os mesmos espaços
dos ricos. Eles não possuem o que o
sociólogo francês Pierre Bourdieu chamaria de “capital cultural”. Dito de outra
forma, não basta ter mais dinheiro para ganhar o sentimento de pertença nos espaços
dos ricos.
CM- Seria uma evolução natural, a
exemplo dos protestos de junho de 2013, de quem não quer ser apenas um mercado
de artigos populares e reivindica cidadania plena?
Valqíria - Pensar em acesso aos
shopping centers como acesso à cidadania é um grande engano. Sobretudo se
entendermos que ser cidadão, nos termos burgueses de nossa organização social,
é ter direitos e não apenas deveres. Se pagamos impostos ao Estado, deveríamos
ter acesso à uma vida digna, com trabalho, estudo, saúde, cultura, lazer de
qualidade. Isso sim é ter cidadania. Mas, a sociedade de consumo –
principalmente dos anos 1980 até hoje – nos ensinou a reduzir o conceito de
cidadania à esfera do consumo. O cidadão hoje é o consumidor feliz. Isso é uma
falácia enorme, um erro que direciona inclusive as ações do governo petista no
Brasil. Os pobres passam a ter um pouco mais de renda, mas eles continuam
não-cidadãos nos termos a que me refiro aqui.
CM- Há uma confrontação simbólica
desses limites em marcha ?
Valquíria - Os shoppings são
símbolos de uma sociedade de consumo e de abundância de bens materiais. São
símbolos da lógica do “compro, logo existo”.
Forçar o acesso a esses espaços – que a periferia sabe que não lhe
pertence - é um ato simbólico para dizer: “quando a gente vem aqui a gente
incomoda os burguesinhos que historicamente nos desprezam”. Uma longa história
de invisibilidade vivida pelos pobres no Brasil está vindo à tona com essas
“invasões” dos shoppings centers. Os
pobres nunca são verdadeiramente vistos ou ouvidos pelas autoridades públicas e
pelos patrões. Esses movimentos chamados de “rolezinhos” são, na minha
interpretação, uma tentativa de furar a barreira da invisibilidade a que esses
jovens pobres estão sujeitos na nossa sociedade de classes.
CM - Generalizar a ‘receita
shopping’ para as grandes metrópoles brasileiras é tão viável quanto estender aos postinhos de
saúde o padrão do hospital Albert Einstein, em SP (um shopping da saúde).
Estamos diante de uma contradição insolúvel: a propaganda adestra
o imaginário social a exigir o melhor e agora barra quem
aderiu ao sonho?
Valquíria - O que sempre me
entristeceu é ver essa crença generalizada de que pertencer ao shopping center
é alcançar a boa vida. Essa é uma vitória da sociedade de consumo e um fracasso
da humanidade. Os adultos, jovens e crianças de hoje foram totalmente cooptados
pela crença alienada de que só é possível ser feliz assim. Discutir isso hoje é
visto como ridículo, já que essa ideologia consumista transformou-se numa verdade
absoluta. Propor discussões críticas da sociedade de consumo, da publicidade,
do capitalismo ainda é ridicularizado pela mídia e pelos intelectuais de
direita. Somos nós, os pensadores marxistas e de esquerda que devemos mostrar
como esse desejo de um mundo mais justo e menos desigual deve ser elaborado
para gerar ações definitivas no que diz respeito à igualdade social. Não é nada
fácil. As classes dominantes são fortes, poderosas e violentas – sobretudo no
Brasil. Os pobres terão que entender que
consumindo as roupas de marca e os equipamentos eletrônicos dos ricos, eles não
vão conquistar a liberdade ou a emancipação.
CM—Mas é essa aspiração que os
move...
Valquiria - O desejo e a posse de
mercadorias nos alienam a todos. No entanto, é óbvio que, num primeiro momento,
esse impulso pode parecer revolucionário. Quando eu critico a segregação social
dos shoppings centers não desejo como solução que esses espaços sejam
democratizados, mesmo porque eu não acredito nisso. Desejo que esses espaços
sejam eliminados.
CM- Como ?
Valquíria- Que sejam substituídos por parques, espaços
de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos
igualmente. Uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica precisa disso, e
não de shopping centers... Esse fenômeno dos “rolezinhos” não aconteceria na
Finlândia ou na Dinamarca.
CM— Essa reciclagem dos shoppings em espaços
culturais seria a utopia de um rolezinho
ideal?
Valquíria - Qualquer solução que propomos na contramão da
ordem vigente tem status de utopia,
tamanha é a complexidade social. A publicidade é a espinha dorsal desse
sistema. Ela é a maior descoberta e o maior trunfo da sociedade de consumo
capitalista, pois consegue manipular os desejos, criar necessidades, reduzir
sentimentos. E mais: ela atinge a todos da mesma forma: ricos e pobres, quem
vive na cidade e quem vive no campo, crianças e adultos etc.
CM—Os rolezinhos tem fôlego para
avançar nessa contestação?
Valquíria - Onde esses movimentos
dos “rolezinhos” vão dar eu não sei dizer. Não sou otimista no sentido de
imaginar que isso vai fazer com que nossa sociedade deixe de segregar e seja
mais justa em curto ou médio prazo. Mas, acho que é um começo e a discussão que
surge traz o tema da desigualdade social para a mesa.
Assim como os movimentos de junho
de 2013, pode se somar a outras manifestações de insatisfação, provocando,
pouco a pouco, novas formas de reflexão sobre o capitalismo e sobre nosso
sistema político. Gosto de ver os pobres organizados para incomodar os ricos,
forçando-os a enxergar uma realidade que eles insistem em negar ou que
ridicularizam.
CM- Que resposta o urbanismo pode
dar a essa revolta ainda bem comportada?
Valquíria - Na ordem do capital,
não acredito em nenhuma resposta definitiva. Humanizar o capitalismo, ao menos,
seria possível, mas não concordo que apenas oferecer mais políticas públicas de
lazer e cultura nas periferias seja a solução, pois continua aí a segregação
dos espaços urbanos, a cidade continua dividida entre espaços para pobres e
espaços para ricos. Isso não é solução, é paliativo.
CM - A Justiça de SP concedeu a 6
shoppings da capital o direito de selecionar
o acesso. É um novo degrau do antagonismo público -privado no país?
Valquíria - Os juízes que deram
essas sentenças deveriam perder o direito de julgar se nosso país fosse sério e
cumprisse a Constituição. É um absurdo autorizar o inautorizável. Um juiz não
poderia permitir que um espaço aberto ao público pudesse segregar.
Discriminação é ilegal. Racismo é crime
inafiançável no Brasil. Esses juízes deveriam ser presos. Os donos desses
shoppings também.
CM - É só no Brasil ou o padrão segregacionista se repete em
shoppings de outros países também?
Valquíria - Em outros países não
é assim. Eu morei na França e no Canadá
e lá os shoppings são abertos a todos, porque eles respeitam a Declaração
Universal dos Direitos dos Homens. Nos países em que há desigualdade social
extrema, a segregação e a discriminação são mais evidentes. Os “rolezinhos” só
estão causando tanto alvoroço porque somos um país de desiguais. Enquanto cada
grupo fica na sua, com seus “irmãos” de classe e respeitam as fronteiras
invisíveis e visíveis, não há conflitos. Os conflitos surgem quando uma das
partes resolve confrontar as barreiras. Se não houvesse esse abismo entre
pobres e ricos, não estaríamos discutindo isso, não é? Sugiro que se assista ao documentário
‘Hiato’, que conta como os movimentos de sem-teto e sem-terra organizaram uma
visita a um shopping no Rio. É pedagógico.
http://www.youtube.com/watch?v=UHJmUPeDYdg
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