A candidatura de Haddad não
disputa apenas a prefeitura de São Paulo, mas um espaço de renascimento da
agenda progressista no Brasil. E a direita sabe disso.
por: Saul Leblon // www.cartamaior.com.br
Para jogar a pá de cal no PT em
2018, ou antes, como se alardeia, o conservadorismo terá que passar por um
teste de competência como coveiro da democracia social brasileira.
A pedra no meio do caminho é a
eleição municipal de São Paulo, em 2 de outubro próximo.
A maior cidade do país é também o
quartel-general da oposição conservadora; seu bunker político e logístico; o
principal partido da direita brasileira, o PSDB, deita suas raízes mais
profundas aqui.
Palco recente das maiores
manifestações da elite e da classe média contra o governo da presidenta Dilma,
a capital abriga o grande aparato da mídia conservadora , seus mais importantes
think tanks e o braço financeiro que integra o capitalismo brasileiro à finança
global com os interesses aí encastoados.
São Paulo é a principal caixa de
ressonância dos imputs emitidos pelo juiz Sergio Moro para pautar a vida
política nacional através do manejo discricionário da operação Lava Jato.
Para a direita, em tese, a disputa
eleitoral de outubro equivale a uma final de campeonato jogando em casa.
Mais que isso.
A recidiva da crise mundial
entrou em campo.
As cotações das commodities estão
no nível mais baixo em 16 anos; os preços do barril de petróleo caíram 70% em
18 meses.
O conjunto atrofiou o braço
fiscal do Estado brasileiro impondo tarifaços e cortes orçamentários, que
repercutiram localmente prejudicando a receita, o investimento, obras, metas e
promessas de gestores municipais.
A insatisfação com os preços em
alta e com o mercado de trabalho, em baixa, ademais da liquefação da
industrialização brasileira nas últimas décadas tem em SP a sua principal usina
de reprocessamento político.
Três em cada dez desempregados
brasileiros vivem em São Paulo.
Não só.
Na maior cidade brasileira esse
torniquete veio se sobrepor a um nó fiscal do qual a administração Haddad já
era vítima.
Premido pela emissão
conservadora, o governo federal, já no seu primeiro mandato de Dilma, aceitou
como verdade a fotomontagem do ‘abismo fiscal’ iminente, alardeada em dueto com
a gula rentista.
A consequência para São Paulo é
que a chamada Lei de Renegociação da Dívida, aprovada em 2014 --e pela qual o montante do débito da cidade
cairia de R$ 63 bi para R$ 36 bi, teve sua vigência seguidamente postergada,
até ser adiada para o segundo semestre de 2016.
Em abril do ano passado, Haddad
obteve liminar para pagar em juízo a dívida como manda a lei, tendo como
referência o IPCA mais juros de 4% ao ano (contra 9% pela regra draconiana vigente
desde o governo FHC ).
A diferença significa despender
R$ 4 bilhões ao ano com o serviço da dívida ou cortar isso para R$ 2,7 bi.
Para ser mais claro: o saldo
anual de R$ 1,3 bi entre um e outro caso equivale praticamente ao total do
investimento em drenagem (R$1,4bi) previsto pelo PAC para toda a cidade de São Paulo.
Tendo vencido a queda de braço
com a sucursal da ortodoxia no governo Dilma, o prefeito Haddad conseguiu
recuperar investimentos em 2015, com um volume recorde de R$ 4,5 bi.
A tradução disso em obras
prontas, porém, talvez tenha perdido seu timming eleitoral.
A agenda política da esquerda em
São Paulo reúne, portanto, uma síntese das dificuldades enfrentadas em âmbito
nacional para se renovar e resistir à ordem unida do ‘ajuste’, recomendada como
uma espécie de suicídio assistido, de fora e de dentro do país.
É esse o pano de fundo das
eleições municipais em que Fernando Haddad disputará a permanência no cargo.
O assalto conservador será
implacável.
A ascensão recente de Maurício
Macri na Argentina, incubado por metas e métodos que dão pertinência à
expressão ‘terra-arrasada’, serve de amostra da octanagem política necessária à
regressão econômica pretendida.
Um bibelô da direita, o animador
de auditórios conservadores, João Dória Jr –preferido de Alckmin para disputar
a prefeitura pelo PSDB—tem como bandeira ‘privatizar tudo’; fazer de São Paulo
uma vitrine do Estado mínimo que os patrões advogam para o Brasil.
Trata-se de um mascote bajulador,
mas é um pouco esse o espírito de uma direita que fareja ser esse o seu momento
para colocar ‘ordem na casa-grande’ e a partir daí botar o resto da senzala na
linha.
Os desdobramentos concretos e
simbólicos de uma vitória progressista no núcleo duro da reação brasileira e
latino-americana, em contrapartida, não seriam menos contundentes nesse
momento.
Podem configurar um divisor de
águas, não apenas eleitoral, mas um passo substantivo na superação da
encruzilhada vivida pela esquerda brasileira, desafiada a se renovar do ponto
de vista estratégico e organizativo para não morrer.
Vencer em São Paulo para renascer
no Brasil? Talvez não seja exagerado colocar as coisas nesses termos nos dias
que correm.
O tempo é curto.
São nove meses para o parto que
inclui rever erros e acertos e negociar alianças em torno de um projeto-vitrine
para o maior centro capitalista da América Latina.
Pouca dúvida pode haver: se
vencer a batalha de São Paulo, a esquerda brasileira reacenderá a esperança na
construção da democracia social em toda a região, liberando energias que vão
sacudir a correlação de forças na disputa brasileira de 2018.
Pelas razões mencionadas, Haddad
não terá entre as suas armas uma marca de grandes obras para esgrimir o cerco
unido dos adversários em 2 de outubro.
Mais que isso: terá em Marta
Suplicy um contraponto desfrutável a atacar esse flanco com realizações agora
apoiadas por quem sempre as combateu.
O detalhe não negligenciável é
que Haddad resistiu, lutou e venceu a disputa contra austericidas fiscais
incrustrados no governo federal.
Ao vencer credenciou-se para
liderar um conjunto de reformas
imperativas, ‘as reformas de base’ da São Paulo do século XXI, tendo
preparado o arcabouço legal e cultural para isso.
Fazem parte desse arsenal o novo
Plano Diretor da cidade; os corredores de ônibus; as ciclovias; a redução de
velocidade que salvou 300 vidas em 2015 e reduziu em 10 mil o números de
acidentados, bem como a reapropriação do espaço urbano pela cidadania, um
exercício inteligente de progressivo deslocamento da hegemonia do carro no
cotidiano e no imaginário da cidade.
Não é pouco considerando-se que
vem aliado a uma prometida aceleração na
entrega de vagas em creches, na inauguração de 20 ‘hospitais¬dia’, mais 10
hospitais móveis, 3 hospitais gerais, 16 UBS, 15 UPAs, CEUs, a duplicação de
vias importantes e obras de drenagem...
‘Vou entregar mais do que
qualquer prefeito que me antecedeu, em condições econômicas mais favoráveis’,
afirma o prefeito, cobrado por jornalistas.
Não será suficiente, porém, nem
se viabilizará de fato sem a contrapartida de uma ligadura histórica forte, que
dê coerência, credibilidade e, sobretudo relevância a esses avanços na vida
política local e nacional.
Insista-se: a candidatura Haddad
não disputa apenas a prefeitura de São Paulo, mas um espaço de renascimento da
agenda progressista no Brasil.
E a direita sabe disso. E sabe
que precisa derrota-lo por isso.
É o poder na sociedade brasileira
que está em jogo.
Sua marca, portanto, não pode ser
outra exceto a redistribuição do poder político na cidade, como método e
resposta à crise de identidade da própria esquerda, e resistência ao triturador
instaurado pela desordem neoliberal na economia, nas referências políticas e na
subjetividade social.
Não é uma panaceia. É uma disputa
de poder para se ter o direito à cidade e à vida dentro dela.
Vale em ponto maior para o país e
para o século 21.
Para o jogral político
conservador a vontade da elite será sempre mais procedente que o discernimento
popular.
Foi o que sempre norteou a vida
de São Paulo, com os resultados sabidos: periferias conflagradas e classe média
encapsulada no preconceito e no carro parado no trânsito.
Ser a referência de uma ruptura
crível com esse cemitério da cidadania constitui a grande novidade de uma
candidatura progressista empenhada, de fato, em enfrentar de maneira
transparente os dilemas sociais, psicossociais, culturais, políticos e orçamentários
de um adensamento urbano com mais de 12 milhões de habitantes, cerca de 6% da
população do país.
Ao contrário do que apregoa o
pré-candidato tucano, Dória Jr, não há ‘solução de mercado’ para os desafios
contidos em uma cápsula de concreto desse calibre, permanentemente prestes a
explodir.
Assim como a encruzilhada do
desenvolvimento brasileiro não será superada por fórmulas fiscais rendetoras,
mas sim por uma repactuação baseada em grandes acordos para emprego, salários,
juros, inflação, tarifas e resultados fiscais, do mesmo modo, a luz no fim do
túnel para São Paulo está na democratização das suas grandes decisões.
Haddad tem no amplo debate
promovido em torno do Plano Diretor, na eleição de mais de mil representantes
de bairros e no projeto de eleição direta dos sub-prefeitos das regionais, uma
carteira que o credencia a ser a referência de uma nova forma de gerir São
Paulo, em sintonia com a opinião de seus moradores.
Abrir canais para que moradores
pobres e os da classe média possam debater problemas comuns e pactuar
prioridades é a grande obra da democracia nunca antes tentada na cidade.
Difícil?
Todas as outras fracassaram.
As dimensões superlativas de São
Paulo não podem ser evocadas como barreira à democratização do seu comando.
Trata-se de modular o timming das
ações para discuti-las antes com a população. É um imperativo opcional à
fascistização dos conflitos. Resta providenciar os meios organizativos e
tecnológicos para isso.
Não estamos falando de um ponto
remoto na galáxia onde se possa recomeçar do zero, mas sim de uma das maiores
manchas urbanas do planeta marmorizada de desigualdade e recalques explosivos.
E da qual Fernando Haddad é o
prefeito e o candidato.
As promessas do amanhã precisam
provar sua pertinência agora.
Imediatamente já.
Por exemplo?
Por exemplo, negociando com os
movimentos empenhados no transporte gratuito um referendo democrático para escrutinar
o seu apoio e eventuais formas de financiamento.
Em entrevista recente ao jornal
Valor, o prefeito informou que para
atender as reivindicações do MPL, São Paulo teria de gastar R$ 8 bilhões
por ano em subsídios.
Equivale à arrecadação anual de todo o IPTU recolhido
em SP.
Ou quatro vezes o subsídio já
oferecido (R$ 2 bilhões em 2015 para assegurar transporte gratuito a 530 mil
estudantes e idosos).
O que é mais racional, levar esse
debate a um escrutínio da cidadania ou transferir a sua mediação à
conflagrações periódicas entre a polícia militar de Alckmin e os blacks blocs?
É só um exemplo do calibre das
decisões cobradas pelo presente para o futuro da cidade, do país, da democracia
e do desenvolvimento.
Confia-las aos métodos
convencionais, ou às ‘soluções de mercado’ afundará São Paulo no destino que
lhe reservou a elite brasileira branca e plutocrática.
Qual seja, ser um exemplo da
viabilidade, replicável, de uma das mais iníquas versões do capitalismo no
planeta.
Não é necessário dizer o destino
correlato que esse projeto reserva às forças progressistas brasileiras.
Faltam nove meses para essa
decisão.
A ver.
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