terça-feira, 21 de março de 2017

A tragédia humana e moral dos pelegos

Bernardo Gutiérrez/Folhapress

http://www.brasil247.com/

Prezada amiga Helliana Tenuta, Cuiabá, MT

Desenvolvi aqui um texto intitulado “O muro é o lugar dos covardes e eticamente miseráveis” (para minha alegria publicado pelo grande site Brasil 247, com elevado número de acessos), preocupado com a apatia assumida por muitas pessoas, que tentam confortar-se na falsa morada do muro da “neutralidade”.

Essa apatia reveste-se ora pelo cinismo não assumido de algumas e ora por pura desonestidade de outras, ambas covardes – sobre covardia e coragem escrevi artigo aqui – e desleais com a realidade. Isto é, o mundo se manifesta objetivamente de um modo e elas o negam.

Reconheço que há pessoas boas, aqui lembraria o velho bispo metodista do Rio Grande do Sul, Sady Machado da Silva, um poeta e literato, que afirmava que há pessoas muito santas que buscam ser generosas com os dois lados do muro, por isso encimam-se nele.

Eu, porém, penso que essa santidade – que respeito – não resolve o conflito que a realidade impõe como um tsunami irrefreável.

Uma figura mais dinâmica e danosa do que o muro é a do pelego, muito usada no meio sindical, mas que amplio aqui para todos os setores da vida.

Este símbolo veio dos meios campesinos, principalmente gaúchos, usado pelos cavaleiros para amortecer os impactos das patas dos cavalos em contato com o chão e acumulado sobre o seu lombo com muito osso. O pelego é feito de peles com lã, retiradas de ovelhas e carneiros, também usado como colchão para sestas ou até pernoites sob árvores frondosas.

A função dos pelegos é acalmar os impactos conflitivos. No ambiente de trabalho os pelegos são os trabalhadores usados para “pensar” e agir solertemente com a mente e interesses dos patrões e proprietários dos meios de produção.

Todos continuam vivendo do trabalho e da produção, mas negam essa condição ideológica e socialmente ao serem cooptados pelos donos das empresas como canal para amenizar o ímpeto naturalmente rebelde da classe trabalhadora, composta por eles e por seus colegas. 

Os pelegos enfiados nos sindicatos e centrais sindicais espionam as organizações que defendem os interesses e necessidades de justiça trabalhista para vendê-las como informações aos patrões, sob-bajulações, na maioria das vezes.

Eles também atuam na venda distorcida das imagens de bondade dos patrões. “Argumentam” que melhoramentos de salários e de condições de trabalho podem ser resolvidos conversando pessoalmente com os patrões, sem pressões e greves.

Para esse segmento a luta econômica de caráter coletivo não existe. São personalistas e individualistas, buscando vantagens para si e os seus.

Neste vídeo relatei um encontro que sindicatos, centrais sindicais e intelectuais tivemos com o deputado federal Daniel Vilela, aqui de Goiás. Com algumas exceções feitas de pelegos, a maioria de nós fomos duros nas críticos contra as reformas da Previdência e Trabalhista, que os canalhas tentam impor e como agenda do processo golpista que se abate sobre nossa democracia. Sem peleguismo, não deixamos de apelar ao deputado que escolha o nosso lado como inspiração para seu trabalho naquela nefasta comissão parlamentar e na Câmara dos Deputados.

Impressionei-me com a fala do deputado ao reagir aos discursos vindos do auditório. Um dos tópicos usados por ele como argumento em favor dessas reformas diabólicas foi o de que trabalhadores são favoráveis a essa crosta de nojeira que a elite golpista joga sobre nós. Porém, os trabalhadores mencionados por ele são de sindicatos e centrais pelegos e tidos como inimigos dos trabalhadores.

Pensei no serviço que esses infiltrados prestam ao movimento social em favor da justiça trabalhista e da democracia centrada nos interesses e necessidades de classe e da maioria de nosso povo.

No contexto de luta da classe trabalhadora, entre os que defendem os interesses de classe libertos do peleguismo, há uma variedade gigantesca de princípios ideológicos. Mas é enorme a capacidade intelectual e política de lideranças, que habilmente e com grande amplitude respeitosa, sabe negociar e articular ganhos de interesse de toda a classe. Posso dizer que aí não há ignorantes da realidade em termos econômicos, trabalhistas e políticos.

Os pelegos são enorme prejuízo para eles e para a classe trabalhadora como um todo, além de não serem da total confiança da classe dominante. Penso que a filósofa francesa Simone de Beauvoir define muito bem o conteúdo e a prática dos pelegos, embora use outra terminologia: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

Talvez “coxinhas” seja um conceito muito próximo do de pelegos. Ambos são trabalhadores cúmplices dos opressores.

A pequena diferença é que os coxinhas são os confusos apaixonados que defendem as piores soluções para o País e são marcados por clamorosa ignorância da realidade, mas brigam como se a conhecessem com domínio teórico. Os pelegos, por sua vez, atuam como quinta coluna entre os seus iguais com o objetivo de enganá-los e enrolá-los ganhando vantagens como puxa sacos patronais.

Tenho experiência com três setores institucionais, onde vejo com dor a “militância” dos pelegos-coxinhas.

Um é o da docência, onde me deparo com professoras e professores, que são trabalhadores, mas que defendem cega e surdamente os proprietários dos meios de produção e do capital. São estupidamente violentos e indignos de confiança. Geralmente se colocam a favor de projetos nacionais conservadores, neoliberais e de direita. Vazios do conhecimento da realidade discursam autoritariamente sem escutar seus colegas que pensam alternativamente.

Informes de intelectuais engajados na luta sindical e política dizem do elevado número de professores públicos e privados exercendo o vergonhoso papel da traição de classe. Muitos das universidades públicas, que tinham seus coros arrancados por faculdades e universidades privadas, uma vez aprovados em concursos, ao receberem salários melhores alienam-se se tornando pelegos-coxinhas, totalmente “desclassificados” – desligados das entidades e até repulsivos às suas classes trabalhistas representativas.

Julgam-se intelectuais, mas suas fontes são as mais bolorentas, idealistas, academicistas e negativas possíveis da realidade.

Muito triste essa traição!

Outra corrente eivada de pelegos é o jornalismo, onde me deparo 24 horas diárias com vendidos e vendidas que fabricam informações extremamente destrutivas da verdade, do direito, da justiça e da realidade, ajudando aeticamente os seus patrões, empresários das comunicações, na delapidação do Brasil e de nossa democracia.

Esses pelegos talvez não avaliem o mal que ajudam os seus patrões a fazerem na manipulação de todo um povo, dando parto aos golpes e a manobras tinhosas contra o sentido coletivo e cidadão da democracia.

Finalmente, outra coluna de pelegos que nega a realidade, revestindo suas posturas de falsa neutralidade e de misericórdia é no ambiente religioso.

Na minha juventude, em plena ditadura, atuei predominantemente na sociedade, sempre valorizando muito o rádio, o jornal e a tv, fui dedurado, preso e condenado à prisão pela lei de segurança nacional – ideologia do imperialismo como a define o Padre José Comblin no seu maravilhoso livro “A Ideologia da Segurança Nacional” – graças a cristãos de minha e de outras igrejas. Dominados pelo discurso opressor, embora frequentadores de igreja, negaram a lealdade ao irmão em Cristo e me entregaram ao cadafalso prenhe da dor das torturas e do medo da morte violenta. E assim aconteceu com muitos em toda a América Latina, traídos por pastores, padres, bispos e cardeais. Na Argentina alguns padres e bispos foram arrastados aos tribunais após derrubada a ditadura para prestar contas à justiça pelos crimes que ajudaram a praticar contra inocentes e patriotas, de quem discordavam sem conhecer sua realidade e inspirações. No Brasil a Comissão da Verdade se deparou com uma realidade monstruosa de participação cruel de pastores, padres e bispos na dedoduragem de pessoas que foram torturadas, aleijadas e mortas nos porões do DOI-CODI e do DOPS, verdadeiras milícias terroristas da ditadura. Alguns pregaram e celebraram em suas igrejas e depois foram às prisões torturar e, ironicamente, distribuir Bíblias para os supliciados.

Choco-me profundamente com cristãos que nada sabem de Jesus e sua história da opção preferencial pelos pobres, injustiçados e oprimidos de todas as formas. São verdadeiros pelegos-coxinhas infiltrados em igrejas ou até igrejas inteiras se prestando à tarefa de demonizar o povo, os diferentes e, principalmente, os lutadores que se entregam à fé na humanidade que geme e sonha por sociedade mais justa.

Como os pelegos-coxinhas de outros campos os cristãos que assim “pensam”, creem e agem negam o mundo dos poderosos conflitos de classe e se alienam da realidade.

Esses três e todos os segmentos se assemelham como pelegos e são ruins porque não conversam sério, não se unem, não abrem espaços para a divergência fraterna e são perigosos porque violentos, manipulados, fracos e traiçoeiros. Mais hoje ou mais amanhã suas facas são espetadas impiedosamente nas costas de seus irmãos de viagem e de luta, tudo com base no personalismo e nos interesses pessoais imediatos.

Fazem parte inexorável da banda que passa em direção do abismo das sombras e do lixo da história.

Dom Orvandil

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