terça-feira, 25 de julho de 2017

Você tem medo de quê?

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De não ter casa própria, carteira assinada, aposentadoria? Do fracasso, do vexame? E se esquecêssemos o ridículo para temer apenas a finitude ou, pior, a ausência de sentido?

Por Maria Bitarello | Imagem: Ricardo Ponce, Medo

Outro dia um amigo me disse o seguinte: “Meu instinto é classe média”. Ou seja, quando o bicho pega, os sistemas de defesa do seu corpo e mente o levam pro lugar que ele conhece como seguro – e ele não parecia satisfeito com essa constatação. Ele queria dizer que, por exemplo, tem medo das ruas da cidade à noite, que tem o instinto de atravessar pra calçada mais iluminada, que logo quer pegar um táxi e, também, outro exemplo, que quando a vida fica muito incerta suas defesas logo acionam o alerta que pisca em letreiros luminosos dizendo “arrume um emprego!”, tenha carteira de trabalho assinada, compre a casa própria, tenha 13o, declare o Imposto de Renda, garanta sua aposentadoria e plano de saúde privado. E, no entanto, ao mesmo tempo, ele sabe que nada disso importa tanto assim – e não digo isso por causa da reforma trabalhista do apocalipse. É porque o buraco é mais embaixo mesmo.
Dizem que quem tem cu tem medo. Trocando em miúdos, todo mundo. É lá, aliás, que anatômica e energeticamente se encontra o chakra da coragem, conforme aprendi faz pouco. E, sim, medo em instância primária preserva a vida, pois ele é acionado quando nossa integridade física é ameaçada. Mas medo também é cultural, como falamos acima. E para não sermos cerceados pelos desse tipo é preciso estarmos atentos e fortes. Todos nós. Pois se o medo, como o cu, é universal, então somos todos iguais – irmãos em pavor e anatomia. E isso deveria ser o suficiente pras darmos um fim no receio de que os outros saibam que sentimos medo. Pra não perdermos mais tempo com distrações.

A questão verdadeira é a existência, a transcendência, a morte. O grande mistério da vida, que é inalcançável. Pode ser um sentimento avassalador dependendo da hora da madrugada em que bater. Fascínio e horror, juntinhos. E diante dele estamos todos sozinhos – apesar das distrações que arrumamos por aí. Nos iludimos com a ideia de que a casa própria ou o nascimento do primogênito vão sanar essa angústia, mas são ilusões passageiras. E essa, penso eu, é a fonte real, a origem de todos os nossos receios: o medo da finitude e, talvez pior ainda, o da falta de sentido.

Contra esse oco, a gente se agarra a todo e qualquer tipo de salva-vidas. Religião, ciência, família, trabalho, drogas, ideologias ou, pior, o cinismo. Eu prefiro as artes. Primeiro porque, como Nietzsche diz em O Nascimento da Tragédia, “só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”, e eu concordo cada vez mais com essa premissa. E, além do mais, com as artes há catarse. Artistas são versões crescidas de crianças. E crianças sabem das coisas. Como elas, artistas estão aptos, a qualquer momento, a irromper em brincadeira. Aceitam propostas lúdicas com facilidade encantadora. E, glória das glórias, são muito menos acometidos pelo medo do ridículo, que é a versão social do nosso senso de sobrevivência e preservação corporal.

O vexame, a ruína, o fracasso são todos espécies de atentados à vida social. Evitâmo-los ao máximo. Porque eles podem gerar rejeição e nosso terceiro maior pânico, segundo eu mesma – logo depois da falta de sentido e da finitude –, que é deixarmos de sermos amados. A prontidão dos artistas a se exporem ao ridículo é um convite a perdermos esse medo tão real quanto besta e que nos paralisa por tão pouco. Afinal, você vai morrer mesmo. Qualquer ridículo sofrido será temporário. A constatação do fim coloca tudo em perspectiva e de repente já não dá pra sofrer por qualquer coisinha nessa vida finita. Então, na dúvida, não se leve tão a sério. Solte a franga. Faça papel de bobo. E tudo bem se sentir medo. Afinal, coragem não é ausência de medo. É prosseguir apesar dele. Evitando atalhos.

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