domingo, 6 de agosto de 2017

Diversidade, desigualdade, o maravilhoso mundo novo do pós-golpe

escravidao-ebc

Reginaldo Moraes
http://brasildebate.com.br/

Diversidade é o que havia na minha escola pública. O que temos hoje é desigualdade e cada um confinado ao seu gueto. Isso não é pós-moderno, é pré-antigo. Depois da tal reforma trabalhista, estou sentindo no lombo uma queimadura incômoda...

Quanta desigualdade pode suportar uma democracia? E quanta democracia pode suportar a desigualdade? Não, este artigo não vai enveredar por essa discussão que arrisca resumir-se na famosa charada Tostines: vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Não, aqui vai uma reflexão mais subjetiva, feita de memória, em tempos de pouca memória.
Se nunca escutou, escute Lulu Santos cantando Minha Vida. Vale pelo balanço da balada tropical, mas vale também pelas tiradas. Uma das que mais gosto: “… Aí veio a adolescência e pintou a diferença… a garota mais bonita também era a mais rica”. Pois é. Ou melhor, assim era, hoje não é. Já houve tempo em que a mesma escola abrigava a garota rica e o garoto pobre. Lembro-me disso no meu curso ginasial no começo dos anos 60. I’m sorry, periferia, isto não existe mais.

Eu morava na Vila Leopoldina. Naquele que então era um bairro operário a 40 minutos da Lapa. Hoje é uma selva de prédios metidos a besta, as fábricas e casas operárias, construídas em finais de semana, foram “reurbanizadas”, ou seja, nadificadas. Naquele tempo dizia Jesus a seus apóstolos: uns e outros vão juntos para a escola. E iam. Eu tinha colegas que moravam na elegante City Lapa, palacetes ajardinados. Alguns dirigiam (mesmo sem idade para tanto) e fumavam Marlboro importado. Calça Lee, também importada. Mas frequentavam aquela escola e jogavam futebol na mesma quadra. Eu xingava a mãe deles e vice-versa. De vez em quando, uns socos trocados marcavam a convivência de pobres e não-pobres.

De vez em quando eu emprestava a bicicleta de meu tio, que estava suando no torno da fábrica, e ia para mais a oeste, em direção ao Jardim Piratininga e Rochdale, bairros de Osasco. Era a mancha urbana se espalhando, com ruas e casas ainda mais precárias. O eixo imaginário City Lapa- Piratininga era o máximo de estratificação que podia ver.

Dizia o jingle da TV: O tempo passa, o tempo voa e a poupança Bamerindus continua numa boa. O Bamerindus afundou, mas as rendas de poupanças sobem, os salários estancam. O edifício social continua com dois andares, mas agora não há escada entre eles e nenhum espaço de convivência comum. Viva a diversidade? Não me venham com esta. Diversidade é o que havia na minha escola pública. O que temos hoje é desigualdade e cada um confinado ao seu gueto. Isso não é pós-moderno, é pré-antigo.

A menina mais rica já não vai atormentar Lulu, ela estuda em um colégio de 3 mil reais ao mês, mora em condomínio fechado, frequenta círculos seletos de seus iguais e passa férias em Miami ou algo assim. Não é o pessoal da Praia Grande nos finais de semana. Nem do churrasco na laje. Quando essa menina vê um desses espécimes da plebe tem um sentimento distinto – medo, repulsa, asco? Pessoas que têm cachorros de raça acabam ficando com o cérebro do cachorro, diz um jornalista espanhol. Faz sentido.

A confortável teoria do sacrifício temporário

Um economista antigo dizia que era assim, tinha que ser: o desenvolvimento inicialmente aumenta as diferenças, depois a riqueza dos de cima vai pingando para os de baixo e melhorando a vida da plebe. É só no começo, dizia ele, depois melhora. Diziam-nos isso nos anos fervilhantes do desenvolvimentismo dos anos 50. Depois repetiram a coisa no milagre dos 70: primeiro o bolo cresce, depois ele se espalha e se divide… Venderam-nos os tais “ajustes estruturais” do World Bank com a mesma ladainha. E agora… Volta a fábula, com palavras flamejantes: aprimoramento do mercado de trabalho, desengessamento, liberalização e meritocracia.

Um exemplar cético do pelotão de baixo pode ruminar: é conversa para boi dormir. E de fato os bois dormem. Um ou outro, porém, pode pensar e, quem sabe, murmurar: sai dessa, vaqueiro, sei bem que nós dois vamos pro mesmo churrasco, mas você vai mastigando e eu vou mastigado.

Mais uma vez com Lulu Santos: assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade. A boiada segue. Torço para ouvir o famoso “mas um dia me montei” do Vandré. Bem ou mal, faço o que posso para que a paisagem mude, porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente. Talvez seja diferente, mas, depois da tal reforma trabalhista, estou sentindo no lombo uma queimadura incômoda… E vejo nele a marca, o nome de nossos senhores. Sai Lulu, entra Stanislaw Ponte Preta: E foi proclamada a escravidão.

Crédito da foto da página inicial: EBC

É professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo. É colunista do Brasil Debate

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