sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O “fora Temer” da Globo e a questão da legitimidade do poder, por Roberto Bitencourt da Silva


O “fora Temer” da Globo e a questão da legitimidade do poder

por Roberto Bitencourt da Silva

Instigante artigo escrito por Bia Barbosa e Camila Nóbrega, publicado em Carta Capital, descreve as divisões existentes entre os conglomerados de comunicação, a respeito do golpista Michel Temer (PMDB). Mapeia as diferenças entre as linhas editoriais das Organizações Globo em face da Band e do Estadão. Ademais, suscita uma importante indagação: o que a Globo quer?

A Globo, há algum tempo, tem se notabilizado pela veiculação de notícias desfavoráveis a Temer e pela retirada de potencial apoio ao nefasto e ilegítimo presidente. Uma circunstância realmente interessante e que merece reflexão, pois revela percepções distintas no seio do bloco de poder no Brasil.
Em caráter meramente especulativo, procuro nas linhas abaixo tecer algumas considerações que permitam refletir sobre o posicionamento atual das Organizações Globo. Um tempo atrás escrevi artigo em que retratava a Globo como uma espécie de "príncipe eletrônico", a partir da mobilização de reflexões do sociólogo Octávio Ianni. Isto é, o exercício então feito identificava as empresas da família Marinho como um intelectual coletivo, persuasor ativo e galvanizador de vontades, dotado de projeto para a sociedade brasileira.

Diferentemente de outros setores do condomínio de poder no Brasil, a Globo manifesta-se pela saída de Temer. Defende todas as suas medidas lesivas ao País e ao Povo, eivadas de ranços liberais-conservadores. Quer, inclusive, que as contrarreformas, antinacionais e antipopulares, sejam aprofundadas. Mas, sem Temer à frente do barco.

O que passa com a Globo? Me parece que a questão diz respeito a projeções de futuro. Politicamente, envolve sobretudo a variável legitimidade, tanto no tocante ao próprio conglomerado, quanto no que diz respeito ao projeto neocolonial que preconiza.

Do ponto de vista organizacional, a preservação do conglomerado empresarial no curso do tempo demanda uma visão que explore o longo prazo. Ganhos e êxitos no presente não são suficientes. Requerem compatibilização com uma escala de tempo mais dilatada.

A Globo opera em regime de semimonopólio. Um ativo importante é a atribuição de valor à sua imagem/marca, enquanto conjunto de empresas que lida com a informação. Algum fiapo de credibilidade política para a sua linha editorial torna-se variável decisiva para o planejamento estratégico do conglomerado.

Após sublinhar ad nauseam a “corrupção” como mote para apoiar a destituição da presidente Dilma Rousseff (PT), o despudor do governo Temer é difícil ser acobertado e sustentado, notadamente quando os seus índices de rejeição quase chegam a 100%.

Dar a apoio a projetos privatistas e vende pátria, a despeito dos nomes que os conduzem no Poder Executivo, em diferentes esferas do Estado brasileiro, é prática contumaz da Globo. Como exemplo, anos a fio ofereceu enquadramentos e pautas altamente favoráveis ao ex-prefeito carioca, César Maia (DEM). O mesmo se pode dizer em relação ao PMDB fluminense e carioca: o ex-governador Sergio Cabral Filho, o atual, Pezão, e o ex-prefeito Eduardo Paes. Apoios sistemáticos a esses governos.

Desgastaram-se? Perderam capacidade eleitoral e prestígio para a execução de políticas públicas que a Globo assevera como melhores, senão mesmo inescapáveis? Retira-se o apoio, buscando preservar a sua imagem editorial, assim como das políticas em questão. Apego a nomes e pessoas não faz parte do comportamento do conglomerado.

O poder em sua forma bruta ou sinuosa está bastante consolidado no âmbito do governo federal. Os artifícios típicos do leão (força) e da raposa (astúcia), antigas metáforas de Maquiavel, são rotineiramente explorados pelo governo Temer. Incentivo à policialização das Forças Armadas, amplo apoio do Judiciário, plena satisfação dos interesses das finanças, de demais setores do grande capital doméstico e internacional, e compra de votos de oligarquias políticas. O poder em estado bruto muito bem assentado.

Porém, o exercício do poder demanda mais do que força e astúcia. Estas são eficazes de maneira episódica. São sempre instáveis. Em especial em nosso tempo, com a proliferação do uso de tecnologias de comunicação e informação.

A brutalidade do poder contra os grupos políticos e sociais que não participam da mesa dos grandes, seja essa brutalidade física e armada, seja financeira, afetando as condições de vida de amplas frações da sociedade, é visível demasiadamente rápido e circula em escala global.

Deparamo-nos, então, com o problema da legitimidade. O grosso da população, excluído de qualquer horizonte de ações positivas do bloco de poder, precisa ser convencido da legitimidade da ordem política, social e econômica instituída. É aí o calcanhar de Aquiles.

Como chamaria a atenção o filósofo Antonio Gramsci, acompanhando a força, a persuasão é variável decisiva para o poder, no sentido em que visa conferir legitimidade a um ordenamento social, econômico e político. E, no momento, ela é infrutífera. Só pode se efetivar com o acolhimento, parcial e tímido que seja, de alguma aspiração, demanda de setores alheios à estrutura de poder.

Não existe exercício de poder minimamente estável sem a mobilização de instrumentos que permitam acomodar interesses e agrupamentos sociais divergentes; sem a neutralização ou a divisão de potenciais áreas de descontentamento social e político. O “fora Temer” da Globo, a meu ver, opera dentro dessa lógica.

Do ponto de vista material, a Globo ventila absolutamente nada que incentive ao poder atenuar descontentamentos, atuais e potencialmente crescentes, nas camadas populares e médias. Assim como Temer e seus aliados. Mas, a associação contínua e flagrante entre as contrarreformas neoliberais e entreguistas e a persona de Temer retira absoluta credibilidade daquelas. As compromete.

O “fora Temer” da Globo silencia-se sobre problemas econômicos e distributivos e apega-se a uma resposta política e simbólica ao dilatado descontentamento. Observa a floresta e não a árvore.

A chefia da Globo sabe ou intui os latentes riscos a médio e longo prazo de uma ordem social, política e econômica sem qualquer legitimidade. Sem investir em alguma resposta, mínima que seja e não comprometedora à ordem, às demandas e insatisfações dos setores alheios, submetidos ou espoliados pelo poder.

Trata-se de um terreno favorável à criação de uma plataforma unitária de descontentes. A potencial emergência de um bloco que identificaria claramente a fonte do mal-estar é sempre uma ameaça à ordem. Com o risco adicional, no tempo, do aparecimento de uma liderança carismática, na acepção dada pelo sociólogo Max Weber, que seja atribuída a condição de símbolo antissistêmico, abalando as rotinas confortáveis ou tradicionais do poder.

O descarte de Temer pela Globo indica que ela olha para frente e abdica dos anéis, sem perder os dedos.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político. 

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