Quando tudo parecia pacificado, eis que duas
escolas foram ocupadas na Grande São Paulo. A faísca incendiou e até o momento
84 seguiram o exemplo.
Lincoln Secco // www.cartamaior.com.br
Na infraestrutura da sociedade civil há uma
militância em gestação. Diante dela, as instituições vigentes se revelam
incapazes de chegar ao tradicional equilíbrio entre cooptação e repressão.
Se olharmos para a trajetória do MPL, notaremos que
ele assumiu algumas bandeiras e, especialmente, o trabalho de base que o PT
abandonara há muito. Uso o MPL como uma sinédoque para expressar a imensa
coleção de movimentos que vieram à luz depois de Junho de 2013. Viu-se, então,
que até mesmo a forma “federativa” dos núcleos de base petistas dos anos 1980
foi vivenciada em outro patamar: uma estrutura assumidamente horizontal.
Para além da forma, entretanto, o que o MPL
significava era um conteúdo novo: o impasse da “disputa de hegemonia”, o
esgotamento da estratégia de acumulação de forças e a insuficiência do programa
“democrático popular”. Suas demandas não cabiam mais no desenvolvimentismo
periférico.
Ao não perceber isso, a dissolução da forma levou
muitos a vaticinar cedo demais que aquele trabalho de base havia naufragado num mar de vandalismo,
processos judiciais e motins frustrados contra a Copa do Mundo.
De fato, a criminalização de militantes sociais
espelhava a derrocada moral dos dirigentes petistas. Evidentemente que estes
por uma escolha errada: a de aceitar as regras do jogo. Aqueles por recusá-las.
A resultante dos dois processos conjugados e opostos é que não temos mais
detidos políticos, apenas terroristas ou corruptos.
O relaxamento de algumas prisões e as eleições de
2015 pareciam ter pacificado as ruas. A violência transportava-se para o
cenário das eleições. Enquanto o MPL sofria suas últimas derrotas sob repressão
policial, a contrarrevolução dos coxinhas parecia dar substância tardia à
polarização eleitoral.
No Planalto, o novo mandato petista reconhecia o
direito de manifestação que recusara aos manifestantes da Copa e, por fim,
oficializava a irrelevância da política: assumia o programa oposicionista,
enquanto a oposição votava contra o seu próprio programa! Uma terceira força
vinha ao palco com “ideias” compradas no mercado de programas partidários e
incontinenti submergia no verdadeiro mar de lama.
Quando tudo parecia pacificado e toda “violência”
canalizada para a batalha do impeachment, eis que duas escolas foram ocupadas
na Grande São Paulo. Apenas duas! A faísca incendiou o campo e 84
estabelecimentos de ensino (até o momento em que escrevo) seguiram o exemplo.
Por vários anos nenhum partido em São Paulo
apresentou capacidade tática para criar embaraços a um governo com forte apoio
eleitoral e midiático. Ele derrotou uma longa greve de professores e o
sindicato da categoria sequer foi ouvido pelo secretário de educação. O PT
limitou-se às negociações ou aos discursos numa tribuna desconhecida: a
Assembléia Legislativa. Mas um pequeno grupo de estudantes organizados
transformou o projeto de fechamento de escolas numa questão política para
desprazer daqueles que acusaram o “MPL” de ter sido a linha auxiliar do Palácio
dos Bandeirantes...
A esquerda não consegue manobrar no terreno da luta
cotidiana. Por outro lado, o protesto autônomo esgota-se em si mesmo,
eventualmente com uma vitória e outras vezes não. E o faz não por uma “falta”,
mas porque essa é a sua “natureza”: desfazer os nós da extensa rede de
dominação do capital.
“Só a política cria a possibilidade da manobra e do
movimento” dizia Gramsci. Mas que dizer de uma esquerda que criminaliza ela
mesma a “guerra de movimento” e adota uma estratégia que faliu há mais de dez
anos? Qual seria a nova estratégia, supondo que alguma ainda seja viável?
Parece que sob a comédia da luta parlamentar há um
consenso implícito, com as exceções de praxe. Um deles é o mais visível: o
pacote fiscal. Mas há outro: a repressão dos protestos sociais.
A Lei Antiterrorismo é o par inseparável do ajuste
econômico. Ela é o índice de uma estratégia de longo prazo. O ajuste pode ter
seus efeitos mitigados, embora não revertidos, numa conjuntura de ciclo
econômico ascendente. Já aquela lei é parte da estratégia permanente de uma
democracia racionada que precisa recorrer à violência a fim de controlar os
territórios da acumulação “primitiva”. Os juízes que tratem de legalizar ou
dilatar até a prescrição os crimes contra as mães a cada mês de maio.
Diz-se que o projeto de lei (proposto em 2013!)
atende a uma exigência do Grupo de Ação Financeira, criado em 1989 para
combater a lavagem de dinheiro e o financiamento de terrorismo, embora ninguém
jamais tivesse ouvido falar desse órgão até hoje.
Quando soube que a juventude se preparava para
retomar suas escolas, assaltaram-me dois pensamentos opostos: a espera da
autogestão escolar e a ignomínia daquela lei antiterrorismo.
No Palácio dos Bandeirantes ou em Brasília trama-se
o oposto daquela experimentação de aulas em pátios liberados. Uma das “ideias”
do projeto original de 2013 é o terrorismo contra coisas, incluindo
instituições de ensino...
Lincoln Secco é professor livre-docente de História
Contemporânea da Universidade de São Paulo
Créditos da foto: Mídia Ninja
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