
Fontes: Rebelião / Socialismo e Democracia [Imagem: Manifestação em solidariedade à população do Jacarezinho sob o lema 'não foi uma operação policial, foi um massacre'. Créditos: Roberto Parizotti. Fotos Públicas]
Nesse artigo, o autor sustenta que o massacre do Jacarezinho é um exemplo - mais um - do caráter autoritário e criminoso do regime de Bolsonaro, que busca apenas perpetuar os privilégios das classes dominantes e as desigualdades sociais necessárias para mantê-los.
O massacre recentemente perpetrado no bairro do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no qual foram assassinados 27 jovens moradores daquela comunidade, reflete visivelmente o caráter de extrema direita do atual governo que tem dado carta branca aos diversos Policiais (Militar, Civil e Federal) ocupar com sangue e fogo as áreas pobres das principais cidades do Brasil.
As declarações do Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, foram o corolário da visão preconceituosa e maligna que as autoridades têm sobre as pessoas que vivem nos territórios mais carenciados. Questionado sobre o número excessivo de mortes entre a população civil deixada pela operação da Polícia Civil, o General Mourão sintetizou em uma frase simples e brutal sua opinião sobre a sequela de mortes deixadas pela ação policial: “São todos bandidos”. A situação jurídica dos jovens assassinados pouco importava para ele, porque no fim não passavam de pobres e isso basta para justificar o massacre. “A polícia não mata sozinha. Esse é um tipo de discurso que legitima a barbárie e a violência policial ”, disse após ouvir as declarações, o advogado Joel Luiz Costa
De fato, atualmente há pouca regulamentação sobre o comportamento abusivo dos órgãos encarregados de zelar pela Segurança do Cidadão, transformando-se em uma espécie de órgão autônomo do braço repressivo do Estado, com pouco ou nenhum controle por parte das instituições que o fariam. denominado Estado Democrático de Direito. Sem os limites e restrições institucionais estabelecidos pela Constituição de 1988 efetivamente operando, a polícia usa e abusa da violência arbitrária com o objetivo de aniquilar principalmente os segmentos mais vulneráveis do país, especialmente os jovens, negros e pobres que vivem no país. ou favelas. Em 2019 ocorreram mais de 47 mil mortes violentas no país, das quais 74 por cento corresponderam à população negra e na qual mais de 50 por cento tinham entre 15 e 29 anos [1].
A rigor, as chamadas forças de ordem agem com total impunidade devido à postura contemplativa de uma "política de extermínio" que vem sendo endossada por agentes do Estado, comandantes militares, ministros e subsecretários, governadores, prefeitos, membros do judiciário e também, uma parte dos eleitores influenciada pelo discurso de ódio e a criminalização dos pobres que tem sido disseminado ad nauseam nos últimos anos pelas autoridades e pela mídia. Esse massacre reflete, em suma, o que uma parte da sociedade entende como a solução para os problemas de segurança pública: "Um bom bandido é um bandido morto".
Max Weber concebeu o Estado burocrático moderno como aquela entidade que tem legitimidade para deter o monopólio do uso da força ou da violência física dentro dos limites de um determinado território. Ou seja, dito Estado consistiria no estabelecimento de uma relação de dominação de entidade superior sobre todos os cidadãos, com base no instrumento que lhe confere a legitimidade do uso da violência sob a aceitação de quem se submete a essa pretensa autoridade. pelos agentes dominantes localizados no Estado e seus dispositivos coercitivos.
Mas essa legitimidade concedida pelo povo ao Estado e suas instituições seria seriamente afetada quando certas instituições de sua estrutura atuassem com uma autonomia que transgride as regras do jogo definidas e compartilhadas nas democracias modernas. O uso excessivo da força fere e flagela o corpo social que mais cedo ou mais tarde se rebela contra a arbitrariedade e os abusos, como tem acontecido historicamente nas lutas das populações contra os regimes autoritários ou ditatoriais. Exceto no caso de sociedades tremendamente controladas - ou como nas distopias literárias de George Orwell no estilo de 1984 ou Admirável Mundo Novo por Aldous Huxley - a tendência é que as pessoas se cansem das políticas repressivas e se organizem para combater a tirania e a opressão. No entanto, deve-se reconhecer que a adesão maciça ao regime nazista ou ao próprio fascismo na época de Mussolini são temas que continuam a intrigar os cientistas sociais que se inspiram em categorias ou tipos ideais weberianos para interpretar a questão da legitimidade da autoridade.
Fora dessas considerações mais gerais, o que se observa no caso brasileiro é o uso de uma força predatória para combater a pobreza em determinados territórios. A Polícia e também as Milícias -que são formadas por militares, policiais da ativa e ex-policiais- se tornaram uma força criminosa dentro do Estado com fortes laços com a classe política: deputados, prefeitos, vereadores e outros agentes do poder local. As milícias consolidaram-se nas grandes cidades e representam a mão do terror do Estado submerso na ilegalidade e na impunidade. Avançou nos territórios dominados pelo tráfico até chegar às Assembléias Legislativas de cada Estado da Federação e finalmente instalar-se no Congresso e no Poder Executivo, agora com o consentimento e apoio inegável da família Bolsonaro. São responsáveis por inúmeros crimes que os Tribunais de Justiça ignoram, desconsideram e afastam por covardia ou conveniência.
Essas milícias operam nos interstícios de um Estado ignorante que mantém a lógica de ocupação do território por atividades criminosas e controle sobre um conjunto de atividades importantes da vida cotidiana, que vão desde o transporte urbano, distribuição de gás, sinal de cabo, etc. que passa também pela oferta de proteção aos comerciantes e finalmente atinge a supremacia no mercado de armas e drogas. É uma rede cada vez mais extensa que atualmente intervém em mais de 60 por cento das operações criminosas que existem entre as quase 700 favelas existentes na metrópole do Rio de Janeiro.
A favela do Jacarezinho é um espaço dominado pelo Comando Vermelho (CV) e foi necessário realizar essa operação de “limpeza” para deixar o campo livre para a posterior instalação das milícias. Localizada em uma região estratégica ao norte do Rio, essa comunidade abriga cerca de 40.000 pessoas que lutam diariamente para sobreviver no contexto da pandemia. Grande parte das famílias desta parte da cidade tem sofrido em primeira mão os efeitos do desemprego e da precariedade do trabalho que se aprofundou desde o início das restrições e quarentenas decorrentes do avanço deste flagelo que atinge toda a população.
Jacarezinho, assim como outras favelas emblemáticas do Rio de Janeiro (Rosinha, Santa Marta, Complexo do Alemão, Maré, Vidigal, Turano, etc.) vivem há muitos anos a violência devastadora do Estado brasileiro, conforme demonstrado em diversos estudos e relatórios elaborados por instituições de direitos humanos e pelo próprio Ministério Público por meio do Ministério Público do Estado.
Em investigação realizada por especialistas da Universidade Federal Fluminense (UFF), em que analisaram 11.323 operações realizadas pela Polícia do Estado do Rio de Janeiro nos últimos 15 anos, conclui-se que, considerando o número de mortos , feridos, detidos e apreensões de drogas e armas, a maioria dessas incursões (85 por cento) foram completamente ineficazes no combate ao crime organizado. E muitos deles tiveram um resultado desastroso para os habitantes, com inúmeras mortes devido a balas perdidas ou a tiros disparados pelas forças policiais.
Onde essas operações sem dúvida tiveram sucesso é em espalhar o medo entre os habitantes das comunidades pobres do país, que diariamente vêem suas vidas devastadas pelo excesso de violência que termina na morte de muitos inocentes e que restringe suas necessidades. território, exercer plenamente seus direitos e levar uma existência digna. O Estado atua há décadas com desprezo pelos bairros pobres, ajudando a reproduzir a violência e a marginalização, para depois penalizar e reprimir as estratégias de sobrevivência que emergem da própria população.
A penalização funciona como um mecanismo que busca invisibilizar os problemas sociais que existem entre os setores carentes e que o Estado não enfrenta com as políticas sociais, mas com maior repressão e exclusão. Como Loïc Wacquant corretamente aponta em seu livro Punishing the poor : "A prisão atua como um recipiente judicial no qual os dejetos humanos da sociedade de mercado são despejados."
Cadeia e assassinato, essas são as políticas “empreendidas” pelo atual regime neofascista para manter os pobres em submissão, para espalhar o medo entre os habitantes da periferia e para domesticar e subjugar a força de trabalho produzida pelas favelas. Se não é por meio dos órgãos “legitimados” pelas instituições democráticas, é por meio de aparatos extra-institucionais que contam com o aval e a cumplicidade do governo.
O assassinato sumário de alguns desses jovens (com tiro na cabeça após sua rendição) reflete não apenas o desprezo pelos pobres e negros, mas também expressa a completa banalização da morte. Em um país onde impera a necropolítica, a perda de algumas vidas de "bandidos" não tem importância se comparada às mais de 420 mil mortes que existem por causa do Coronavírus. A tragédia brasileira tem que acabar para uma parcela majoritária da população - como os moradores do Jacarezinho - que não suportam mais tanto descanso e abandono. No entanto, as instituições continuam apoiando uma administração que parece ter o horizonte de acabar com qualquer garantia democrática para impor definitivamente um regime autoritário.
Notas
[1] Paula Leite e Thiago Amâncio “Operação no Rio com 25 escândalos mortos falta de inteligência de ações policiais”, na Folha de São Paulo, 07/05/2021.
Fernando de la Cuadra é doutor em Ciências Sociais e editor do blog Socialismo y Democracia .
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