terça-feira, 22 de agosto de 2017

O combate à corrupção é, no Brasil, amigo do banditismo

Limpeza.jpg


O combate à corrupção é, no Brasil, amigo do banditismo Por Walfrido Jorge Warde Junior

Advogado em São Paulo. Sócio fundador de Warde Advogados.
Presidente do Instituto Brasileiro para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa - IREE.

O mote deste artigo não promove uma polêmica irresponsável. 

Não critico o combate à corrupção, tampouco faço apologia à delinquência, muito ao contrário. 

O que me desagrada é o modo como temos tratado desse mal que assola o país, sobretudo desde o final da ditadura militar. O tratamento jurídico do problema, acredito, presta serviços muito mais a aprofundá-lo (o problema e as suas consequências), do que para prover soluções honestas e definitivas. E, nesse contexto, as empresas, sob a premissa de que o capital não prescinde do Estado (estou certo de que, para concluir nesse sentido, sinceridade é mais importante do que intelecto), encontram-se fadadas à marginalidade ou à morte. 
Não compactuo, definitivamente, com a ideia de que demos o primeiro passo para uma transformação definitiva. Temo que esse seja, e o digo com respeito, mas também com consternação, um slogan vazio, a pequena filosofia de nossa eterna e inquebrantável esperança de um país melhor. 

Peço ao leitor, feitos esses esclarecimentos iniciais, a oportunidade de explicar as razões pelas quais a disciplina da corrupção se tornou, entre nós, um instrumento de incentivo ao banditismo1 , que arrasta as empresas (como se fosse possível) a relações ainda mais patológicas com o Estado. 

Um exitoso combate à corrupção pressupõe o bom-sucesso na adoção de uma estratégia jurídico-institucional, que deve se alicerçar em 4 pilares: (i) determinação do âmbito da delinquência; (ii) detecção da delinquência; (iii) sistema de punições; e (iv) vias de abrandamento calculado de punições (leniência). 

Os 4 pilares devem ser igualmente fortes e bem construídos, sob pena de ruir a estrutura, com consequências desastrosas. 

O aparecimento das Leis 12.850 (Lei de Organização Criminosa) e 12.846 (Lei Anticorrupção), ambas no ano de 2013, ainda no primeiro mandato da Presidente Dilma Rouseff, determinou uma verdadeira e parcialmente positiva revolução em 2 dos 4 pilares: no aparelhamento dos instrumentos de detecção da delinquência e para a urdidura de um severo sistema de punições. 

A Lei de Organização Criminosa, nossa versão da Lei Antimáfia norteamericana (a RICO – Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act), colocou à disposição da Polícia e do Ministério Público poderosíssimos instrumentos de coleta de provas, que o grande público só conhecia dos filmes de Hollywood. Refiro-me à colaboração premiada, à captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, à ação controlada, ao acesso a registro de ligações telefônicas e telemáticas, às interceptações telefônicas e telemáticas, à infiltração de agentes policiais em supostas organizações criminosas etc. 

Essas novas ferramentas ampliaram, não resta dúvida, a capacidade de detecção da delinquência. 

A Lei Anticorrupção incrementou o existente sistema de punições, posto no Código Penal, na Lei de Licitações, na Lei de Improbidade Administrativa, na Lei Antitruste, na regulação da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. Arrastou para o centro de imputação de responsabilidade não só as pessoas jurídicas que praticaram o ato, mas também aquelas que dele se beneficiaram. 

A Lei Anticorrupção também recrutou as organizações empresariais à detecção (e denúncia) do ilícito, acenando – nas hipóteses de adoção de planos de integridade (compliance ) – com promessas de abrandamento das punições, por meio de acordos de leniência. 

Mas o fortalecimento de apenas 2 dos 4 pilares deve, por princípio, desequilibrar a estrutura. E foi precisamente o que aconteceu. 

O reforço dos mecanismos de detecção da corrupção, sem a clara e objetiva determinação do âmbito da delinquência, deu ensejo a uma casuística e, sobretudo, subjetiva caracterização do que é corrupção. 

Explico-me. 

O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650 proibiu o financiamento empresarial de campanha2. Antes disso, sociedades empresarias, algumas delas companhias abertas de grande porte, estavam autorizadas a fazer doações empresariais para candidatos a quaisquer pleitos eleitorais. 

Não raro, empresas doaram centenas de milhões de reais, em alguns casos – para não ter erro – para todos os candidatos do mesmo pleito. 

Doaram abertamente a candidatos que seriam, uma vez eleitos, determinantes para a contratação dos doadores pela Administração Pública. E como empresa – diferentemente do que alguns tem afirmado3 – não têm ideologia, fizeram-no, é claro, jamais por diletantismo, mas para tirar proveito econômico do apoio, na mais franca política de “toma lá, dá cá”. 

E que não se diga que todo mundo sabia, mas que não havia prova. Mentira! Sociedade empresaria não contrai, não pode contrair obrigação de mero favor. 

A empresa é uma máquina de trocas econômicas (preferencialmente desiguais e vantajosas) nos mercados. 

Empresa só faz política quando política dá dinheiro. 

Precisava de qualquer outra prova? É claro que não. 

O fato é que essa era prática corrente, amplamente aceita, contra a qual eu fui voz isolada, já em 2007, no artigo “A empresa pluridimensional. Empresa política e lobby”4.

Foi apenas no âmbito das colaborações premiadas, já em meio à Operação Lava Jato, que alguns delatores, quase sempre os que estavam presos (ou apavorados por essa possibilidade) afirmaram que “as doações oficiais eram feitas com dinheiro proveniente de contratos superfaturados” ou que “essas doações eram, na verdade, propina para obter contratos com a Administração”. 

É certo que eram. Já eram antes. Sempre foram. 

O que seria uma doação para todos os candidatos a Presidente? Ou a Governador? E a mais de 100 candidatos a deputado? E a todos os candidatos a Senador? 

O que mais poderia ser uma “doação” àqueles que seriam – não por coincidência –, uma vez eleitos, os responsáveis por contratar os doadores, criar leis favoráveis a eles, obter autorizações estatais para o seu bem etc etc etc? Era pagamento em troca de benefício! 

Mas antes podia. Ninguém disse que não podia. Sempre pôde. Pôde por muito tempo. E a permissão reiterada fez acreditar na legalidade. A bem da verdade, uma permissão estatal reiterada é prova de legalidade. 

Alguns dirão que essa “pequena” incoerência é coisa do passado, morta e sepultada por Moro, Bretas e Vallisney, os nossos heróis da última hora. 

Nada poderia ser mais errado. 

Ainda vige entre nós uma laxista disciplina jurídica das doações de pessoas físicas (ninguém poderá negar que num país de tantas desigualdades, umas “podem” mais do que as outras), capaz de reproduzir as mesmas e indesejáveis consequências que levaram à proibição das doações empresariais. 

Não fosse isso, há muita gente querendo ressuscitar essa proscrita doação empresarial, para convencer o Supremo Tribunal Federal, de que a sua interpretação do art. 9º da Constituição Federal, manifesta há pouco tempo, na decisão da referida ADIN 4650, estava equivocada5. 

E se a disciplina do chamado lobby pré-eleitoral é essa bagunça, o que se dirá do lobby pós-eleitoral? 

O lobby pós-eleitoral, que se caracteriza pela atuação de grupos de pressão sobre o Parlamento para, modelarmente, fazer seus legítimos interesses prevalecerem no processo de aperfeiçoamento das leis do país, é hoje tarefa da qual se encarregaram as chamadas Frentes Parlamentares. 

As Frentes Parlamentares são bancadas multipartidárias, que se organizam como entidades paralegislativas, para estudar projetos de lei em favor de determinados setores da sociedade civil. 

A disciplina da atuação dessas Frentes seria nenhuma, não fosse uma regra isolada, um Ato da Mesa da Câmara dos Deputados, que proíbe o financiamento com dinheiro público. Isso significa que devem ser financiadas com dinheiro privado. 

São, portanto, hoje, na 55ª Legislatura, centenas de Frentes Parlamentares, a exemplo da Frente da Agricultura, ou do Automobilismo, ou dos Direitos dos Autistas, ou da Mineração, que ensejam a mobilização de parlamentares em um país de dimensões continentais, a realização de estudos, de encontros, de jantares, de congressos e de publicidade, com dinheiro privado. 

O que é isso? É claro que são pessoas ou grupos de interesse pagando para que os representantes do povo os represente melhor do que o resto do povo. E pode? Não sei dizer. Só sei que hoje ainda é amplamente tolerado. 

E o digo apenas para provar meu ponto. Não sabíamos e continuamos sem saber, em concreto, quais relações entre Estado e empresa caracterizam corrupção e quais delas são produto da democracia, aliás, um pressuposto da democracia. 

Não por acaso, a maior democracia do mundo, a norteamericana, disciplina o lobby por não menos do que 3 diplomas legais, que permitem, sob pesadas regras de transparência e de compliance , o lobby pré-eleitoral (com financiamento empresarial de campanha) e o lobbypós-eleitoral, que se estabelece por um sem número de escritórios e de profissionais que compõem uma bilionária indústria de serviços. 

Assim, o que circunstancialmente temos chamado de corrupção, outros, sob regras e boas maneiras, chamam de exercício da democracia. 

Deixar esse “fio desencapado”, ou seja, dar de ombros para uma adequada regulação do lobby , é permitir que o intérprete-judicante (o juiz) e, antes dele, o fiscal da Lei (o Ministério Público) diga, casuística e subjetivamente, o que é corrupção e quem é corrupto. E isso, num Estado Democrático de Direito, é intolerável. Ninguém, nenhum de nós, deveria – ainda que a pimenta arda nos olhos dos inimigos (por ora) – aceitar esse tipo de incerteza. 

Além do mais, porque essa grave deficiência na determinação do âmbito da delinquência, que acabo de denunciar, contamina e ameaça render inúteis todos os avanços na detecção do ilícito. 

Isso porque a detecção não pode ser consequencialista, sob pena de descambarmos para um regime de exceção. Quando o tira bom planta prova contra o traficante, pode até colocar um malfeitor na cadeia, mas inutiliza todo o modelo de coleta de provas, porque o corrói pela falta de confiabilidade. 

Nem todos os policiais são eficientes e honestos, nem todos juízes são justos. O que garante a eficiência, a honestidade e o senso de justiça são as condutas e os limites impostos pela Lei a esses agentes de Estado. 

De outro lado, as vias de abrandamento calculado de punições, representadas pelos chamados acordo de leniência, tal como propostos pela Lei Anticorrupção, não representam uma via de continuidade para as empresas. 

Já tive, mais de uma vez, a oportunidade de afirmar que essa deficiência responde pela destruição injustificada do capitalismo e do conteúdo nacionais, pelo fim de milhões de postos de trabalho, e pelo que chamo de combate inconsequente (que não mede consequências) à corrupção6. 

A leniência é um caminho de sobrevivência para as empresas que praticaram atos de corrupção ou que deles se beneficiaram. É, como disse, uma solução de continuidade, para preservar empregos, contratos e todo o tipo de interesse legítimo que gira no entorno de uma empresa, mesmo que envolvida com corrupção. É também um incentivo. A leniência alinha os interesses da empresa aos do Estado. Aquelas empresas que querem sobreviver devem cooperar, devem revelar, sem reservas, todos os atos ilícitos que praticaram, de que têm prova, assim como quais foram os seus autores e partícipes. 

É um mecanismo pragmático, cuja utilidade é evidente. Resguarda o papel punitivo e disciplinador do Estado, amplia a sua capacidade de investigação – uma vez que estimula a cooperação do particular – e, ao mesmo tempo, preserva as empresas e a economia do país. A força da punição é compensada (aliviada) pela leniência mediante colaboração. 

O problema é que a punição da corrupção, protagonizada pelo Ministério Público, funciona bem, mas a leniência, em meio ao que parece uma indefinição de competências institucionais, não. 

As empresas não sabem com quem falar. 

Muitos acordos, nos quais empresas prometeram colaboração e assumiram o dever de pagar indenização e multas ao Estado, foram celebrados com o Ministério Público. 

Esses acordos desconsideram que, no âmbito federal, por exemplo, a Lei Anticorrupção atribui ao Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) a competência para celebrar os acordos de leniência. Também não observam, com frequência, as atribuições de outros importantes órgãos de controle do Estado, à exemplo da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). 

O resultado é que a pressão diminui de um lado, mas aumenta de outro. A empresa que celebra acordo com o Ministério Público não se livra da pesada mão do Estado; pode, independentemente desse acordo, ser declarada inidônea pela CGU ou pelo TCU. A indenização e a multa podem ser revistas e aumentadas. Quando a empresa se convence de que se livrou de uma ação de improbidade ou de qualquer outra medida judicial proposta pelo Ministério Público, descobre que esse não é, digamos, o entendimento da AGU, que também é competente para ajuizar essas demandas. Pode ainda acreditar que está quites com algum ou todos esses órgãos, e ser condenada por prática anticoncorrencial pelo CADE. 

Sem que haja segurança sobre os benefícios da cooperação, não há leniência. Nesse cenário de profunda indefinição, as empresas colaboram, mas, no final, ainda se veem envolvidas com os mesmos problemas. 

Aqui, o insolúvel se resume à busca interminável pelo “moço do outro guichê”. Em prol da segurança e da justiça, é indispensável a articulação entre os órgãos da administração pública, para que o combate à corrupção não se transforme em uma disputa por competências, tampouco em uma peregrinação de gabinetes, sob o temor de que o que se combinou com um não valha com os demais. 

O impasse arrisca, como não canso de dizer, a extinção do capitalismo nacional, mas, antes disso, danifica gravemente o modelo de privatização da detecção do ilícito. 

Sim, a leniência é um incentivo à criação de planos de integridade efetivos. O que chamamos de compliance nada mais é do que um conjunto de regras e de estruturas organizacionais, de que devem lançar mão as empresas, para detectar atos de corrupção e colaborar com os agentes estatais de controle, caso queiram ser beneficiadas com um abrandamento de punições. 

É uma técnica – baseada em incentivos – de multiplicação dos olhos e dos ouvidos do Estado, por meio, repito, da privatização parcial dos agentes de controle. É como se cada empresa e cada um de seus administradores e empregados fosse um fiscal da lei, pronto para denunciar ilícitos. 

Se o incentivo não existe, todavia, a conduta que o incentivo pretende fomentar será inexistente ou se resumirá a uma formalidade inútil. Daí a ampla difusão dos planos de integridade de papel ou do compliance para inglês ver. 

Há, portanto, muita coisa errada com o nosso modelo de combate à corrupção. Mas por que esses equívocos são, como afirmei, um instrumento de promoção ao banditismo? 

A resposta é intuitiva. Mas vale explicar. 

A caracterização casuística e subjetiva dos ilícitos leva à paralisia dos honestos. Os sérios não querem arriscar sequer um segundo de cadeia. E, portanto, irão se manter a quilômetros de distância de qualquer relação econômica com o Estado. 

O escasseamento de agentes econômicos em um dado mercado tende a aumentar os lucros. Mais um incentivo àqueles sem qualquer escrúpulo. Falta de escrúpulo combina com ganância. 

Com os honestos de fora, com medo de tudo (porque sem definição exata tudo pode ser crime), as baratas farão a farra. 

Isso, desde logo, significa um convite para que malfeitores de todo o tipo participem, por exemplo, de licitações de contratos administrativos e concessões públicas. 

Pior, significa uma deterioração ainda maior do ambiente político e dos políticos. 

E não esperem que empresas estrangeiras venham nos salvar do precipício. Para elas, compliance é coisa séria. Se forem pegas em atos de corrupção no Brasil, arriscam seus interesses mundo a fora. 

Estamos, em verdade, promovendo um capitalismo liliputiano, de empresas com apenas 6 polegadas, econômica e moralmente. 

E tem gente feliz, que grita de regozijo a cada enforcamento, que treme de excitação diante dos jatos de sangue que tingem os laços entre o combate à corrupção e o banditismo.

1: E aqui não me refiro ao banditismo como contestação social, mas à delinquência cínica, voltada puramente ao lucro, que se organiza – por iniciativa de quem não tem nome a zelar ou consciência – para parasitar o Estado e o povo. Quem quiser bem compreender a diferença, cf. PERNAMBUCO DE MELLO, Frederico. Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed., São Paulo: A Girafa, 2013; MANGERONA, Isael Lubk. Banditismo como contestação social: o caso Leonardo Pareja. São Carlos: Ed. Do Autor, 2011
2: Em verdade, o âmbito da proscrição é ainda mais amplo, para se estender a todas as pessoas jurídicas de direito privado. 
3: O Ministro Luiz Fux disse achar ser possível se “repensar” a proibição de financiamento de campanhas eleitorais por parte de empresas privadas, desde que o façam de acordo com a sua “ideologia”. Cf.https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/08/17/fux-diz-que-doacao-de-empresas-a-campanhas-poderia-ser-repensada.htm
4: O artigo deu fundamento ao voto condutor do Min. Dias Tofoli no julgamento da Adin 4650. Cf. JORGE WARDE JR. Walfrido. “A empresa pluridimensional”, in: Revista da AASP, 2008.
6:Cf., por todos, o artigo que escrevi com o ex-Ministro Valdir Simão para o Valor Econômico, sob o título “Qual leniência?”, http://www.valor.com.br/opiniao/5051888/qual-leniencia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário