segunda-feira, 17 de julho de 2017

Lula condenado. Leitura emocional de uma sentença torpe, por Armando Coelho Neto


Lula condenado. Leitura emocional de uma sentença torpe

por Armando Rodrigues Coelho Neto

O que me sobra de experiência por três décadas na PF, me falta na magistratura. Não sou pessoa adequada para comentar uma sentença judicial. Recordo que durante os debates sobre a PEC 37 (expurgada, esquecida e desconhecida), quando se perguntava sobre o poder investigativo da PF, bastava apontar o artigo 144 da Constituição Federal. Quando se fazia a mesma pergunta em relação ao Ministério Público, era necessário escrever uma tese, pegar uma decisão aqui, um fragmento interpretativo ali. Em suma, há algo de errado quando é preciso explicar muito. Eis que Sérgio Moro, para condenar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva falou demais no desnecessário (desenvolver tese) e de menos onde tinha que ser claro: apontar a prova.
Gosto muito de historinhas pessoais. Quando trabalhei numa determinada região do Brasil, tomei conhecimento de que um grupo de pessoas estaria se organizando para enviar um aparelho de som para minha casa. A encomenda viria de São Paulo em nome de meu sogro que nunca tomou conhecimento do assunto. Na prática, um bando de puxa-saco “querendo fazer média” ou me julgando “mais um”. O plano não se concretizou e nem foi o primeiro. Nesse sentido, posso imaginar quanto o juiz Moro é assediado, quantos convites recebe para jantares, palestras, comendas, isso e aquilo. Posso deduzir quanto a tudo isso recusou. Se eu, um humilde delegado fui intensamente assediado por mais de três décadas na PF, posso deduzir que o “Caso Tríplex” foi mais um caso desses.

É possível que Lula possa até ter “balançado”, mesmo sendo homem de perfil simples, desprovido de ganância - ainda que a liturgia do cargo tenha dele exigido algum requinte depois. Ganância, não. Lula é um soldado que foi para guerra fazer um resgate histórico, e, nela, precisou ferir e foi ferido. Lincoln para acabar a guerra nos Estados Unidos precisou comprar votos. Não sei que anéis deu para salvar dedos, mas Lula de há muito não é mais Lula. É patrimônio do Partido dos Trabalhadores e do povo brasileiro, razão absoluta para não ter sua imagem maculada. Nesse sentido, tanto Lula quanto o PT têm a ideia do que seria perder o único nome praticamente imbatível em troca de uma “apartamento de BNH melhorado”, no dizer de Paulo Maluf.

O suposto tríplex do Lula soa como a mala de dinheiro de Roseana Sarney, que não pagava sequer uma campanha para vereador, mas a ruma de cédulas de dinheiro espalhadas na mesa, com transmissão da TV Globo em horário nobre encheu de espanto os olhos dos mais humildes. O único patrimônio real de Lula é imaterial, um bem maior nacional que Moro, deliberadamente, se negou textualmente a julgar ou considerar. Até o ministro Marco Aurélio, para mandar Aécio Neves de volta ao senado, levou em conta sua discutível história política. Mas, Moro fez questão de ignorar e mergulhou, aparentemente, num delírio paranoico-messiânico, num ensimesmado surto de “fiz minha parte”.

A sentença de aparência técnica razoável, aqui ali ganha ar infantil, raivosa, especulativa até se tornar modorrenta. Poderia ter sido proferida antes ou depois de 12 julho para não coincidir com a gatunagem contra os direitos dos trabalhadores. Moro poderia ter condenado Lula a oito ou dez anos, mas foi nove, deixando no ar um cheiro de “nine” – a jocosa e mórbida alusão ao dedo que falta em sua presa. Moro encerra o caso Triplex de forma melancólica, ainda que com o apelo midiático como iniciou, inspirado pelo ódio catalisado por Aécio Neves, com quem Moro aparece em fotos de causar inveja em propaganda de creme dental.

O esquema criminoso do submundo da política de tão público não precisa ser demonstrado. E, a despeito de qualquer doutrina especulativa, pelo menos para o caso, é inexorável definir a objetiva participação dos autores, individualização de autores e penas, para ninguém ser punido por erro ou no lugar de outrem. Em razão do cargo, da pessoa e das circunstâncias, definir de forma objetiva a ação delituosa do ex-presidente seriam ou são requisitos dos quais não se poderia abrir mão. Em seu lugar, porém, decisões e teses isoladas que se amoldam à parcialidade e politização - nódoas inarredáveis da Farsa Jato.

Como política não se faz sem dinheiro, e não foi o PT quem inventou isso, os autos mostram que aquele partido foi beneficiado e alguns petistas boca de jacaré também. Mas, numa sentença, não vale essa de se o PT levou 1% em contratos, e se Lula é PT, “logo levou algum”. É nesse ponto que a sentença condenatória ganha ares de matéria de jornalão. O texto, em narrativa e conclusão, endereça o leitor ao título: “Lula é ladrão e o tríplex é dele”. Palmas para o PowerPoint! Acabou a corrupção no Brasil! “We don’t need another hero”!

Mas, sentença não é matéria de jornalão e precisa de provas admitidas no direito. É aqui que o bicho pega. Sérgio Moro desqualifica logo de plano a prova material exigível: registros de propriedade, anotações, escrituras. Mas, sugere que a prova no Direito Civil, “no caso”, não serve para o Penal... Inicia a teoria do ódio, pois Carteira de Identidade é documento civil e é com ele que se prova no Direito Penal que fulano não é beltrano. Se o imóvel está em nome de terceiro, está penhorado ou com gravame qualquer em nome de outrem não é do Lula. Na falta de documentos que se provem posse, domínio, controle. Mas, diante da falta de documento, Moro diz que houve “ocultação singela” de bem...

Moro se justifica demais na sentença e nega parcialidade. Mas, enroscou-se em campanhas, fez apelos à mídia, tolerou a execração de um réu sob seu ofício magistral, foi aplaudido por isso e gostou muito: ganhou medalhas e notoriedade. Só isso o tornaria parcial, não houvesse também claro alinhamento ideológico. Moro pediu apoio da mídia para elaborar o que já tinha pronto na cabeça. Ninguém escreve uma sentença daquela do dia para a noite. Mas, Moro tem pressa e, coincidência ou não, várias de suas decisões coincidiram com fatos políticos, até em vésperas de pleito eleitoral. Diz que a imprensa a quem chamou e municiou apenas cumpriu seu papel e que isso não é parcialidade. Mas, precisou decidir de acordo com a narrativa dela. “Livre interpretação”.

Eis o que o maior líder do país é acusado de um crime com definição prevista em lei, mas que a adequação da conduta à norma (exigível em lei) é diáfana, difusa, sem local e hora, quase metafórica.

A sentença revela Sérgio Moro como um ser humano precário, distante da vida real. A leitura torpe que faz de Lula o distancia das raízes nacionais. Vê ameaça e intimidação em reações naturais de quem se sente ofendido - o tal “jus sperniandi”. Até a frase “somos todos professores” de Cristiano Zanin recebe um maldoso negrito na sentença. É como se sentisse no direito de bater sem revide. Admite controvérsia na condução coercitiva de Lula e divulgação de gravações e se justifica muito. Mas, na falta de provas matéria de O Globo serve, como se notícia de jornal dispensasse de prova, em detrimento de escritura, penhores, gravames.

De outro giro, constata-se o superdimensionamento de mensagens entre terceiros, papeis sem assinaturas, protocolos de intenções, nenhum deles da lavra ou endosso do réu. Em última análise, seriam atos preparatórios não puníveis, por estarem no campo cogitações. Com as exceções legais, claro!

A condenação tem suporte no que soa pegadinha: uma testemunha foi obrigada a responder pergunta com duas respostas alternativas, ambas incriminatórias. Algo assim, ele “roubou para fazer o bem ou o mal”? Moro estranha Lula não saber por que o imóvel não foi posto a venda (Não seria melhor perguntar a OAS?). Anota contradição por Lula ter dito ora que desistiu do apartamento na primeira visita, ora na segunda. Esquece a máxima elementar que de uma história recontada muitas vezes é preciso captar a essência - só respostas ensaiadas são iguais.

Qual a essência? Na primeira ou na segunda vez Lula não comprou, não ganhou, não recebeu, não se beneficiou nem direta nem indiretamente. A rainha das provas (documental) é destronada na sentença e quem assume é a jabuticaba, a "Katchanga real" (obrigado Lenio Streck!, perdão juiz pela metáfora).

Indícios sugerem que quiseram dar um tríplex a Lula, mas nada prova que aceitou, recebeu, usufruiu, desfrutou. Desse modo, sem apontar um ato sequer de gestão na Presidência ou na Petrobras praticado por Lula; um papel sequer assinado por este, Moro converte sua convicção em prova e aponta Lula como beneficiário de “uma conta geral de propinas” decorrentes de contratos, em troca de favores indefinidos, não declarados, nunca escritos ou verbalizados. Quanto recebeu? Onde, quando, como?

Tudo ficou resumido a um tríplex no tucanistão do Guarujá, onde farofeiro não entra.

Em que pese o elogiável esforço dos oficiantes na busca da verdade real, escravos da condenação antecipada, faltou humildade para admitir inexistência de prova. E o tríplex se tornou numa espécie de viúva Porcina - aquela que foi sem nunca ter sido.

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