sábado, 25 de junho de 2016

A ilha comunista em transformação

Turistas do mundo inteiro correm para conhecer Cuba antes das mudanças que se anunciam. Mas será que o país vai mesmo trilhar o caminho capitalista?

Najla Passos // www.cartamaior.com.br

Andar por Cuba e ver o último reduto comunista das Américas em transformação é a expectativa que leva cada vez mais turistas à ilha. Em 2015, 3,5 milhões de pessoas visitaram o país, uma cifra recorde segundo o Ministério do Turismo de Cuba. Só pela capital, passaram 1,6 milhão de estrangeiros, mais da metade dos 2,1 habitantes da província de La Habana. As expectativas para este ano são ainda mais animadoras. Eventos como o show do Rolling Stones, o desfile da Chanel, a filmagem do filme Velozes e Furiosos, a reabilitação dos cruzeiros Miami-Havana e, principalmente, a visita do presidente Barack Obama à Cuba colocaram o país no centro da agenda internacional.
“Embora os Estados Unidos ainda proíbam seus cidadãos de visitarem Cuba, a retomada das relações diplomáticas chamou a atenção de toda a imprensa mundial para a ilha e isso fomentou o turismo”, avalia o guia Armando González que, há dois anos, fechou o restaurante que tinha para se dedicar exclusivamente à atividade turística. “A tese de que o regime cubano possa estar no fim – verdadeira ou não – tem provocado uma corrida à ilha daqueles que querem conhecer Cuba antes das mudanças que se anunciam”, sustenta.

Com os turistas chegando cada vez em maior número, o país faz o que pode para recebê-los bem. As casas em condições precárias que ilustram as fotos da imprensa capitalista há décadas ainda persistem em muitas ruelas. Não é raro encontrá-las. Mas a recuperação dos dez lugares considerados Patrimônios Culturais da Humanidade e dos 257 monumentos nacionais segue a todo vapor no país inteiro.

Em Havana Vieja, na capital, o investimento em restauração do patrimônio histórico salta aos olhos. Tapumes cobrem a fachada do Capitólio, a sede da Assembleia Nacional Popular, assim como a da antiga Estação Ferroviária. Em uma caminhada pelo Passeo do Prado, onde a Chanel exibiu sua nova coleção, é impossível não notar os andaimes que cobrem boa parte da avenida mais charmosa da cidade. Quem consegue despregar os olhos das preciosidades arquitetônicas, se espanta com as gruas cortando o céu.


Para muito além de Havana, províncias como Pinar del Rio também recebem investimentos para atrair os turistas. No pequeno município de Viñales, de apenas 26 mil habitantes, o casario da rua principal está todo ele sendo reconstruído. As casas da elite açucareira que foram entregues aos camponeses após a revolução socialista de 1959 agora se transformam em pousadas, restaurantes, lojas de conveniência e souvenir. 

Capacidade hoteleira em expansão

Cuba possui hoje uma capacidade hoteleira instalada de 65,7 mil apartamentos. A expectativa do governo é que, até 2030, este número salte para 108 mil, dos quais 30 mil serão construídos com capital estrangeiro. Desde a década de 1990, quando o colapso da União Soviética fez com que a ilha mergulhasse na sua mais grave crise econômica, o chamado Período Especial, o governo do então presidente Fidel Castro admitiu que o capital privado ajudasse com a rede hoteleira, até então 100% estatal. Mas, até hoje, os estrangeiros só podem participar dos investimentos com até 49% das ações.

Dados do Ministério do Turismo comprovam a existência de 27 empresas mistas hoteleiras com capacidade instalada para receber 5.906 turistas, em 15 hotéis diferentes. Entre eles estão os resorts estrangeiros acusados de privatizar praias cubanas, como as de Cayo Largo, a pequena ilha paradisíaca do sul que encanta os turistas. E há projetos para a construção de novos empreendimentos: o governo afirma que 17 grupos hoteleiros estrangeiros já contam com 76 contratos de administração e comercialização aprovados.

O setor privado que investe na estrutura turística da ilha também é fortalecido por milhares de empreendimentos do próprio povo cubano, que desde 2011 pode receber turistas em suas residências de forma legalizada. Conforme as estatísticas oficiais, há 16 mil quartos para hospedagem em residências de toda a ilha. São as chamadas casas particulares, apresentadas como a forma mais eficiente de se mergulhar na cultura local.

O deputado distrital brasileiro Ricardo Valle (PT-DF) foi um dos que experimentou o serviço durante sua última visita a ilha, no 1º de Maio passado. Assim que chegou ao país, ele ficou hospedado em hotel mas, ao retornar de uma viagem ao interior, precisou se alojar em casa de família. “É até mais gostoso, porque a gente fica mais próximo do povo cubano e da realidade local”, avalia.

Empreendedores de um país estatizado

O turismo também movimenta muitas outras atividades locais exercidas por particulares, como restaurantes, taxis, lojas de lembrancinhas. De acordo com o governo, são cerca de 500 mil os cubanos que já ganham a vida fora do serviço estatal. São os chamados “cuentapropistas”, aqueles que trabalham por conta própria. Só no setor de restaurantes e lanchonetes, eles movimentam 1,7 mil estabelecimentos chamados de “paladares”, uma das muitas heranças culturais que a paixão pelas telenovelas brasileiras legou aos cubanos. 

Em “Vale Tudo”, veiculada pela TV Globo de 1988 a 1989, a personagem Raquel Aciolli, interpretada por Regina Duarte, era uma mãe deixada na pobreza pela filha inescrupulosa. Para garantir seu sustento, ela abriu um restaurante caseiro, batizado de Paladar, que a transformou em uma empresária de sucesso. A novela foi exibida em Cuba no início do Período Especial e acabou por influenciar toda uma nova geração de empreendedores que decidiu vencer as amarras do regime socialista para se aventurar em negócios próprios.

Hoje, na ilha, existem paladares de todos os tipos. Foi em um deles, o San Cristóbal, que Obama jantou no seu primeiro dia da histórica visita a Cuba, em março passado. Localizado em Havana Vieja, ele está entre o time que cobra até 30 Pesos Conversíveis (CUCs), mais ou menos R$ 135, por um prato de farta comida típica cubana. Há, no entanto, opções bem mais populares. Perto da Universidade de Havana, no Vedado, o Paladar Don Quixote vende uma comida deliciosa por 4,5 CUCs, cerca de R$ 20. O La Cocinita del Médio, na mesma região, garante um sanduíche por 2,1 CUCs.

O governo cubano mantém uma frota de carros novos, confortáveis, destinadas a atender aos turistas. Mas os motoristas particulares de velhos clássicos norte-americanos também disputam os clientes, junto a motoqueiros e ciclistas. O taxista Dario Lopez é um deles. Ele sustenta a família com a renda que obtém exclusivamente da bicicleta adaptada em que leva turistas para passear pelos recantos da cidade onde o tráfego de veículos é parcialmente proibido. Licenciado pelo Estado, paga um imposto mensal de 150 CUCs, cerca de R$ 675. “Ainda assim, compensa muito mais do que trabalhar para o governo e ganhar em pesos cubanos”, afirma.

Entre dois mundos
Paralelamente à Cuba que movimenta o CUC do turismo, está uma outra, bem menos promissora, que ainda sustenta suas transações comerciais com o Peso Cubano, a outra moeda oficial da ilha, mais antiga. E como 1 CUC vale 24 Pesos Cubanos, dois países de realidades bem distintas convivem no mesmo espaço e fomentam o ressurgimento de uma desigualdade social que o regime socialista se gabava de já ter exterminado.

O guia Armando cobra 30 CUCs por um passeio completo por Havana de 8 horas. Mas a maioria dos funcionários públicos ganha menos do que isso por um mês inteiro de trabalho. Caso da cuidadora auxiliar de uma creche do centro de Havana, Emily Diáz, que recebe 500 Pesos Cubanos por mês. “São mais ou menos 25 dólares. É muito pouco, mesmo tendo direito a casa, saúde e educação totalmente gratuitas”, afirma ela, que é mãe de dois filhos.

Nos finais de semana, Emily bate ponto na porta dos hotéis de luxo em busca de trocados estrangeiros. Ela se oferece para levar turistas em festivais de rumba que nem sempre existem, terreiros que realizam possíveis homenagens aos orixás ou para comprar charutos no mercado negro. Entre uma promessa e outra, conta suas mazelas e fatura algum dinheiro. “Em Cuba, de uma forma ou de outra, todo mundo acaba dependendo do turismo para viver”, afirma.

No interior do país, o padrão se repete. Em Viñales, o camponês Benito Camejón vende sua produção de tabaco, café e frutas para o Estado. Mas ganha dinheiro mesmo é com os turistas que lotam sua chácara para saber como se dá a produção dos charutos cubanos, reconhecidos como os melhores do mundo. Em uma típica casa camponesa cubana, construída com palmeiras à exemplo das ocas dos indígenas brasileiros, Benito mostra como fermenta o fumo para diversificar os sabores dos charutos. 

Na antiga sede da fazenda, mantém os antigos móveis coloniais em uma sala usada para receber os turistas com café e rum gratuitos. Depois, oferece seus charutos artesanais por 20 CUCs (R$ 90), cada pacote com dez unidades. Ao lado, construiu uma confortável casa nova, toda equipada com eletrodomésticos modernos. “Desde a retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos, os turistas estão vindo cada vez em maior número e o dinheiro está entrando”, justifica.

Estímulo à desigualdade ou caminho para o desenvolvimento?

Para o jornalista Boris Arenas, opositor declarado ao regime, o câmbio duplo que divide os cubanos entre os que ganham em moeda forte e fraca está no centro das desigualdades sociais que hoje envergonham a ilha. E o que é mais grave, deve aumentar ainda mais com as mudanças em curso. “Um país que convive com duas moedas promove a desigualdade”, reitera.

Como exemplo destes dois mundos, ele cita a especulação imobiliária, à qual apenas um grupo tem acesso. “Em Vedado, o bairro classe média alta em que moro, um apartamento simples de dois quartos, sem reformas há duas décadas, chega a custar 75 mil dólares. Enquanto isso, cubanos que não têm dinheiro continuam morando empilhados nas casas velhas que desabam a cada passagem de tornado”, compara.

O guia Armando concorda que o país está dividido e, nem de longe, ostenta a igualdade prometida pelos revolucionários. “Cuba não é um país comunista, nem socialista, nem coisa alguma. A Suíça, por exemplo, é muito mais socialista do Cuba, porque lá as pessoas têm as mesmas oportunidades”, compara.

O diplomata aposentado Jorge Ferreira Diaz admite que o duplo câmbio criou o que chama de diferenças na capacidade de ingresso da população. Mas nega que isso tenha a ver com as mudanças em curso ou com a reaproximação com os Estados Unidos. Ele ressalta que, apesar do CUC e do Peso Cubano, toda a Cuba se encontra no que é a espinha dorsal do sistema: os serviços públicos de qualidade legados da revolução, que são garantidos para todos os cubanos, sem exceção. “As boas escolas, a saúde, a segurança pública e a proteção social são para todos, os que ganham em CUCs e os que ganham em Pesos Cubanos”, rebate.

Ex-conselheiro político das embaixadas do Brasil e da Venezuela, ele nega que o país esteja se afastando do socialismo. Conforme ele, o CUC só foi aprovado nos anos 1990 porque Cuba vivia sua pior crise econômica. “Por causa do bloqueio norte-americano estabelecido logo após a revolução, Cuba estabeleceu 85% das suas relações comerciais com países do Leste Europeu. Então, com a desintegração da União Soviética, foram tempos muito difíceis por aqui. Os Estados unidos endureceram ainda mais o bloqueio. Faltava de tudo e Cuba decidiu explorar o turismo como alternativa econômica. Para isso, precisava de uma moeda compatível com o dólar”, esclarece.

Diaz argumenta que fomentar o turismo foi a medida possível para manter as conquistas da revolução – como saúde e educação de qualidade para todos, além de evitar que o povo cubano morresse de fome, como almejavam os inimigos do regime. Mas, para isso, foi necessário abrir mão da igualdade plena que haviam implantado, na qual um médico ou um ministro ganhava a mesma coisa que um trabalhador braçal. “Tivemos que passar da igualdade para políticas mais realistas, porque precisávamos de financiamento para sair da crise e o turismo foi a alternativa encontrada, porque garante uma entrada de capital com rapidez”, justifica.

De acordo com ele, o duplo câmbio só se mantém porque Cuba ainda não saiu completamente do Período Especial. “Os tempos difíceis só vão acabar quando os Estados Unidos suspenderem o bloqueio e Cuba puder manter relações comerciais com todos os países do mundo”, sustenta. Segundo ele, o Partido Comunista já aprovou uma diretriz para unificar a moeda nacional a longo prazo, uma tarefa que todos sabem que será difícil, mas que precisa ser enfrentada. “O governo tem a intenção de reduzir paulatinamente a distância entre as duas moedas”, acrescenta.

Atualizações ou reformas?

Deputada da Assembleia Nacional Popular, membro do Partido Comunista de Cuba e diretora do Instituto Cubano de Amizade entre os Povos (Icap), Kenia Serrano Puig também rebate as interpretações de que a ilha esteja trilhando o rumo capitalista. Segundo ela, o que ocorre é justamente o contrário: Cuba está protegendo as conquistas sociais, que são o verdadeiro legado da Revolução.

“O último congresso do Partido Comunista, realizado em abril, aprovou um novo Plano de Desenvolvimento que prevê a abertura de mais áreas da atividade econômica para a iniciativa privada. Mas isso não quer dizer que estamos abandonando nosso ideário. São apenas atualizações. Não reformas”, ressalta.

Entre as principais, destaca a que propõe a legalização de novos serviços executados por particulares, como salões de beleza e serviços de assistências técnicas diversas. “Até agora, o sistema só reconhecia as cooperativas agrícolas, mas isso será estendido para outros setores. Na verdade, ao contrário do que muitos pensam, o regime nunca aboliu completamente a propriedade privada e essas atualizações são o reconhecimento de que o Estado não tem como dar conta de tudo de forma satisfatória”, esclarece.

As propostas aprovadas no congresso estão sendo discutidas pelas organizações da sociedade civil, para que sejam melhoradas, ampliadas e implantadas por definitivo. “Em Cuba, democracia não é apenas a garantia de eleições, mas também da participação popular em todo o processo político. No congresso anterior, realizado em 2011, as propostas aprovadas foram discutidas em eventos que contaram com a participação de 8 milhões dos 11,2 milhões de cubanos”, orgulha-se.



Esperançosos, mas com o pé atrás
À exceção do pequeno grupo de dissidentes que encontra muito mais ressonância fora do que dentro do país, os cubanos estão animados com a retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos. Entretanto, não acreditam que ela posa resolver em curto espaço de tempo o principal problema que os afeta: o do bloqueio econômico.

A cuidadora auxiliar Emily confessa que está com o pé atrás. “Nosso presidente, Raúl Castro, diz que a reaproximação com os Estados Unidos pode melhorar a vida do povo cubano, mas nós estamos esperando as águas fluírem. Sabemos que o presidente Obama quer esta reaproximação, mas também sabemos que ele não governa sozinho e que os congressistas estadunidenses não pensam como ele. Então, esse processo pode demorar”, afirma.

Para o professor de salsa Jorge Felix, a retomada das relações significa mais visitantes na ilha e, consequentemente, mais dinheiro. Mas, para ele, o essencial é que o vizinho suspenda o bloqueio econômico: “Nós vivemos em um país maravilhoso, com segurança, educação e saúde de qualidade. O único problema é o bloqueio, especialmente o de alimentos”.

Do alto da sua experiência com relações diplomáticas, Jorge Ferrera Diaz também se mantém reticente. Ele lembra que a reaproximação entre os dois países começou há 1,5 ano e, até agora, os resultados práticos são ínfimos. “As relações diplomáticas melhoraram, mas os Estados Unidos mantêm o bloqueio econômico, continuam desrespeitando os direitos humanos e a soberania cubana com a Base de Guantánamo e ainda não revogaram a Lei de Incentivo à Imigração, que faz com que milhares de cubanos arrisquem suas vidas no mar para ganhar a vida no país vizinho”, resume.

A deputada da Assembleia Nacional afirma que é princípio da política externa de Cuba dialogar de forma pacífica com todos os países que assim o desejarem. Por isso, as negociações com os Estados Unidos serão levadas a cabo. Entretanto, ressalta que Cuba não fará concessões ao vizinho rico que mitiga o povo cubano com as restrições econômicas. “A reaproximação é uma importante vitória da resistência do povo cubano que, para não abrir mão de sua soberania e das conquistas sociais da revolução, suportou esses 57 anos de bloqueio. Mas o fim do bloqueio é a condição necessária para superação do impasse histórico”, avalia.

Ela lembra que, no ano passado, já após o início do processo de reaproximação, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, pelo 24º ano consecutivo, uma resolução em apoio ao fim do bloqueio à Cuba. Entretanto, Estados Unidos e Israel se mantiveram contrários à ela”, recorda. “É claro que todos queremos a reaproximação, mas Cuba e Estados Unidos são inimigos históricos e isso não será superado em curto prazo”, conclui.

Créditos da foto: Najla Passos

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