As
relações desfavoráveis devem ser enfrentadas, e não servir de argumento para
mais recuos. Não foi essa a escolha do governo Dilma. Mas precisa ser a dos
movimentos sociais e da esquerda brasileira, se não quisermos ser levados pelo
governo ao abismo
por
Guilherme Boulos / http://www.diplomatique.org.br/
O
sinal de alarme soou. Com o avanço das pautas conservadoras – nas instituições
e nas ruas – e a crise do governo petista, unir forças tornou-se uma questão de
sobrevivência para a esquerda brasileira. Daí as diversas iniciativas de
“frentes de esquerda”.
Que
num momento como este precisamos organizar uma frente, parece claro. O que não
é tão evidente é qual seriam o caráter e os objetivos dela. E, ainda, se a
resposta a esses temas possibilitam a formação de uma única frente ou não.
Esse
é o debate que temos hoje e que precisa ser encarado sem receios. Definir para
onde queremos ir passa por entender como chegamos até aqui e os impasses que
estão colocados para as forças populares hoje no Brasil.
Esgotamento
de uma estratégia
O
Partido dos Trabalhadores caminha para completar treze anos no comando do
governo federal. Durante os dois mandatos de Lula e os cinco anos de Dilma
Rousseff vimos o apogeu e o esgotamento de uma estratégia política: o projeto
de avanços sociais sem reformas estruturais.
É
verdade que os governos petistas melhoraram as condições de vida dos mais
pobres, seja por meio da facilitação do crédito para o consumo, seja pela
geração de novos empregos e pelo aumento gradual do salário mínimo, seja ainda
por meio de programas sociais como o Bolsa Família, o ProUni e o Minha Casa,
Minha Vida (com todos os seus limites e contradições). E a esquerda erra se não
for capaz de reconhecer isso, estabelecendo sinal de equivalência com o
neoliberalismo tucano.
É
igualmente verdade, porém, que esses governos mantiveram intocadas as
estruturas arcaicas da sociedade brasileira. Não tocaram no tema distributivo,
não ousaram mexer em privilégios e não pautaram nenhuma das reformas populares
tão necessárias aos trabalhadores. Além disso, conservaram o modelo de
governabilidade conservadora que tem sido eficaz em garantir que tudo fique
como está desde o fim da ditadura militar.
A
perspectiva de limitar-se às mudanças possíveis sem conflito nem mobilização
circunscreveu o projeto petista a manejos no orçamento federal e ao uso dos
bancos públicos para estimular a economia. Isso foi suficiente para gerar
crescimento econômico enquanto a maré internacional estava favorável. Com o
crescimento, aumentava-se a arrecadação, o que permitia a reprodução do modelo.
No
entanto, a maré virou após 2008 e as condições para manter a estratégia foram
sendo minadas ano a ano. A margem para conciliação de interesses foi se
reduzindo na sociedade brasileira. Com o avanço da crise econômica, o véu do
consenso rasgou-se e o conflito social reapareceu numa cena de polarização. A
partir de junho de 2013, a política transbordou para as ruas e abriu-se o
período de disputa pelas saídas estratégicas.
Ao
final das eleições de 2014 ficou claro que as coisas não podiam mais permanecer
iguais. As condições econômicas não permitiam mais o “ganha-ganha” e as
condições políticas estavam bem mais deterioradas para o governo petista.
A
saída é pela esquerda
A
direita brasileira foi rápida e eficiente em construir sua própria narrativa
para a crise do petismo e apresentar suas saídas. O mantra – repetido sem
limites pela grande mídia – foi desmoralizar o PT como partido da corrupção e
associar a crise fiscal à ideia de que o governo “gastou demais” ou aos “roubos
na Petrobras”. O discurso pegou.
A
saída política oferecida foi um pacote de medidas e reformas regressivas e a
fragilização do poder do Executivo. Essa agenda ganhou força com a eleição de
Eduardo Cunha para a presidência da Câmara e as manifestações de 15 de março.
Entre
os projetos que passaram a pautar a agenda nacional estão a ampliação da
terceirização, uma contrarreforma política, a redução da maioridade penal e a
revisão do modelo de partilha do pré-sal.
Nesse
cenário, a posição do governo Dilma foi a pior possível. O governo não apenas
deixou de estabelecer agendas progressivas, como também fortaleceu as
regressivas, com a aplicação de (e insistência em) um ajuste fiscal
antipopular.
Editou
medidas provisórias que atacam o seguro-desemprego e as pensões, aumentou
compulsivamente os juros e cortou investimentos nos principais programas
sociais. Se tinha com isso a pretensão de garantir a governabilidade junto à
banca e à direita, tudo indica que fracassou: a instabilidade política só
cresce. O que o governo conseguiu com essa política foi reduzir sua
popularidade a 10% e fortalecer as saídas à direita.
Que
alternativas teria? Encampar uma agenda política de reformas populares,
ajustando as contas por meio de tributação progressiva aos ricos e assumindo de
fato temas cruciais, como a democratização das comunicações e uma reforma do
sistema político. Criar uma pauta que mobilizasse setores populares.
A
situação estava dada: ou se retrocedia ou se avançava, não havia muita margem
para o meio-termo. Insistir em recompor um pacto quando não havia mais
condições para isso, visando evitar o conflito, apenas repôs este último num
terreno mais desfavorável.
Alguns
devem estar pensando: “Está bem, mas e as relações de força? O governo não faz
o que quer, mas o que as circunstâncias permitem”. É verdade, ninguém faz
política nas condições que escolhe. Mas também ninguém é apenas refém das
relações de força, podendo sempre intervir para alterá-las. O governo é uma
ferramenta poderosa para incidir nas relações de força. Encarar relações
desfavoráveis como um impeditivo para enfrentamentos só fortalece e consolida
ainda mais essas relações. Se diante de um avanço da direita o governo só cede
à direita, quem ele está fortalecendo?
Que
há outras possibilidades, a história nos mostra. Em nossa América Latina, nos
últimos tempos, vários governos enfrentaram condições desfavoráveis e
responderam a elas apostando na mobilização popular e no enfrentamento
político. Conseguiram avançar em reformas que pareciam impossíveis, criaram
novas relações de força.
Aqui
mesmo, em abril deste ano, vimos algo nessa direção. A aprovação do projeto da
terceirização parecia assegurada até que mobilizações nas ruas e nas redes
reverteram o quadro e devolveram o projeto para a gaveta no Senado.
As
relações desfavoráveis devem ser enfrentadas, e não servir de argumento para
mais recuos. Não foi essa a escolha do governo Dilma. Mas precisa ser a dos
movimentos sociais e da esquerda brasileira, se não quisermos ser levados pelo
governo ao abismo.
Desafios
de uma frente
A
esquerda brasileira precisa apresentar uma saída para a situação política que
não seja mais do mesmo. Que não seja tentar recuperar uma estratégia e uma
tática que já demonstraram sinais de esgotamento.
Ante
o bloqueio de avanços sociais precisamos responder com um projeto de reformas
populares que seja capaz de representar saídas claras para a crise.
Ante
a impermeabilidade do sistema político à participação popular precisamos
responder com a retomada de amplas mobilizações, fazendo das ruas palco principal
de um projeto político de esquerda.
Esse
deve ser o maior objetivo de uma frente hoje no Brasil: retomar a capacidade de
mobilização social, impulsionando um novo ciclo de ascensão das lutas
populares. É nas ruas que alteraremos as relações de força.
O
caráter da frente que defendemos é essencialmente de mobilização, capaz de
canalizar as insatisfações populares para um projeto de esquerda.
Isso
implica garantir um equilíbrio difícil, mas necessário. De um lado, a frente
precisa ser um bastião contra a ofensiva conservadora e as saídas regressivas
para a crise. De outro, ser capaz de enfrentar as políticas antipopulares desse
governo com igual decisão.
É
possível que não consigamos enfrentar todos esses desafios numa única frente,
dada a diferença de posições que ainda persistem na esquerda brasileira. Há
aqueles que estão dispostos a enfrentar o golpismo e a ofensiva conservadora,
mas não têm a mesma disposição para combater as políticas do governo. E há
outros que, identificando de forma simplista a direita com o governo, flertam
com a onda antipetista, acreditando ilusoriamente que podem tirar algum saldo à
esquerda.
O
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e vários outros movimentos e organizações
da esquerda têm se empenhado desde o fim de 2014 em construir um espaço de
frente que faça esse duplo enfrentamento, focando a construção de uma agenda de
mobilizações nacionais. Essa frente foi importante para a construção de dias de
luta, como o 15 de abril, o 29 de maio e o 15 de junho. Agora convocou a
mobilização de 20 de agosto.
Esperamos
que, mesmo nessa diversidade de frentes e posições, a esquerda brasileira tenha
a capacidade de estar unida nas ruas para enfrentar os desafios da conjuntura.
Guilherme
Boulos
*Guilherme
Boulos é membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST).
Ilustração:
Mídia Ninja/CC
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