'Precisamos ter coragem de
admitir que este país está longe de cumprir suas mínimas responsabilidades para
com nossas crianças e jovens mais pobres'
Léa Maria Aarão Reis / www.cartamaior,com.br
“Quando vejo o Congresso Nacional se
movimentando para reduzir a responsabilidade penal no país para 16 anos, não
posso deixar de pensar que se está apostando no pior. Quando começarmos a
mandar nossos jovens de 16 e 17 anos para cumprir penas nas celas fétidas e
superlotadas do sistema penitenciário brasileiro, convivendo com criminosos
experientes e perigosos, certamente estaremos vivendo no pior dos mundos.” A
socióloga Julita Lemgruber é a autora deste fragmento de artigo publicado na
mídia, há 13 anos. O que reforça a ideia de que o tema da redução da maioridade
penal vem de longe e é recorrente. De tempos em tempos, com o estímulo de algum
episódio trágico, de alta violência, algum crime perpetrado contra a vida de
integrante da classe média, em geral por adolescentes ou jovens pobres e
negros, na Zona Sul do Rio de Janeiro, as forças conservadoras e retrógradas se
movimentam para pedir a mudança, como ocorre agora, em mais uma investida da
cunha que a bancada da bala aliada à bancada evangélica, na Câmara dos
Deputados, vem forçando introduzir praticamente à força, na legislação
brasileira.
Setenta anos de idade, Julita,
mãe de três filhos, autora de diversos livros sobre segurança pública*, ocupou
diferentes cargos no serviço público. Diretora Geral do turbulento Sistema
Penitenciário do estado do Rio de Janeiro, nos anos 90, membro titular do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça
e Ouvidora de Polícia entre 1999 e 2000, atualmente ela é a coordenadora do Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e membro do
Conselho Diretor do International Drug Policy Consortium, ONG baseada em
Londres.
A Dra. Lemgruber é uma das mais
conhecidas e respeitadas autoridades nas pesquisas e estudos em área da
segurança pública, justiça e cidadania. Já sofreu um atentado quando dirigia o
sistema penitenciário do Rio de Janeiro e conhece profundamente, há mais de 20
anos, a engrenagem que rege esse universo. Destemida, em certa ocasião
enfrentou 400 presos, sozinha, sem qualquer proteção, conversando com eles em
um anfiteatro de instituição carcerária carioca. Quando terminou, a greve
também acabou. Uma das frases preferidas de Julita é a de um ex-ministro da
Justiça britânico, Thomas Hurd: ”A cadeia é uma forma cara de tornar as pessoas
piores.”
Na sua entrevista a Carta Maior
ela comenta mais uma tentativa, amanhã, de reduzir a maioridade penal no país.
O que está por detrás dessa
votação?
Defender a redução da maioridade
penal num país como o Brasil, que tem uma legislação como o Estatuto da Criança
e Adolescente (ECA) o qual jamais saiu inteiramente do papel, a não ser no que
se refere à punição de adolescentes infratores, chega a ser um escárnio. Duvido
muito que os defensores da redução da maioridade penal já tenham lido, com o
cuidado devido, o que prevê o ECA, por
exemplo, no seu capítulo IV que versa sobre os direitos da criança e do
adolescente à educação, cultura, esporte e lazer. O país quer privar da
liberdade a quem foi negado acesso aos direitos mais básicos assegurados não só
pelo ECA, mas pela Constituição Brasileira.
Quais são os dados que você nos
traz?
Os adolescentes são muito mais
vítimas do que perpetradores de homicídios. Estima-se que 0,01% do total de
adolescentes, no Brasil, cometeram crimes contra a vida. Ao contrário, 6,6% dos
adolescentes de 16 e 17 anos, justamente aqueles que a bancada BBB (bala,
bíblia e boi) quer mandar para a cadeia, foram vítimas de homicídios embora
totalizem apenas 3,6% da população brasileira. Em média, são assassinadas no
Brasil, por dia, aproximadamente 20 crianças e adolescentes. E isto não choca
ninguém? É claro que não choca porque não são os filhos da classe média que
estão morrendo, vítimas de homicídios. E, mais. A polícia mata seis pessoas por
dia no Brasil e muitas dessas são adolescentes.
Você já escreveu em suas análises
que os adolescentes são mais vítimas que perpetradores de violência.
De todos os atos infracionais
praticados por adolescentes somente 8% equiparam-se a crimes contra a vida. A
grande maioria (75%) são crimes contra o patrimônio e, destes, 50% são furtos,
isto é, delitos sem violência. No ano 2000, dos mais de 40 mil homicídios que
aconteceram no Brasil, os adolescentes foram responsáveis por 448, mas foram vítimas
em 3 800 dos casos. Aliás, 75% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos são
mortes violentas. Os adolescentes, portanto, são muito mais vítimas do que
perpetradores de violência neste país. O grande problema está em que os crimes
praticados por adolescentes sempre recebem tratamento privilegiado na mídia, ou
seja, divulgação de tal forma ampla que fica a impressão de que são muito mais
numerosos e graves do que realmente são.
Há quem assegure que está em
curso um genocídio no país. E, então, afinal para o que o ECA existe?
Eu pergunto: onde está a
indignação do país? Onde está a indignação dos congressistas? Os mesmos
congressistas que têm ignorado que há um genocídio em curso da população jovem
e negra nesse país quer mandar pra cadeia o adolescente infrator, ao invés de
exigir dos governos (federal, estaduais e municipais) que cumpram sua parte na
implementação dos direitos assegurados pelo ECA. Enquanto na maior parte dos países
do mundo a maior causa de morte de adolescentes é acidentes de trânsito, no
Brasil, a maior causa de mortes de adolescentes é o homicídio. Justamente isto,
que deveria servir para envergonhar o país, é ignorado.
Por quê?
Porque as vítimas, em sua grande
maioria, são pobres e negros. Setenta e sete por cento dos jovens mortos,
muitos pela polícia, são negros. Ou seja, para os jovens pobres e negros, nada
de direitos previstos pelo ECA, mas sim a garantia de se tornarem vítimas da
violência, muito particularmente da violência estatal.
Mas a reincidência é um problema
grave. Como resolvê-la?
Não há informação confiável sobre
a reincidência no Brasil. Na área de adultos, estima-se que a reincidência
esteja por volta dos 70%. Na área de adolescentes infratores, os números são
limitados e ainda menos confiáveis. Mas tanto o sistema para adultos quanto o
sistema para adolescentes infratores é definido como uma porta giratória com um
contínuo e repetido entrar e sair. A verdade é que a suposta “ressocialização”,
que seria possível a partir da prisão, não passa de uma mentira que
historicamente justificou a privação da liberdade. Admitamos, de uma vez por
todas, que a privação da liberdade é um castigo e, no Brasil, um castigo cruel.
E mais: cruel e caro. Como dizia um antigo ministro da justiça inglês, “a
prisão é uma forma muito cara de tornar as pessoas piores”. Se adultos jamais
aprenderam a viver em liberdade quando privados da liberdade, por que isto
seria possível com adolescentes?
Há também a grave situação da
superpopulação carcerária. E jogar milhares de adolescentes infratores nas
prisões é apostar no pior. Agrava-se o quadro de superpopulação, possibilita-se
o contato de jovens, muitos recém-iniciados no mundo do crime, com criminosos
experientes, com integrantes das facções que dominam o sistema penitenciário
brasileiro, com um universo onde as leis não são respeitadas e onde grassam a
violência e a corrupção. Hoje, assim como os direitos dos adolescentes
previstos pelo ECA não saíram do papel, a Lei de Execuções Penais (LEP), no que
se refere aos direitos do preso, também continuam letra morta.
É a história das leis que pegam e
outras não...
O Brasil é mesmo o país das leis
que “pegam” e das leis que “não pegam”. E as que pegam são sempre aquelas que
beneficiam quem tem voz e poder nessa desigual e profundamente hierarquizada
sociedade brasileira
Qual a sua opinião sobre a
proposta de aumentar o tempo de internação de adolescentes, em alguns casos até
para oito anos de reclusão, como alternativa à redução da maioridade penal?
O ECA já prevê um total de nove
anos de monitoramento do comportamento do adolescente infrator – basta examinar
com cuidado o que dispõe o Estatuto –, três anos de internação mais seis anos
monitorando de diversas formas pelo poder público. Basta implementar o ECA com
seriedade.
Na maior parte dos países a idade
de responsabilidade penal é 18 anos.
Alguns países como a Espanha e a
Alemanha chegaram a reduzir este limite e voltaram atrás. Por quê? Porque não há qualquer comprovação, em parte
alguma do mundo, que encarcerar menores de 18 anos seja uma forma efetiva de
reduzir a criminalidade, sobretudo a criminalidade violenta. Ademais, o Brasil
é signatário de tratados internacionais que estabelecem os 18 anos como idade
de responsabilidade penal.
O congresso nacional estaria
então desonrando esses tratados?
Mas é claro. Para a bancada BBB
no congresso nacional nada disso vale. O que vale é iludir os eleitores com a
sedução de que reduzindo a maioridade penal se vai viver com mais segurança.
As propostas de redução da
maioridade penal assim como as diferentes propostas de agravamento de penas desembocariam
no desejo de privatizar o sistema – sendo a sua posição radicalmente contra?
Vão desembocar, sim, na defesa da
privatização do sistema penitenciário. Alguns estados brasileiros já estão
neste caminho. E não me venham dizer que são parcerias público-privadas, que de
público não têm nada. São contratos, como os de Minas Gerais, de 30 anos, a um
custo muito superior aos das prisões geridas pelo poder público. E o que se vê
nos Estados Unidos hoje, por exemplo? Muitos estados com índices de criminalidade
caindo, com número de presos se reduzindo e querendo se livrar dos altíssimos
custos de prisões privadas, mas sem condições de romper contratos milionários
firmados por 30 anos.
Conclusão?
Precisamos é ter a coragem de
admitir que este país esteja longe de cumprir suas mínimas responsabilidades
para com nossas crianças e jovens, sobretudo os pobres. Entre os adolescentes
que cumprem medidas sócio-educativas, aí incluída a privação de liberdade,
menos de 4% deles concluíram o ensino fundamental. Uma sociedade excludente e
injusta como a brasileira não pode apostar na redução da responsabilidade penal
como saída para a superação da violência.
*Os livros: Cemitério dos Vivos,
análise sociológica de uma prisão de mulheres. Quem Vigia os Vigias, análise
sobre controle externo da polícia (com Leonarda Musumeci e Ignacio Cano). A
Dona Das Chaves, relato de suas histórias ao longo dos mais de dez anos em que
trabalhou no sistema penitenciário (com a jornalista Anabela Paiva).
Créditos da foto: Wilson Dias /
ABr
Alternativa contra a redução da maioridade penal
ResponderExcluirO PT, que não aceita a redução da idade penal, liderada pela presidente Dilma Rousseff, vergonhosamente quer se juntar ao PSDB, de Geraldo Alckmin, para contornar a situação. O irreverente e atualíssimo Nelson Rodrigues, transpondo para a nossa política, lapidou: “O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha do dia seguinte.”
Soa desarrazoada a proposta do governador Geraldo Alckmin de alternativa à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Alckmin defende o aumento de três para oito anos do tempo de internação para adolescentes que praticarem crimes hediondos. Por que, por exemplo, na Inglaterra, país de educação elevada, o infante de 10 anos de idade é imputável e aqui é diferente? Qual a justificativa? O Brasil é mais humano que a Inglaterra, ou a hipocrisia de nossos humanistas faz a diferença?
A alternativa salomônica do governador paulista é pusilânime porque ela não combate a criminalidade do menor e se concentra apenas na infração hedionda. Se o maior de 16 anos pode votar, por que ele não pode ser responsabilizado criminalmente? Não, governador, o infrator maior de 16 anos, seja qual for o crime por ele cometido, tem que ser julgado como adulto e cumprir o tempo integral da pena, seja em casa de internação, seja em penitenciária. Ou, então, nos crimes de penas superiores a oito anos, que o menor permaneça oito anos na casa de internação para adolescentes, e o restante do tempo em penitenciária específica.
Cada país tem uma sentença, mas a legislação brasileira é muito leniente com menores infratores. Vejam a pena máxima para menores: Brasil: 3 anos de internação para todos os crimes; Canadá: 10 anos, se as sentenças forem somadas; Colômbia: 8 anos para assassinato e sequestro; Chile: 10 anos para crimes graves se tiverem mais de 16 anos, ou 5, se tiverem até 16; EUA: prisão perpétua, dependendo do estado; Alemanha: 10 anos para crimes graves; Itália: 5 anos para crimes graves; Índia: 3 anos para todos os crimes, sendo que a partir dos 7 anos os jovens já podem ser punidos, e a mulher só a partir de 18 anos; África do Sul: Igual à dos adultos; Japão: Prisão perpétua; França: Igual à dos adultos e Reino Unido: Igual à dos adultos.
Onde está o dinheiro de nossos impostos, que não é empregado pelos governos para construção de presídios de dignidade humana, para que o preso tenha atividade de trabalho e a cadeia não seja uma escola de crime? A lotação dos presídios é culpa exclusiva dos governos, dos políticos e do Judiciário, que não se empenham para combater a situação, mas são habilidosos para tramar reajuste de seus salários.
A redução da maioridade penal é uma exigência da sociedade, e não é uma minoria inexpressiva - de magistrados, políticos, defensores dos direitos humanos e da presidente da República - que vai impor o seu posicionamento ao de mais de 80% de brasileiros, conforme registram as pesquisas de opinião. O país tem que atender aos anseios da população, que é o principal agente da democracia.
Alternativa contra a redução da maioridade penal
ResponderExcluirO PT, que não aceita a redução da idade penal, liderada pela presidente Dilma Rousseff, vergonhosamente quer se juntar ao PSDB, de Geraldo Alckmin, para contornar a situação. O irreverente e atualíssimo Nelson Rodrigues, transpondo para a nossa política, lapidou: “O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha do dia seguinte.”
Soa desarrazoada a proposta do governador Geraldo Alckmin de alternativa à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Alckmin defende o aumento de três para oito anos do tempo de internação para adolescentes que praticarem crimes hediondos. Por que, por exemplo, na Inglaterra, país de educação elevada, o infante de 10 anos de idade é imputável e aqui é diferente? Qual a justificativa? O Brasil é mais humano que a Inglaterra, ou a hipocrisia de nossos humanistas faz a diferença?
A alternativa salomônica do governador paulista é pusilânime porque ela não combate a criminalidade do menor e se concentra apenas na infração hedionda. Se o maior de 16 anos pode votar, por que ele não pode ser responsabilizado criminalmente? Não, governador, o infrator maior de 16 anos, seja qual for o crime por ele cometido, tem que ser julgado como adulto e cumprir o tempo integral da pena, seja em casa de internação, seja em penitenciária. Ou, então, nos crimes de penas superiores a oito anos, que o menor permaneça oito anos na casa de internação para adolescentes, e o restante do tempo em penitenciária específica.
Cada país tem uma sentença, mas a legislação brasileira é muito leniente com menores infratores. Vejam a pena máxima para menores: Brasil: 3 anos de internação para todos os crimes; Canadá: 10 anos, se as sentenças forem somadas; Colômbia: 8 anos para assassinato e sequestro; Chile: 10 anos para crimes graves se tiverem mais de 16 anos, ou 5, se tiverem até 16; EUA: prisão perpétua, dependendo do estado; Alemanha: 10 anos para crimes graves; Itália: 5 anos para crimes graves; Índia: 3 anos para todos os crimes, sendo que a partir dos 7 anos os jovens já podem ser punidos, e a mulher só a partir de 18 anos; África do Sul: Igual à dos adultos; Japão: Prisão perpétua; França: Igual à dos adultos e Reino Unido: Igual à dos adultos.
Onde está o dinheiro de nossos impostos, que não é empregado pelos governos para construção de presídios de dignidade humana, para que o preso tenha atividade de trabalho e a cadeia não seja uma escola de crime? A lotação dos presídios é culpa exclusiva dos governos, dos políticos e do Judiciário, que não se empenham para combater a situação, mas são habilidosos para tramar reajuste de seus salários.
A redução da maioridade penal é uma exigência da sociedade, e não é uma minoria inexpressiva - de magistrados, políticos, defensores dos direitos humanos e da presidente da República - que vai impor o seu posicionamento ao de mais de 80% de brasileiros, conforme registram as pesquisas de opinião. O país tem que atender aos anseios da população, que é o principal agente da democracia.