sexta-feira, 27 de março de 2020

A jangada de pedra brasileira à deriva em sua dupla tragédia, por Álvaro Miranda

Isolamento? Para além de todos os cuidados sanitários recomendados pelos especialistas da saúde, é hora também de aprofundar o isolamento desse governo e barrá-lo – com ou sem impeachment.

       Por Alvaro Miranda
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A jangada de pedra brasileira à deriva em sua dupla tragédia

por Álvaro Miranda

A dupla tragédia brasileira sinaliza dias muito piores – mas o seu reverso também. Na sucessão e acirramento dos conflitos, os elos da corrente se quebram, e coisas melhores podem vir pela frente numa velocidade maior ou menor, dependendo do imponderável. 

Duplicado o problema atual da seguinte maneira. Além da pandemia do Coronavírus, uma doença específica, nossa, que esperamos seja passageira, apesar dos riscos de letalidade para democracia, é expressa em outro Covid-19 – sigla que sugiro aqui para sintetizar a Convergência Obscurantista do Voto Imbecil-Demofóbico cuja culminância foi a eleição do atual governo em 2019.

Culminância, pois resultou flagrantemente da trajetória que todos sabemos – iniciada pelo golpe que derrubou Dilma Rousseff há exatamente quatro anos atrás. A hora, porém, não é de buscar o paciente zero desse desastre, nem de chorar pelo óleo derramado da caixa de máquinas – muito menos de autocrítica dessa ou daquela força política. É hora, sim, de enfrentarmos e tomarmos posição diante do que vem pela frente em termos de crise econômica e política no processo de mudanças. 

Isolamento? Para além de todos os cuidados sanitários recomendados pelos especialistas da saúde, é hora também de aprofundar o isolamento desse governo e barrá-lo – com ou sem impeachment. Vale dizer, neutralizá-lo dia a dia, minando-o, provocando fissuras e chagas em seu corpo, tornando-o febril, enjoado e trôpego, aqui e ali, mesmo que seja dentro do jogo errático que ele mesmo procura conduzir. 

Se não tendo mais o que fazer, Bolsonaro resolveu esticar a corda e ir para o tudo ou nada, apostando no acirramento dos problemas a fim de tentar jogar a culpa nos governadores ou na imprensa, três perguntas de saída: 

Governo central numa federação continental como o Brasil – formal e materialmente detentor do monopólio da violência física – ele enfrentará resistências e protestos como e com quais armas? Com impeachment ou não, o fascistóide se garante de que maneira, apoiado por 30 por cento do eleitorado, se é que são 30 por cento mesmo, diante do aprofundamento dos problemas? Batendo de frente com os governadores, como vai ficar agora seu discurso tresloucado contra o PT, as esquerdas, os comunistas, a Folha de São Paulo e o Jornal Nacional?

Todos nós que repudiamos e lutamos contra o golpe de 2016 sabíamos que não ia acabar bem a canalhice de políticos, empresários, meios de comunicação, autoridades judiciais e estratos da classe média, alguns cínica e objetivamente articulados, outros embalados ingenuamente pelo mantra hipócrita do combate à corrupção. Enfim, esses que, junto com outras forças, agora terão que derrubar Bolsonaro, esses mesmos que haviam compactuado antes com a cambulhada. 

Claro que muitos podem nem ter imaginado que iríamos chegar à quina do barranco – o último passo de frente para o abismo, aquela linha de fronteira invisível, no vazio, onde ventos perigosos tornam trôpega e frágil a mínima sensatez do que se espera ser o tal convívio democrático.

Tropeçando já com a sola furada, quase sem pernas, dando chutes às cegas em suas previsões e cálculos, com um governo trocando os pés pelas mãos, o Brasil vai cambaleando, com olhos turvos pela náusea e pela vertigem. 

Parece até a jangada de pedra do Saramago. No romance, Portugal se desprende do continente europeu e fica errando pelo Atlântico. Uma das situações mais impressionantes da história é a sensação diante das rachaduras das paredes, o desmembramento das terras, durante o processo de separação do país do resto da Europa – o esgarçamento, enfim, da vida num lance insólito e inopinado do destino.

Entretanto, um país não pode ficar ao sabor de acasos e rompantes. Com Bolsonaro no governo, o Brasil é essa embarcação adernando, que não pode acabar bem, claro: totalmente à deriva, não por ter se desprendido das Américas, mas sim por ter quebrado seu próprio “eixo” ou “quilha” (embora as metáforas não caibam para jangadas, que também não possuem caixa de máquinas). Enfim, uma deriva muito perigosa em meio ao sonambulismo de gente estúpida, como no romance de Hermann Broch retratando a sociedade das primeiras décadas do século passado.

Tudo isso é óbvio para analistas que avaliam a conjuntura e as possibilidades de cenários futuros muito melhor do que este humilde escriba. Porém, o óbvio, muitas vezes, está tão perto dos nossos olhos, que mal conseguimos enxergá-lo. E esse óbvio é que, maiores que os interesses particularistas (e outros golpistas) de quem quer que seja, as contradições são mais fortes e exigem tomada de posição para determinada direção com outro timoneiro. Exigem escolhas firmes, como aconteceu com Dilma Rousseff, no caso, de forma negativa e perniciosa.

Se a segunda tragédia veio de fora, na forma de pandemia, a primeira já estava instalada em território nacional nos últimos anos. Até os empresários do mercado varejista estão dizendo que o setor já estava mal, muito mal, bem antes da pandemia. Portanto, não venham com essa chantagem hipócrita de dizer que o confinamento das pessoas em casa será o responsável pelos problemas na economia. 

Que a primeira tragédia, portanto, isto é, a da convergência obscurantista, anterior ao Covid-19 da pandemia, possa, no conflito dos contrários, inocular um contra-vírus, digamos assim, um antídoto, do bem coletivo, evidentemente, espécie de ficha caindo para os que participaram de toda a avacalhação da democracia. 

Se Dilma Rousseff cometeu erros de políticas públicas causando problemas na economia nos últimos dois anos do seu governo, os que a derrubaram, de forma criminosa, cometeram a violência maior contra a democracia, abrindo espaço não só para Bolsonaro e sua gente de quinta categoria, mas para os tais 30 por cento de sonâmbulos que ainda o apoiam. Isso, se esse contingente não for mais uma fakenews a ser desmascarada na quebra dos elos da corrente dessa jangada à deriva.

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