terça-feira, 20 de junho de 2017

Na Europa ou América Latina, encarceramento está longe de ser a solução para a sociedade

       Foto: Reprodução


Dia desses recebi parte de uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos que condenava a raspagem obrigatória do cabelo de detentos. Naturalmente, como no mundo, além da falta de amor também há falta de interpretação de texto, houve quem discordasse da decisão e inadvertidamente opinasse sobre o perigo de seus efeitos, uma vez que os presos usariam o cabelo e a barba para esconder drogas e objetos proibidos. 

Ora, se for para adentrar neste ponto, é óbvio que meios mais eficazes e apropriados para manter a segurança de uma unidade prisional podem ser desenvolvidos, passando longe dos pelos humanos, a começar por ambiente salubre e celas individuais, com áreas comuns monitoradas.

Mas, como esse tipo de argumento não merece maiores digressões, pois contaminado por um fundamento equivocado de que os presos são inimigos, assim como seus familiares e que se está numa guerra, quando na realidade a função do Estado, ao lado de amparar vítimas da violência, é cuidar das pessoas custodiadas, o importante aqui foi o fundamento usado pela Corte Europeia. Para ela a mudança forçada da aparência de uma pessoa pela remoção do seu cabelo fará essa pessoa experimentar um sentimento de inferioridade, uma vez que sua aparência física é transformada contra sua vontade.

A conclusão foi que a raspagem forçada do cabelo de detentos é fundamentalmente um ato que pode ter o efeito de inferiorizar a dignidade dos prisioneiros ou despertar sentimentos de inferioridade capazes de humilhá-los ou os degradar. 

Quando leio decisões como essas, o sentimento que tenho é que estamos nós, no Brasil, muito longe, mas muito longe mesmo de compreender e respeitar os direitos humanos. O Estado está em falta nesse quesito. Não conseguimos ainda disseminar e fazer entender que os direitos humanos, resultado de processo histórico evolutivo, protegem a todos, indistintamente, e devem servir como barreira contra governos que insistem em manipular regulamentos e leis para poder violar a integridade da célula humana. E quando o assunto é sistema carcerário, então sim, parece que todos os dias somos estapeados por essa vergonhosa e cruel violação.

A discussão por estas terras não é sobre cabelo. Estamos ainda discutindo sobre a lei da física que não permite que dois corpos ocupem o mesmo espaço ao mesmo tempo (660.000 presos para cerca de 350.000 vagas); estamos tratando de ausência de trabalho e estudo para detentos, falta de colchões para dormir, com os existentes dispostos num chão úmido e sujo, onde saneamento não há; trabalhamos com complexos prisionais que recebem pessoas que ficam nuas em celas, sem acesso a banheiro ou por vezes permanecem algemadas em corredores dias e dias na espera de destinação a uma galeria faccionada ou não. 

Em minhas visitas em unidades prisionais no exterior – ressalvadas as americanas cujo exemplo não pode ser tomado pois lá vi um sistema superlotado de pretos e latinos, cujo fim geral é a exploração da mão de obra por grandes conglomerados (os EUA possuem a maior população carcerária do mundo com cerca de 2.500.000 presos) – na Itália (Saluzzo), França (Poissy) e Alemanha (Arnstadt) encontrei presos com celas individuais, providas de banheiro, cama, vestuários, guarda-roupa, televisor e telefone.

E mais, naquelas unidades o trabalho era ofertado para todos, com qualificação profissional que ia de aulas de alta gastronomia a feitura de candelabros e recuperação de arquivos históricos. Até uma cervejaria com mestre cervejeiro condenado a mais de uma década de prisão eu encontrei. Os presos tinham aulas de boxe, basquete, vôlei etc, ministradas por professores de educação física renomados e reconhecidos entre a elite desportiva de seus respectivos países.

Eram unidades onde a clareza de que o que o detento perdeu tinha sido a liberdade, nada mais, estava estampada nas faces dos trabalhadores do sistema.

Quando dessas visitas, os diretores confidenciavam-me que nem tudo era tão correto e respeitador dos direitos humanos como me era mostrado, havia unidades onde por exemplo dois ou mais presos dividiam cela e onde faltava trabalho. Eu fazia expressão de espanto, mas não pelo que me diziam e sim porque lembrava do sistema brasileiro. Sobre este, porque a troca de experiências não era o motivo de minhas visitas, eu deixava de relatar as experiências.

"Não dizia que no Presídio Central de Porto Alegre com seus 5.000 presos não havia saneamento e que o esgoto escorria aberto pelos umbrais de um prédio que não era reformado fazia mais de 20 anos. Não relatava que em Pedrinhas/MA um detento podia simplesmente desaparecer dentro da unidade, sendo morto e tendo o corpo desfeito. Não contava que em Campo Grande/MS, a chamada “Máxima” possuía 2.500 detentos em celas contendo 25 presos para 4 a 6 vagas e com os recursos humanos restringindo-se a 10 agentes penitenciários por plantão, em processo de adoecimento diante das agruras insuperáveis do trabalho. Tampouco mencionava o sistema prisional catarinense, com idênticos e graves problemas e violações humanas, da superlotação à falta de fornecimento de kit higiene e vestuário."

Durante as visitas nas prisões desses países europeus eu sempre mantinha o pensamento no Brasil e no horror a que jamais poderíamos nos acostumar a viver. E agora, sentimento semelhante novamente me acometeu quando li a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos sobre o cabelo. Por que não podemos buscar padrões prisionais efetivamente baseados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas Regras Mínimas da ONU para tratamento de prisioneiros (Regras de Mandela), nas Regras de Bangkok sobre a condição das mulheres que estão presas, na Constituição Federal? Por que não podemos ter simplesmente a Lei de Execução Penal cumprida?

As prisões, tenho para mim, nunca serão meios adequados para se chegar a um mundo não violento, sejam elas na Europa ou na América Latina. O caminho para a evolução da sociedade humana, onde a felicidade passe a ser algo palpável de se alcançar, está longe do aprisionamento. Essa evolução trilha o caminho da igualdade de oportunidades, da garantia das liberdades públicas, da tolerância entre as pessoas e compreensão das diferenças e do absoluto respeito aos direitos humanos.

A Europa, ao menos boa parte dela, forjou esses postulados em seus castelos e ainda que esteja longe de concretizá-los em sua integralidade (vide as questões migratórias) tem esse norte como irrenunciável. Ou o Brasil segue o exemplo e as autoridades públicas legitimam seus cargos, honrando a Constituição, cumprindo seus compromissos de defender, valorizar e afirmar a declaração universal dos direitos humanos ou estaremos todos condenados. Lembremo-nos: a roda da história é implacável.
João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC​. 

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