quinta-feira, 4 de maio de 2017

"Execução penal, exclusão social e abandono do Estado", por Salvador Netto

O Comando Vermelho não nasceu no morro carioca, mas no presídio da Ilha Grande no Rio; o PCC não nasceu na periferia paulista, mas no [presídio] de Taubaté

         Tatiana Carlotti
         http://www.cartamaior.com.br/

Uma Ribeirão Preto encarcerada. Em termos numéricos, essa é a dimensão da população carcerária no Brasil: mais de 670 mil pessoas. A maior parte delas, rapazes entre 18 a 30 anos, negros e moradores das periferias brasileiras, detidos por furtos e roubos (50% dos crimes) ou tráfico de drogas (48%).

Desde 2006, com a aprovação da Lei de Drogas, o tráfico dispara como principal causa de aprisionamento desta população. Ao decidir quem é consumidor e quem é traficante, a Justiça chancela a exclusão social: no geral, jovens da classe média e alta são considerados consumidores e prestam serviços comunitários; e jovens das periferias são considerados traficantes e à prisão em regime fechado, em presídios medievais, superlotados e sem direitos elementares garantidos.

O quadro é dantesco e foi esmiuçado durante as Jornadas de 2017, na conferência "Execução penal: abandono do Estado e política de exclusão" (confira o áudio acima), pelo advogado Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de Direito na Faculdade do Largo São Francisco e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

Em seu diagnóstico, um primeiro alerta: o abandono da área de execução penal no Brasil. "A execução penal é um patinho feio dentro Direito", disparou o advogado ao comentar que há poucos estudos de mestrado ou doutorado na USP sobre a execução penal. Além do fato das varas de execução penal serem indesejadas pela maioria dos juízes brasileiros.

O resultado disso é notório: "a execução penal não tem o relevo e a repercussão teórica e intelectual que tem na prática" e "na medida em que não se estuda com profundidade e com cientificidade o problema da execução, ela se torna um espaço da vulgaridade, das opiniões e dos palpites”. Opiniões que influenciam e muito, destaca Salvador Netto, os legisladores no Congresso Nacional.

Liberdade X Segurança

Segundo o advogado, o sistema criminal convive com a eterna dicotomia entre liberdade e segurança. Essa tensão se reflete na área da execução penal em outra polarização: a ideia da ressocialização do indivíduo versus sua contenção ou neutralização social. Geralmente, quando a lógica da liberdade predomina na sociedade, as normas penais são concebidas como normas destinadas à proteção do cidadão da intervenção do Estado sobre a liberdade das pessoas, conferindo direitos ao cidadão e limites para esta ação estatal.

Quando, porém, ocorre o inverso e a lógica da segurança predomina, o sistema criminal é visto como um direito penal destinado "a proteger a pretensa vítima" e "disposto a ceifar ou a relativizar determinadas garantias em nome de condenações, punições, obtenções de provas etc." Nesta dimensão, temos o predomínio da ideia da contenção na execução penal.

Tanto o Código quanto a Lei de Execução Penal no Brasil foram adotados em 1984, portanto, nos estertores da ditadura militar e em um momento em que a sociedade brasileira clamava por menos segurança e mais liberdade. O predomínio dessa lógica, porém, sofreu alterações nos últimos anos. "Vivemos hoje um avanço do discurso da contenção em detrimento da ideia da ressocialização ou de um aparato ressocializador do Estado", avalia Salvador Netto.

Um forte exemplo disso foi a criação, em 2003, do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Um regime penitenciário de segurança máxima, onde o preso fica isolado em celas brancas, sem iluminação solar, saindo da cela apenas duas horas por dia para tomar banho de Sol.

“Ele permanece absolutamente incomunicável, não dialoga sequer com os agentes penitenciários e recebe a comida por baixo da portinhola da grade. Esse é o exemplo de um sistema, em que a ressocialização foi completamente abandonada", relata o advogado, apontando que a lei permite que o preso permaneça até 360 dias neste regime.

Outro exemplo da dominância dessa lógica da contenção hoje no país é o aumento excepcional do número de prisões e da penalidade. No Congresso Nacional, “todas as leis penais nos últimos vinte anos aumentaram as penas sob a ideia de que quanto maior a pena, menor a criminalidade", lamenta Salvador Netto, salientando que essa ideia se mostra falsa não apenas no Brasil, mas em qualquer lugar no mundo. “Nós temos um Congresso criminalizante que enche de pessoas os sistemas prisionais", complementa.

Além da atuação do Legislativo na ampliação das penas, há um segundo ator no regime de execução: o poder Judiciário que é composto por dezenas, centenas e milhares de varas judiciais espalhadas pelo país, cada uma com um juiz diferente. "O juiz da execução não é algo abstrato. É um sujeito concreto que tem nome e RG e uma compreensão sobre a pena. A maioria dos juízes, ousaria dizer, tem uma compreensão de maior punição do que de menos punição. Há um punitivismo no Judiciário", aponta.

Já o terceiro ator no regime de execução, o poder Executivo, se expressa através das secretarias estaduais de segurança pública em 27 estados. O resultado dessa estrutura, que não dialoga, é "uma imensa dificuldade de se ter uma ideia do todo, dada a segmentação dos atores responsáveis. Imagine 27 secretarias de estado construindo cadeias sem orçamento, milhares de juízes mandando prender e o Congresso aumentado as penas”.

Aumento do encarceramento
A resultante desse processo, dado o avanço da lógica da contenção na sociedade brasileira e nas instituições que atuam na área da execução penal se reflete no aumento alarmante do número de presos no país. Salvador Netto relata que, em 1990, os presídios brasileiros tinham 90 mil detentos. Em 2000, o número saltou para 200 mil pessoas e chegamos, em 2017, a mais de 670 mil pessoas superlotando os cárceres brasileiros.

"Estamos falando de algo como uma cidade como Ribeirão Preto, uma cidade média para grande inteira atrás das grades. O que nos dá a quarta população mundial em números absolutos", destaca o advogado. E pior: esta população tende a crescer. O curioso é que apesar do encarceramento, as taxas de violência permanecem altas. "Elas não são menores do que as de 1990, tampouco as de 2000. Isso mostra que a taxa de criminalidade e o número de presos são dois números que não tem nenhuma relação entre si", frisa Salvador Netto.

Outro fator agravante foi o fato do Brasil encampar, a partir de 1970, a guerra contra as drogas norte-americana, a chamada War on Drugs, e aprovar em 2006, na contramão do mundo, a Lei de Drogas. "Uma política fracassada que não deu certo em nenhum lugar do mundo, tampouco nos Estados Unidos, onde vários estados já vêm alterando a política de guerra contra as drogas", aponta.

Ao despenalizar a posse para uso próprio, elevando as penas do tráfico de drogas, a Lei fez com que hoje tenhamos uma representação de 50% de crimes patrimoniais e 48% de crimes de tráfico de drogas. “Os outros delitos são muito pouco representados, não são relevantes”, explica Salvador Netto. Em sua avaliação, uma das graves consequências desta lei foi permitir uma maior seletividade do perfil encarcerado.

"A distinção entre usuários e traficantes é feita com base em critérios totalmente abertos, em que o juiz decide o que bem quiser. Se o sujeito for detido com a droga em um bairro nobre da cidade isso é 'posse para consumo'. Se, ao contrário, ele for detido em um bairro pobre ou em regiões conhecidas como boca de fumo, isso é 'tráfico de drocas'. Temos claríssima vulnerabilidade de determinadas pessoas ou grupos sociais", alerta o advogado.

E avalia:

"O tráfico de drogas é radicalizado pelo preconceito que se coloca, não só na elaboração da lei, mas na execução e na decisão do juiz entre optar por um caminho ou outro. E estamos falando de uma opção entre prestação de serviços à comunidade a oito anos de prisão. Não é uma simples definição, mas algo que muda completamente a vida das pessoas".

O abandono do Estado
Destacando que o preso é, essencialmente, o jovem – “estamos falando de uma garotada de 18 a 30 anos” - Salvador Netto explicitou as condições das unidades prisionais do país, absolutamente superlotadas e medievais, diagnosticando o duplo abandono perpetrado pelo Estado brasileiro em relação a esta população:

"O presidio brasileiro é o reflexo sumarizado de toda a estrutura desigual e de abandono que o Estado brasileiro promove em suas outras e mais diversas facetas. E a história do preso é a história do sujeito que o Estado abandona durante toda a vida e só aparece na hora de prender. Aí vem o pior: o Estado o abandona a vida inteira e aparece na sua face policial: prende, coloca o sujeito dentro do presídio e o abandona de novo. "

O que mais assusta, alerta, é quando surgem propostas como a privatização de presídios. Propostas que sob o argumento de “não gastar”, servem “para afastar ainda mais o Estado da realidade prisional”. Citando o custo das unidades privadas como Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, ele é categórico quanto à falácia da proposta: “é uma solução que não convence por nenhum dos argumentos”.

Segundo o advogado, a saída para uma melhoria no sistema carcerário do país é justamente contrária à ideia da privatização: é preciso um efetivo “choque de apoio estatal às pessoas que estão presas”. Descrevendo a ausência do amparo estatal a direitos básicos como saúde, educação e até mesmo assistência jurídica nas unidades prisionais, ele destaca que o crime organizado surgiu, justamente, por conta dessa ausência de Estado no interior dos presídios.

“O Comando Vermelho não nasceu no morro carioca, mas no presídio da Ilha Grande no Rio; o PCC não nasceu na periferia paulista, mas no [presídio] de Taubaté", destaca Salvador Netto, ao alertar que “não podemos tirar o Estado ainda mais de dentro das unidades prisionais, para além do que ele já saiu”.

Esta foi, inclusive, uma das razões pelas quais ele deixou o CNPCP no começo deste ano (saiba mais aqui), entidade da qual era membro desde 2012 e presidia desde 2016. "Iniciou-se, ali, uma política de trabalhar a questão criminal exclusivamente sob a ótica da segurança e da contenção", destacou.

"Um dos problemas que fomenta conflitos dentro do cárcere é a situação de abandono, inclusive, jurídico", reitera, citando a situação absurda - e recorrente - de presos que não têm sequer conhecimento sobre o andamento de suas penas e do tempo que passarão na cadeia.

"Eu poderia ter dentro das unidades uma interligação com as varas de execução que permitissem ao detento extrair um print do processo penal. A rede bancária no Brasil é extremamente automatizada. Será que o Judiciário não consegue fazer isso?", questiona o advogado. "Isso é um respeito com o sujeito. É o Estado dizendo 'estou controlando sua pena, fique tranquilo, você não vai ficar preso mais tempo do que deveria'."

Mas, destaca o advogado, é justamente isso que acontece: "o sujeito fica muito mais tempo do que deveria", tentando sobreviver em condições medievais que todos sabemos quais são. Afinal, o abandono do Estado evidenciado em presídios como Alcaçuz (RN) não é exceção, mas regra no sistema prisional brasileiro.

Créditos da foto: Tatiana Carlotti

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