segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A Escola retomada

Mídia Ninja
Quando tudo parecia pacificado, eis que duas escolas foram ocupadas na Grande São Paulo. A faísca incendiou e até o momento 84 seguiram o exemplo.

Lincoln Secco // www.cartamaior.com.br

Na infraestrutura da sociedade civil há uma militância em gestação. Diante dela, as instituições vigentes se revelam incapazes de chegar ao tradicional equilíbrio entre cooptação e repressão.

Se olharmos para a trajetória do MPL, notaremos que ele assumiu algumas bandeiras e, especialmente, o trabalho de base que o PT abandonara há muito. Uso o MPL como uma sinédoque para expressar a imensa coleção de movimentos que vieram à luz depois de Junho de 2013. Viu-se, então, que até mesmo a forma “federativa” dos núcleos de base petistas dos anos 1980 foi vivenciada em outro patamar: uma estrutura assumidamente horizontal.

Para além da forma, entretanto, o que o MPL significava era um conteúdo novo: o impasse da “disputa de hegemonia”, o esgotamento da estratégia de acumulação de forças e a insuficiência do programa “democrático popular”. Suas demandas não cabiam mais no desenvolvimentismo periférico.

Ao não perceber isso, a dissolução da forma levou muitos a vaticinar cedo demais que aquele trabalho de base  havia naufragado num mar de vandalismo, processos judiciais e motins frustrados contra a Copa do Mundo.

De fato, a criminalização de militantes sociais espelhava a derrocada moral dos dirigentes petistas. Evidentemente que estes por uma escolha errada: a de aceitar as regras do jogo. Aqueles por recusá-las. A resultante dos dois processos conjugados e opostos é que não temos mais detidos políticos, apenas terroristas ou corruptos.

O relaxamento de algumas prisões e as eleições de 2015 pareciam ter pacificado as ruas. A violência transportava-se para o cenário das eleições. Enquanto o MPL sofria suas últimas derrotas sob repressão policial, a contrarrevolução dos coxinhas parecia dar substância tardia à polarização eleitoral.

No Planalto, o novo mandato petista reconhecia o direito de manifestação que recusara aos manifestantes da Copa e, por fim, oficializava a irrelevância da política: assumia o programa oposicionista, enquanto a oposição votava contra o seu próprio programa! Uma terceira força vinha ao palco com “ideias” compradas no mercado de programas partidários e incontinenti submergia no verdadeiro mar de lama.

Quando tudo parecia pacificado e toda “violência” canalizada para a batalha do impeachment, eis que duas escolas foram ocupadas na Grande São Paulo. Apenas duas! A faísca incendiou o campo e 84 estabelecimentos de ensino (até o momento em que escrevo) seguiram o exemplo.

Por vários anos nenhum partido em São Paulo apresentou capacidade tática para criar embaraços a um governo com forte apoio eleitoral e midiático. Ele derrotou uma longa greve de professores e o sindicato da categoria sequer foi ouvido pelo secretário de educação. O PT limitou-se às negociações ou aos discursos numa tribuna desconhecida: a Assembléia Legislativa. Mas um pequeno grupo de estudantes organizados transformou o projeto de fechamento de escolas numa questão política para desprazer daqueles que acusaram o “MPL” de ter sido a linha auxiliar do Palácio dos Bandeirantes...

A esquerda não consegue manobrar no terreno da luta cotidiana. Por outro lado, o protesto autônomo esgota-se em si mesmo, eventualmente com uma vitória e outras vezes não. E o faz não por uma “falta”, mas porque essa é a sua “natureza”: desfazer os nós da extensa rede de dominação do capital.

“Só a política cria a possibilidade da manobra e do movimento” dizia Gramsci. Mas que dizer de uma esquerda que criminaliza ela mesma a “guerra de movimento” e adota uma estratégia que faliu há mais de dez anos? Qual seria a nova estratégia, supondo que alguma ainda seja viável?

Parece que sob a comédia da luta parlamentar há um consenso implícito, com as exceções de praxe. Um deles é o mais visível: o pacote fiscal. Mas há outro: a repressão dos protestos sociais.

A Lei Antiterrorismo é o par inseparável do ajuste econômico. Ela é o índice de uma estratégia de longo prazo. O ajuste pode ter seus efeitos mitigados, embora não revertidos, numa conjuntura de ciclo econômico ascendente. Já aquela lei é parte da estratégia permanente de uma democracia racionada que precisa recorrer à violência a fim de controlar os territórios da acumulação “primitiva”. Os juízes que tratem de legalizar ou dilatar até a prescrição os crimes contra as mães a cada mês de maio.

Diz-se que o projeto de lei (proposto em 2013!) atende a uma exigência do Grupo de Ação Financeira, criado em 1989 para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento de terrorismo, embora ninguém jamais tivesse ouvido falar desse órgão até hoje.

Quando soube que a juventude se preparava para retomar suas escolas, assaltaram-me dois pensamentos opostos: a espera da autogestão escolar e a ignomínia daquela lei antiterrorismo.

No Palácio dos Bandeirantes ou em Brasília trama-se o oposto daquela experimentação de aulas em pátios liberados. Uma das “ideias” do projeto original de 2013 é o terrorismo contra coisas, incluindo instituições de ensino...

Lincoln Secco é professor livre-docente de História Contemporânea da Universidade de São Paulo


Créditos da foto: Mídia Ninja

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