terça-feira, 20 de junho de 2017

Um vice para ser usado duas vezes

Um vice para ser usado duas vezes

Um vice para ser usado duas vezes

Por Raphael Silva Fagundes

Uma proposição é tudo o que pode ser verdadeiro ou falso.
Ludwig Wittgenstein

Não faz muito tempo que os franceses tiveram que adotar o voto útil para não permitir a vitória de Marine Le Pen, candidata da extrema-direita. Algo parecido aconteceu por aqui, salvando as devidas proporções, nas eleições de 2014. Diversos membros das esquerdas assumiram que se valeram do voto útil para impedir o retorno do PSDB, principalmente por causa de seu tenebroso pacote de privatizações. Muitos se decepcionaram, é verdade, mas esse voto útil, além de trazer algumas frustrações, trouxe também Michel Temer à presidência da República. Hoje, grande parte da população rejeita o governo do presidente não eleito, no entanto, incessantemente, um grupo considerável sustenta um argumento pobre e conveniente: “quem votou na Dilma votou no Temer”. É uma proposição verdadeira ou falsa?
“Não é o ódio ao judeu ou ao homem de esquerda que a mensagem fascista significa: é 'Excluamos! Só assim conseguiremos tomar consciência daquilo que nos une’”. Essa unidade é promovida quase sempre pelo discurso do combate à corrupção.

É comum que certas pessoas criem respostas com que os homens se auto-satisfaçam quando têm necessidade de se assegurarem por meio das ilusões, que frequentemente acabam por ser exclusões. Absorvem um discurso, sem reflexão alguma, apenas para se eximir de culpa, porque é muito mais fácil adquirir que compreender. Por isso a facilidade de aderir a argumentos pobres. Ficções retóricas, como explica o filósofo Michel Meyer, que pretendem apenas vencer uma discussão de bar. Por isso, convenientes, porém raquíticos. É perigoso demais esse argumento retórico que busca identificar os culpados e excluí-los. “Não é o ódio ao judeu ou ao homem de esquerda que a mensagem fascista significa: é 'Excluamos! Só assim conseguiremos tomar consciência daquilo que nos une’”. Essa unidade é promovida quase sempre pelo discurso do combate à corrupção.

Os mesmos que criaram um julgamento tácito ao falar que “quem votou na Dilma votou no Temer”, são os que colocam a camisa, mesmo que mentalmente, com as seguintes palavras: “A culpa não é minha, eu votei no Aécio”. Para alguns desses (principalmente os populares seduzidos) o voto também foi útil. É nessa tolice do voto útil que todos caímos na armadilha a qual nos alertou Antonio Gramsci, de acreditar que “um mal menor é sempre menor que um subseqüente possivelmente maior”.

A última vez que as eleições para vice foram diretas foi nos anos 1960 quando Janio Quadros tornou-se presidente, tendo como vice, elegido popularmente, João Goulart, o Jango. Quadros era uma figura confusa, pois mesmo aliado a UDN, grupo de tendência entreguista e inimigo visceral do populismo varguista, condecorava comunistas. Queria agradar todo mundo. Sua renúncia, no entanto, após sete meses de mandato, abriu espaço para João Goulart, um populista que flertava com a esquerda. Setores da direita fizeram de tudo para enfraquecê-lo, até que finalmente o Golpe de 1964 foi dado. Após os tórridos anos de ditadura militar, com o advento da anistia geral e o retorno da democracia, o voto para vice-presidente foi instinto.

Depois disso se alguém votou no Collor votou também no Itamar Franco, se votou em FHC elegeu Marco Maciel, se votou em Lula, José Alencar acabou sendo agraciado com a bandeira presidencial e se, por fim, votou na Dilma votou igualmente em Temer. Mas nos anos 2000 houve uma novidade nessa curta tradição. A chegada do PT ao poder foi marcada pela presença de empresários, o seu próprio vice, José Alencar do PL, era um exemplo de empreendedor bem sucedido. E do bordão: “a esperança vai vencer o medo”, o primeiro sentimento, combustível de toda ação humana, servia aos pobres, enquanto que o medo, razão pós-moderna para a vida em comunidade, adequava-se a burguesia, que não precisava mais temer o PT. Promove-se a união de um ex-operário e de um empresário. Entronou-se a conciliação de classes.

O PT sobe ao poder vigiado pelas elites sempre desconfiadas. Se aquela política não desse certo seria facilmente substituída colocando o vice, representante dos interesses empresariais incondicionais. Muito mais fácil que acionar os militares, não? As estruturas para um golpe (do modelo que foi consolidado em 2016) sempre estiveram presentes, esperando algum vacilo, um motivo para se manifestar. Temer não traiu ninguém, apenas foi acionado quando útil. O PT tentou até o fim jogar o jogo da política, até o momento que não foi capaz de se sustentar.

O golpe de 1964 se realizou porque o vice-presidente tinha uma tendência à esquerda, a uma política de reformas que visava amenizar (não acabar) com as discrepâncias na distribuição de renda, e por isso deveria sair, enquanto que em 2016 o vice Michel Temer era um grande aliado das corporações internacionais com o seu projeto “Ponte Para o Futuro”, o qual acelera a canalização das riquezas produzidas no País para uma classe dominante, e por isso deveria ficar. No primeiro momento a entrada do vice estimulou o golpe, no segundo o vice era o trunfo para o golpe para trazer a luz um projeto de poder que o PSDB, grande articulador do golpe, fez questão de pôr em prática.

A partir daí, podemos concluir que quem votou na Dilma não votou no Temer, simplesmente porque se trata de projetos de nação diferentes, embora não contraditórios. A existência de uma chapa é muito importante para legitimar a ideia de que só um projeto existe. Não é tão claro como quando as eleições de vice eram diretas, quando Janio Quadros e João Goulart defendiam projetos de nação diferentes, embora não tão contraditórios.

Essa última investida do golpe que denuncia Michel Temer é um ingrediente ainda mais forte para enfraquecer o PT e resumir os dois a um único projeto de poder: a corrupção. Se não é possível provar que Dilma é corrupta, há provas de seu vice. É preciso acelerar o processo; não acredito que tenha sido “só para encher o saco”. A corrupção é a única explicação clara e incontestável para o brasileiro comum que odeia política e que começa a se interessar pela mesma, nadando à deriva, sem nenhum equipamento de mergulho, em um mar desconhecido. Mesmo sem a cassação da chapa Dilma-Temer, a mídia, alimentada pelas grandes corporações, e os membros da direita oportunista, irão continuar se esforçando em não dissociar os dois para no futuro apresentarem o seu candidato e ainda saírem como heróis. Temer, então, torna-se útil novamente.

Também é fato que a política lida com a esperança, o porvir no qual os eleitores se identificam. Ou seja, votar no PT era acreditar na promessa que se mostrou diferente ao que foi apresentado pelo PSDB, mas, na prática, muitas semelhanças podem ser identificadas. Foi o erro de quem hoje se diz de esquerda. Talvez o PT tenha aprendido a lição e não force centenas de brasileiros a votarem na sigla por falta de opção, mas porque de fato assumiu sua posição no conflito de classes que move a engrenagem da história.

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
COSTA, Edmilson. A lenda do mal menor ou a arte de votar útil e ganhar um governo inútil. Disponível em:  HYPERLINK "http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8012:a-lenda-do-mal-menor-ou-a-arte-de-votar-util-e-ganhar-um-governo-inutil&catid=134:eleicoes-2014" http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8012:a-lenda-do-mal-menor-ou-a-arte-de-votar-util-e-ganhar-um-governo-inutil&catid=134:eleicoes-2014. Veja também: MENDES, Leonardo. A maldição do voto útil. Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-maldicao-do-voto-util/
MEYER, Michel. Questões de retórica: linguagem, razão e sedução. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 154
Id. p. 137.
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 22.
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 22.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 2007. p. 187.

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