quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Ulisses volta à Grécia

 

Coitado de Ulisses, ainda tem que remar muito para se ver livre de quem oprime a sua terra. Uma década de sacrifício, mas a dívida continua em 188,6% do PIB.

por Francisco Louçã

Depois da austeridade sob a égide da sua troika, anuncia-se agora para a Grécia a triunfante salvação: nestes dias termina o terceiro plano de resgate. Escreve Pierre Moscovici que, “como Ulisses de regresso a Ítaca, a Grécia chega por fim ao seu destino, dez anos depois de uma longa recessão. Pode por fim respirar”. A elegia é gongórica e era preferível reconhecer a realidade.

Um triunfo orçamental e a crise social

As contas estão resplandecentes: o objetivo do saldo primário era 2% em 2017 e foi de 4,2%. O problema é que neste caso o saldo, que mede a capacidade de pagar a dívida, demonstra o mau uso dos recursos públicos, que é desviado da resposta às necessidades sociais e o Tribunal de Contas Europeu acrescenta que a conta pode estar errada, dado que “a Comissão Europeia estabeleceu projeções macroeconómicas separadas das orçamentais e não as integrou num único modelo”. O FMI, por outro lado, desde há dois anos que escreve que não se deve manter a longo prazo um saldo primário desta ordem. Pode-se, mas implica destroçar a vida social.

Os efeitos desta década sofrida são já facilmente verificáveis: 43% das famílias não têm meios para pagar o aquecimento no inverno, 53% não poderiam fazer face a um gasto imprevisto de 500 euros, metade não pode ir de férias, 60% das pessoas estiveram no desemprego mais de dois anos, um terço da população entre 15 e 29 anos abandonou o país. Resta o turismo, a única exportação em crescimento, que garante cerca de um quarto do emprego total. Não se produz, não há trabalho, os serviços públicos não funcionam. Ulisses regressou a Ítaca?

Esqueceu-se da dívida?

Uma década de sacrifício, mas a dívida continua a 188,6% do PIB (a promessa é reduzi-la para 96,8% em 2060), quase toda a instituições (só 40 de 294 mil milhões estão em fundos privados e pessoas). E esse é o problema, são precisamente esses credores que quiseram fazer da Grécia um exemplo da subjugação política de um Governo que tinha sido eleito para reestruturar a dívida.

Klaus Regling, diretor-geral do Mecanismo Europeu de Estabilidade, num discurso perante a Associação Grega de Bancos, a 12 de junho, não escondeu o cinismo ao “felicitar o povo grego e os seus dirigentes políticos pela conclusão do vosso programa: é importante para a Grécia e também para a instituição que é o seu principal credor”, ou seja, para si próprio. Acrescentou logo: “Permitam-me que diga ao mesmo tempo que o acesso da Grécia aos mercados continua a ser delicado. Reencontrar a confiança dos investidores implica dar provas de um compromisso total a favor das reformas, mas mesmo isto poderia não bastar no caso da Grécia.”

Perguntado numa entrevista se a dívida é sustentável, Regling responde que não, exigindo medidas a longo prazo, repetindo a litania: “As reformas são uma tarefa permanente. Não acabam nunca.” Por isso, “a vigilância deve durar enquanto se prolongar o reembolso”. Até 2060, pergunta o entrevistador? “Sim. Ficaremos até ao prazo final.” Haverá mesmo um “reforço da vigilância” com uma “avaliação a cada três meses” e isto “durante um certo número de anos”.

Esta ameaça foi repetida pelo Eurogrupo de 22 de junho, que prevê o exame em 2032 sobre a necessidade de medidas suplementares, para verificar se “os compromissos são cumpridos e se não há reversão das importantes reformas que são necessárias para levar a Grécia a um rumo de crescimento mais elevado”. Ítaca, então? Coitado do Ulisses, ainda tem que remar muito para se ver livre de quem oprime a sua terra.
 
Francisco Louçã
Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda
Publicado originalmente na Esquerda.Net

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