sábado, 15 de fevereiro de 2020

'Capanga de milícia' e síndrome de lacração

Moro


Chamar o Moro de “Capanga de Milícia” é quase sublime. Eu gosto do Glauber Braga, acho que a lacração das audiências anteriores foram precisas. Mas repetir o protocolo? Há um certo risco de virar folclore. 

É certo que o deputado do Psol disse muito mais do que isso. Mas fica o sintagma cirurgicamente concebido para tomar efeito viral: "capanga de milícia".

Enfim, cada um na sua. A questão é menos o Glauber e mais o as consequências digitais de sua fala. A esquerda lacradora que te obrigar repercutir o assunto.E aí caímos no mesmo rame-rame boçal da direita: lacração, deboche e gritaria.

É perfeito - inclusive, para a própria direita - que a esquerda abaixe seu nível, pois assim todos nos abraçamos no lodaçal da podridão digital.

A militância mobilizada pela lacração é militância fraca, tola, que emudece ao primeiro desafio complexo de se travar um verdadeiro debate público.

Quando se diz que a esquerda precisa “ocupar as redes” não é para formatá-la à imagem e semelhança da direita. É para povoar as redes com inteligência, com espírito crítico com enunciados menos simplórios.

Há uma idiotização em curso da esquerda, nesse desespero agonizante que é tentar “competir” com a direita e ocupar os espaços digitais. É preciso cuidado. É preciso produzir o máximo possível de lacrações virais para se mobilizar a militância, mas o mínimo possível para não se tornar um idiota. O objetivo é vencer a guerra, não uma batalha apenas.

O cenário do debate público e da própria linguagem está mudando rapidamente. Bolsonaro é um “acelerador” de saturação cognitiva. O processo presente é de “entropia”, de reacomodação: a transformação de um sistema (de ideias, de discursos, de sentidos) que permanecia relativamente estável (com democracia, com instituições) para um sistema desorganizado que, por sua vez, tende a se reorganizar em bases diferentes.

Essa reorganização que é o x da questão. Em que bases vamos nos reorganizar? Não é uma questão de desejo, é um fenômeno espontâneo disparado pelo funcionamento interno da linguagem social (que se transformou em linguagem digital). É preciso rastreá-lo, observá-lo e potencializar a energia subjetiva residual para humanizá-lo.

Esse cenário exige responsabilidade, inteligência e gestos antecipatórios. Tudo está no ar. O bolsonarismo nasceu para morrer, é um elemento de transição. As bases da esquerda democrática, tão espancadas pela mídia e por setores atrasados da sociedade brasileira, voltam a trepidar na composição dos elos de sobrevivência estilhaçados por esse nazismo subdesenvolvido que brotou como um parasita sistêmico no Brasil.

Em suma, eu diria: valeu a pena esperar. O bolsonarismo-tucanismo se aniquilou a si mesmo. Este é o cenário desenhado para quem lida com dados empíricos da linguagem, como o esgarçamento das explicações institucionais do governo, como o cansaço da linguagem midiática, incrédula com o monstro que criou, com o sorriso estampado nas aparições de Lula - o grande elemento humano a ser considerado na restauração do sistema social -, com o descontrole verbal dos agentes principais da sabotagem à democracia.

A precaução é não entrar em protocolos de comunicação em estado terminal, justamente agora que há uma reorganização do discurso e das práticas do discurso.

Seria preciso mais ciência e menos achismo nas hostes da comunicação política devastada da esquerda. Mais pesquisadores, mais linguistas, mais matemáticos, mais sociólogos, mais jovens (menos publicitários, menos jornalistas, menos homens, menos brancos). É assim que Google e Facebook vicejam na liderança da codificação dos processos cognitivos pelo mundo. Eles nadam de braçada diante da terra devastada que é a comunicação política apodrecida dos progressistas (que são os únicos que podem produzir anteparos à hegemonia empresarial das gigantes da comunicação).

Pode parecer paradoxal, mas a comunicação política em estado de miséria técnica é uma excelente notícia para a civilização.

A direita viu antes a multivocalidade poderosa das redes e a instrumentalizou com lixo cognitivo. Que não cometamos o mesmo erro.

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