domingo, 16 de abril de 2017

Rede Globo: em que a gente se vê por aqui?


Maíra Zapater/Professora
http://justificando.cartacapital.com.br/

Ano 2000: a novela “Laços de Família”, de Manoel Carlos, era exibida na faixa das 20 horas (nessa época a instituição “novela das oito” ainda começava a essa hora – foram justamente algumas cenas de “Laços de Família”, consideradas inadequadas para o horário, que empurraram essa fatia da teledramaturgia para um pouco mais tarde) e tinha o ator José Mayer como intérprete de um dos protagonistas da trama, o peão de boiadeiro Pedro. O personagem, um dos “mocinhos da novela das oito”, mostrado como “macho”, “animalesco” e “pegador” – todos atributos categorizados como positivos -, “pegou” quatro mulheres ao longo da trama.

Uma delas, a veterinária Cíntia (interpretada por Helena Ranaldi), era também “mocinha” no rudimentar binarismo maniqueísta do universo noveleiro, caracterizada na narrativa como uma mulher solteira, independente, sem interesse em casamento, filhos ou qualquer compromisso afetivo “tipicamente feminino”. Outra delas era Íris (personagem de Deborah Secco), prima de Pedro, menor de idade, e apresentada como o estereótipo da “ninfeta sedutora maquiavélica” – e, como não podia deixar de ser, enquadrava-se na categoria de “vilã”.

Logo no início da história, Pedro e Cíntia passam a ter um envolvimento amoroso. A certa altura, Pedro constrange Cíntia, mediante violência física, a manter relações sexuais com ele em uma cocheira no haras onde os personagens trabalhavam. O nomen juris desta conduta, sabemos, é estupro, e tem previsão legal no artigo 213 do Código Penal. Íris (que é mostrada o tempo todo como a menina inconsequente “apaixonada desde criança” pelo primo bem mais velho) testemunha a cena, sem nada fazer. No dia seguinte, enciumada, Íris interpela Cíntia em razão do ocorrido.

A cena da discussão entre as duas pode ser assistida na íntegra aqui. Mas vale a pena transcrever alguns trechos do diálogo travado entre as personagens que disputavam o “garanhão” do pedaço:

Íris – “Eu achava que tinha sido à força, mas não foi! Você tem um caso com ele! Transou com ele mesmo não querendo (…) mas no fundinho você devia querer!”

Cíntia – “Isso aconteceu ontem, contra a minha vontade. E se você viu tudo, viu que eu não queria, sabe que eu fui forçada.”

Íris – “Então por que não botou a boca no mundo? (…) O Pedro não ia fazer isso se não tivesse certeza de que você ia ficar quieta (…) Você podia ter evitado.”

(…)

Cíntia – “Eu não queria, ele me forçou, pronto, problema meu! (…) E se não falei pra ninguém é porque eu não quero estragar a vida dele.”

Corta para 2017: a figurinista Susllem Tonani relata em texto publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas (Folha de São Paulo) que foi assediada sexualmente por José Mayer nos bastidores da novela das nove “A Lei do Amor”. O texto saiu do ar poucas horas depois, sendo republicado na tarde do mesmo dia, sob a justificativa de não observância da regra jornalística que determina a divulgação do outro lado da história. Assim, junto à republicação do relato de Su Tonani, foi publicada uma nota de José Mayer em que este, embora não negasse o ocorrido, insinuava que a moça haveria confundido “ficção e realidade”, em referência ao machismo e à misoginia externados pelo seu personagem de então, José Bezerra.

Diante da situação, atrizes da emissora se mobilizaram em uma campanha de apoio à figurinista, com o slogan “Mexeu com uma, mexeu com todas”. O episódio culminou com a suspensão de José Mayer pela Rede Globo por tempo indeterminado, e a publicação de uma nova carta do ator, na qual pede desculpas por seu erro.

Os fatos descritos nos dois parágrafos anteriores se desenrolaram entre os dias 31 de março e 04 de abril de 2017, tão veloz quanto as postagens de ativistas on line comentando o caso. Nem bem o assunto esfriara, e a emissora foi colocada (ou se colocou?) novamente no centro das atenções com as brigas entre Marcos e Emily, participantes que formavam um casal na edição de 2017 do reality show Big Brother Brasil: na noite de 09/04, houve entre os dois uma discussão violenta – e intensamente comentada nas redes sociais – , que acarretou a vinda de uma delegada da Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá (RJ), que analisou imagens captadas e instaurou inquérito policial para apurar o caso. Em 11/04 o apresentador Tiago Leifert comunicou no ar a decisão da Globo de expulsar o participante, por constatar, após consultar “diversos especialistas” que a conduta de Marcos configurava agressão, o que inviabilizava sua permanência, segundo as regras do programa (em entrevista, a delegada responsável pelo caso afirmou que a decisão de afastamento foi exclusiva da emissora, sem qualquer interferência da Polícia Civil).

Os dois episódios animaram muitas conversas nas últimas semanas: seria sincero o arrependimento de José Mayer? Por que Su Tonanni não denunciou antes o assédio? Seria roteirizada a violência mostrada no reality? Estaria a Rede Globo mostrando uma súbita preocupação com a questão da violência de gênero contra mulheres?

Passados alguns dias do calor dos debates, quero dividir aqui com as leitoras e leitores do Justificando minhas reflexões a respeito. Não é preciso argumentar para demonstrar que o principal objetivo perseguido pela Rede Globo (assim como por qualquer emissora privada) é o lucro obtido por meio de seus anunciantes, que ocupam os espaços da grade de programação de olho na audiência – como sabemos, notícia e entretenimento são produtos comercializados por empresas do ramo de comunicação. Até aí, sem novidades – ainda que eu julgue ser importante pensarmos na responsabilidade social dos meios de comunicação (o que é assunto para outra coluna!), assim como também não é novidade que a imagem simbiótica de atores/personagens seja um ativo importante de uma empresa que sobrevive, em grande medida, da venda de padrões de comportamento (os quais, por sua vez, tem tudo a ver com a lógica de mercado de anúncios de produtos e serviços veiculados nos intervalos do plim-plim).

O que me parece novo é o tipo de imagem que passou a interessar ao mercado representado pelos telespectadores: se no ano 2000 o público de “Laços de Família” não via problema algum em consumir a imagem do “mocinho de novela” que estupra a namorada (e que, aliás, continua a se relacionar com ele até o final da trama, quando o galã a troca pela prima menor de idade, vilã redimida após sofrer seguidamente castigos físicos aplicados por vários personagens), há muitos elementos que permitem pensar haver demanda por novos padrões de comportamento para consumo.

Em outras palavras, parece-me muito provável e factível que José Mayer possa não estar se importando a mínima com o sofrimento relatado por Su Tonani, mas tenha sido muito bem orientado por profissionais de assessoria de imprensa e relações públicas. Acho bastante possível que a articulação da campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas” tenha sido menos espontânea e mais comedida no enfrentamento a empregadores poderosos do que gostariam os corações mais revolucionários – o que não impede que as atrizes envolvidas estivessem individualmente convictas da necessidade de seu posicionamento. E não duvido que a produção de um programa como o BBB tenha deixado uma situação violenta (ainda que minimamente roteirizada pela edição) chegar a um ponto extremo em nome da audiência e ainda se aproveitado do caso para forjar sua imagem de “empresa amiga da mulher”, cheia de preocupações sociais com a violência de gênero e a misoginia.

Ou seja: não acho que a Globo tenha operado tamanha mudança em sua, digamos, “missão institucional”. Mas me parece que a audiência mudou, o que significa que as pessoas querem consumir outro tipo de imagem, e formas diferentes de comportamento.

Ainda assim, lanço aqui uma provocação: haverá problema na suposta “falta de sinceridade” de José Mayer, ou na suspeita de que as atrizes tenham encenado um “protesto autorizado”, ou na ausência de “nobreza” nos motivos que levaram a emissora a atuar como fez tanto em relação ao ator quanto aos participantes do BBB?

Prefiro pensar que não seja um problema em si: não é raro (para não dizer frequente) que Direitos Humanos sejam mobilizados como capital moral para finalidades políticas e econômicas que em muito se distanciam dos fins proclamados oficialmente. É claro que todos preferiríamos que o reconhecimento de direitos se desse por uma autêntica tomada de consciência da gravidade dos atos praticados, ou da condição humana inerente a qualquer pessoa que a torna digna de estima e respeito. Mas ao invés de buscarmos a utopia de “destruir o sistema violador de Direitos Humanos”, talvez seja mais eficiente a estratégia de conhecer as engrenagens de seu funcionamento e utilizar os mecanismos de que dispomos. Gosto de ilustrar esse argumento com o exemplo da pílula anticoncepcional, que foi colocada no mercado nos anos 1960 não por representar uma preocupação da indústria farmacêutica com os direitos reprodutivos das mulheres, mas sim porque se percebeu um nicho de mercado consumidor. Isso não impediu que as mulheres se apropriassem da inovação para transformar irreversivelmente seus cotidianos e a realidade social.

Talvez seja importante refletirmos como a audiência tem se mostrado como mercado consumidor: é, sim, um avanço o público demonstrar não ter mais interesse em consumir modelos de comportamento machistas e misóginos – o que mostra que, se a Globo não mudou, houve alguma mudança na mentalidade de quem assiste TV. A atenção deve se voltar agora – creio eu – a manter e avançar nesta mudança. Se “a gente se vê por ali”, talvez o mais acertado seja usar essa imagem como um termômetro, para assumir o controle do que vemos.

Maíra Zapater é Doutora em Direito pela USP e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

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