domingo, 14 de maio de 2017

MULHERES NO CÁRCERE - AS CONDIÇÕES DE MULHERES COM DEFICIÊNCIA E IDOSAS NA PRISÃO


Se o sistema já é inadequado e impeditivo de tantos direitos para as mulheres de uma forma geral, o gravame é ainda mais acentuado para aquelas com deficiência e idosas, cada qual com as suas especificidades.

por: Beatriz Vico

O sistema prisional já há muito tempo é questionado pelas suas inúmeras mazelas, como a superpopulação carcerária, seletividade da pobreza, condições degradantes, tratamento indigno, falta de salubridade, atendimento médico inadequado, alimentação precária, entre tantas outras violações de direitos. Além disso, é criticado pelo fato de não atender ao que se propõe, a tão esperada sensação de segurança e a falaciosa recuperação do ser humano.

Falamos, portanto, de um mecanismo sabidamente falido, mas que, mesmo assim, só cresce. O Brasil está em quarto lugar no ranking de países com a maior população carcerária e ruma para a terceira colocação, seguindo na contramão mundial de busca pela diminuição desse contingente e aplicação de medidas alternativas ao cárcere.

Em uma perspectiva de gênero, esse cenário ganha contornos ainda piores, pois, embora notório que o sistema prisional tenha sido pensado por homens e para homens, dados do Infopen indicam que as mulheres são cada vez mais aprisionadas. Em catorze anos, a população carcerária masculina cresceu 220%, ao passo que a feminina subiu 503%.

Nesse contexto, no dia 7 de março deste ano foi lançado o relatório “MulhereSemPrisão: desafios e possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres”, fruto de pesquisa realizada pelo Instituto Terra, Trabalho, e Cidadania (ITTC) durante dois anos, a partir do estudo de processos judiciais e entrevistas com mulheres encarceradas, cujo objetivo é ampliar conquistas em direitos, mudar a perspectiva dos membros do sistema de justiça e, como consequência, reduzir a prisão de mulheres.

Uma das principais conclusões da pesquisa foi a invisibilização das questões de gênero nos processos judiciais e na execução das penas, especialmente no tocantes às mulheres idosas e com deficiência.

Imagine, se o sistema já é inadequado e impeditivo de tantos direitos para as mulheres de uma forma geral, o gravame é ainda mais acentuado para aquelas com deficiência e idosas, cada qual com as suas especificidades.

Com relação a mulher com deficiência, salta aos olhos a incompatibilidade de um local que prioriza a segurança e o controle sobre o outro, com o respeito à vida e o desenvolvimento de autonomias, principalmente em se tratando de pessoa em especial situação de vulnerabilidade, como as mulheres com deficiência, que demandam suporte específico para o exercício de direitos básicos.

Durante as entrevistas realizadas na pesquisa, se detectou o estado de calamidade tão próprio da prisão. A título de exemplo, verificou que nas unidades em que não são disponibilizadas cadeiras de rodas, ou naquelas em que se quebram e não são repostas, há caso de mulheres que têm que se arrastar no chão para poder realizar atividades cotidianas. Débora, uma das entrevistadas, realizava todas as suas atividades sem a cadeira de rodas: “eu lavo roupa, eu limpo a casa. Eu ponho meu joelho na cadeira, vou para a pia, faço comida. Faço tudo arrastando a bunda no chão. (…)Tudo sozinha”.

O direito ao trabalho não é exercido em razão da falta de acessibilidade. E, esse quadro se agrava em se tratando de mulheres com deficiência visual que apenas leem através do braille, pois além de não admitidas para o trabalho, também não têm garantido o direito ao estudo por falta de material adequado, gerando seu isolamento.

Essa falta de atividade acentua os ônus da execução da pena, pois afora a solitude e o desânimo, gera discriminação, deterioração psíquica e física, impossibilidade de se auferir renda, logo, de adquirir produtos vendidos na unidade prisional, e ter sua pena reduzida.

Quanto às mulheres idosas, são frequentemente invisibilizadas no contexto prisional, o que dificulta a garantia de seus direitos, principalmente aqueles previstos no Estatuto do Idoso (Lei nº. 10.741/03). Pior que isso, muitas vezes a idade é utilizada como um elemento pejorativo contra essas mulheres, como narrado por Camila “Eles não respeitaram minha idade, nada. Foi ‘velha filha da puta’, ‘velha do caralho’, ‘velha sem vergonha’. (…) Um deles falava assim ‘eu arregaço a boceta dela e você arregaça o cu’”.

Não há qualquer especial preocupação com o estado de saúde das mulheres idosas, de forma que elas não recebem atendimento gerontológico na prisão, tampouco têm as fragilidades da idade levadas em conta no momento em que tomam banho frio, dormem no chão, são mal alimentadas e permanecem em um ambiente insalubre. Ao contrário, verifica-se que, na prisão, novos problemas de saúde surgem e os preexistentes permanecem.

Outro elemento desprezado em relação a elas é que as condições de envelhecimento variam conforme a incidência de vulnerabilidades sociais, econômicas, e a partir do ingresso no cárcere. Assim, uma mulher com um histórico de vida marcado pela pobreza, longas jornadas de trabalho (dentro e fora de casa), marginalização social, e ingresso no sistema carcerário, passa por um envelhecimento precoce que não pode ser despercebido pelos atores do sistema de justiça no processo judicial e no cumprimento da sua pena.

A solidão também é algo pouco falado e, embora atinja as mulheres presas de um modo geral, é mais acentuada com relação às idosas e às mulheres com deficiência. Em situação de maior vulnerabilidade, elas acabam se isolando mais em suas celas, interagindo menos com o mundo externo e com as demais companheiras presas, gerando um aprofundamento do processo de envelhecimento e menor desenvolvimento de autonomias, além da tristeza, depressão etc.

Por isso, a conclusão inevitável é de que a reclusão é incompatível com a condição de pessoa idosa ou com deficiência, devendo se aplicar os mecanismos desencarceradores já previstos em lei para essas mulheres, como a prisão albergue domiciliar, que admite o cumprimento da pena em casa, se esse for considerado o ambiente mais adequado de acordo com as necessidades e a história de vida dessas mulheres .

Outro mecanismo legal que merece destaque, é o recente decreto de indulto para o dia das mães, publicado no dia 12 de abril deste ano, que, de forma inédita dirige-se às mulheres, demonstrando atenção às peculiares questões de gênero, e aborda de maneira mais ampla que os decretos anteriores, mulheres com deficiência e idosas.

O decreto de indulto é um ato próprio do Presidente da República que pode perdoar a pena ou reduzi-la, se cumprido seus requisitos. Com relação ao último decreto, exige-se à mulher idosa o cumprimento de um sexto da pena antes do dia 14 de maio de 2.017, a ausência de falta grave durante o cumprimento de sua sanção e que não responda ou tenha condenação por crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa. No caso da mulher com deficiência, são necessários os mesmos requisitos, dispensando-se apenas o cumprimento mínimo da pena.

Nesse sentido, verificado que já temos alguns mecanismos jurídicos desencarceradores capazes de desacelerar o crescimento do sistema carcerário, garantindo uma vida mais digna àqueles que passaram pelo ciclo criminal, precisamos discutir e incentivar o manejo desses recursos pelos atores do sistema de justiça.

O relatório MulhereSemPrisão e as Regras de Bangkok trazem essa discussão de forma aprofundada, apontando para o desencarceramento como o melhor caminho a ser seguido, pois nenhuma outra solução atende às peculiares condições físicas, psíquicas e de gênero, e sugere medidas a serem adotadas pelos atores do sistema de justiça. Por isso, convidamos a todos para seguir o debate sobre essas e outras especificidades do tema no segundo evento do ciclo de debates #MulhereSemPrisão, a ser realizado no dia 09 de maio deste ano na Livraria Tapera Taperá.
Beatriz Vico é  pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do ITTC – Instituto Terra Trabalho e Cidadania


Nenhum comentário:

Postar um comentário