Antropóloga mapeou as fake news bolsonaristas ao longo da pandemia e conclui: a desinformação não é apenas ideológica, mas também estratégia para desresponsabilizar governo e tentar abrir lucrativo mercado de vacina ao setor privado…

A partir das suas pesquisas, quais diria que foram os principais elementos do governo Bolsonaro que geraram maiores danos durante a pandemia?
Como essa narrativa iniciou e como foi se transformando a partir do próprio medo?
Como entender o que está por trás da propagação dessas teorias conspiratórias neste momento particular que temos vivido e em relação ao governo Bolsonaro?
As teorias conspiratórias são um subtipo de desinformação. A desinformação tem várias características: são fake news, teorias conspiratórias, campanhas de difamação, uso de informações que não são falsas, mas usadas em contextos diferentes como forma de manipular a opinião pública etc.
Desinformação e ganhos econômicos
Se sairmos um pouco da teoria conspiratória e pensarmos na desinformação, quais são os interesses de propagar a desinformação, quem ganha com isso? Hoje, algumas posições, principalmente por conta das investigações da CPI, já não falam em negacionismo, mas em corrupção, em propina, em interesses econômicos. Mas quando analisamos os estudos sobre negacionismo e desinformação, vemos que uma coisa não está separada da outra. Uma das formas de explicarmos e de entendermos posições de desinformação e de negacionismo está relacionada a ganhos econômicos e financeiros.
Alguns trabalhos mostram como a indústria do tabaco acabou financiando campanhas que estavam ligadas a posições negacionistas para colocar em dúvida os estudos que estavam surgindo sobre os malefícios do cigarro. A indústria do petróleo também fez isso, principalmente em campanhas contra o desenvolvimento de estudos ligados ao aquecimento global e ao meio ambiente. A indústria de pesticidas e agrotóxicos também e, no limite, até a indústria de alimentos fez isso. Então, existem campanhas negacionistas e de desinformação, inclusive, feitas pela indústria de alimentos, que desestimula o aleitamento materno para estimular a compra de ultraprocessados, como a fórmula para alimentar os bebês.
Qual é a motivação dessas indústrias? Não são apenas interesses ideológicos, até porque não se separam os interesses econômicos dos interesses ideológicos. O mesmo ocorre neste momento que estamos vivendo: não dá para entender o negacionismo como se ele ocorresse apenas quando se tem uma excentricidade ou discursos desconectados da realidade ou fantasiosos. Existem formas de negacionismo que estão relacionadas à desregulação por parte do Estado, seja na área ambiental, de consumo, de uso de pesticidas e agrotóxicos, na área de alimentos, das propagandas etc. Ou seja, tem uma série de desregulações que atendem a interesses econômicos. Além disso, tem uma situação que está relacionada ao fato de que, no campo da comunicação, a desinformação se tornou uma indústria muito lucrativa. Quando existem, como hoje, no campo comunicacional, determinados vídeos no YouTube que são monetizados, ou seja, quanto mais pessoas assistem, mais ganha a pessoa que produziu o vídeo, há a possibilidade de criar vídeos que sejam peças de desinformação, mas que vão causar o medo, vão instigar as pessoas a assistirem. A propagação da desinformação nesse sentido é lucrativa. Então, não é apenas uma coisa ideológica; é preciso distinguir quem produz a desinformação e a coloca em circulação, quem a estimula e quem a consome. Pode ser que pessoas estejam consumindo essas desinformações por estarem com medo, por estarem numa situação de insegurança, por ingenuidade, por dificuldade de lidar com o contexto digital, e outras razões. Mas é preciso separar essas motivações daquelas de quem produz esse material.
Neoliberalismo e desinformação
Por isso, o artigo traz uma discussão entre neoliberalismo e desinformação, neoliberalismo e as teorias conspiratórias. Algumas pessoas acreditam que o 5G vai controlar a mente delas, mas que o neutralizariam se colocassem na cabeça um chapéu feito de papel alumínio. Quando falamos de negacionismo, às vezes, dá a impressão de que estamos falando só de pessoas que vão colocar o chapéu de alumínio na cabeça, de modo que o Bill Gates não tenha acesso ao que se passa na mente delas. Mas não é só isso. Uma outra forma de negacionismo é quando há o chamado “mercado” definindo posições na área de saúde pública e definindo posições para as quais deveriam, em última instância, ser consultados especialistas e cientistas. Mas, ao contrário, são consultadas pessoas da área do “mercado”, que vão dizer se tem ou não que abrir ou fechar o comércio, fazer ou não lockdown, se tem ou não que aderir ao distanciamento social, baseados em projeções que são da área da economia e que estão atendendo a interesses que não são os de saúde pública, mas que estão relacionados especificamente a questões econômicas. Isso é uma forma de negacionismo.
Podemos, então, afirmar que o negacionismo apareceu lá no começo de forma mais clássica e que depois foi sofisticando suas estratégias?
Exato, é isso mesmo. Tanto é que primeiro temos uma situação de teste. Pode parecer estranho termos uma profusão de teorias ou de narrativas que podem até ser contraditórias entre si, mas há um processo que é o de lançar determinadas coisas na opinião pública e testar qual narrativa vai funcionar melhor. Assim, entre as várias narrativas que estão em circulação, acaba acontecendo uma estratégia, especialmente no caso da extrema direita, de testagem mesmo. Ou seja, coloca-se em circulação uma série de teorias e vai se investir naquela que tiver maior adesão.
No artigo da pesquisa, exploramos o fenômeno que alguns autores chamam de globalização das teorias conspiratórias. Consiste em observar como as teorias conspiratórias vêm se tornando um fenômeno transnacional. É o caso das teorias antivacinas nos Estados Unidos e que depois se tornam transnacionais, e chegam ao caso do Brasil e de diferentes lugares no mundo. Acontece que essas teorias e a desinformação como um todo não vão funcionar da mesma forma em diferentes países, porque existem as necessidades locais, tem as questões históricas, sociais e a própria forma como as instituições e a política estão organizadas. Por exemplo, no Brasil, parte das teorias conspiratórias antivacinas não encontrou um terreno fértil para se espalhar, porque aqui temos o SUS. Assim, tínhamos essa camada longa de proteção de anos de políticas públicas na área de saúde, um histórico de campanhas pró-vacinas – veja a importância de figuras como Zé Gotinha, especialmente para as crianças – e isso fez com que algumas das teorias conspiratórias, embora fortes nos EUA, não tivessem tanta força no caso brasileiro, inclusive porque lá o sistema de saúde é privado.
E, nesse caso da Covid-19, chegou a aparecer uma ideia, lá no começo, embora tenha mudado um pouco depois, de que as empresas só estavam visando ao lucro e as pessoas questionavam: será mesmo que é uma vacina? Ou será que só querem que se pague pelas vacinas? No caso do Brasil, foi ficando cada vez mais claro, ainda antes de se ter as vacinas finalizadas, de que se nós tivéssemos vacinas contra a Covid, elas não seriam pagas. Então, não faz sentido você acreditar que estão querendo lucrar com as pessoas, se as vacinas serão fornecidas de forma gratuita.
Assim, parte das teorias antivacinas no caso da Covid foram aniquiladas pelo nosso histórico do SUS, por sermos referência em vacinação, e, no caso dos EUA, pelo fato de as vacinas terem sido distribuídas também de forma gratuita dentro de uma estrutura estatal, mesmo que a partir de sistemas de parcerias.
Ouvindo a senhora falar, é possível se conectar àquela possibilidade que foi defendida pelo governo brasileiro de que as vacinas poderiam ser adquiridas pelo setor privado e parte dessas vacinas doadas ao SUS. Isso faz sentido, dentro dessa ideia de ‘lucrar’ com as vacinas? Afinal, a CPI da Pandemia tem apontado não só um caminho de negacionismo, mas também de corrupção.
Pode fazer essa relação sim. Antes da publicação de nosso artigo, escrevi um texto sobre esse projeto de lei para aquisição de vacinas contra Covid de forma privada, destacando como, no caso do Brasil, isso poderia representar uma questão de apartheid sanitário. Ou seja, a aquisição de vacinas privadas, no contexto e no modo como estava em discussão – e que tem a ver com questões como a defesa para importar vacinas sem terem sido aprovadas pela Anvisa –, pode ser vista como uma forma de negacionismo.
Isso porque o negacionismo tem a ver com questões que visam, em última instância, a um enfraquecimento da regulação por parte dos Estados. Como a Anvisa é um órgão regulatório, descredibilizar a Anvisa e oferecer a possibilidade de comprar vacinas sem o seu aval acaba esvaziando o órgão regulatório e atendendo a interesses de órgãos privados específicos, além de, claro, colocar a população brasileira em risco. Aliás, diferentes coisas poderiam acontecer, como corrermos o risco de termos vacinas não seguras e, na melhor das hipóteses, tendo apenas vacinas aprovadas pela Anvisa, poderíamos chegar a uma situação de acirramento das desigualdades, com a ideia de que as empresas pudessem vacinar seus funcionários. Isso, num país em que se tem um grau de desigualdade tão grande e um mundo do trabalho em que grande parte da mão de obra não tem carteira assinada, além do nível de desemprego que temos hoje, iria acirrar as desigualdades já existentes no Brasil.
Além disso, do ponto de vista sanitário, isso não faz sentido. Para a vacina funcionar, não pode ser tomada como uma saída individual, mas deve ser um pacto coletivo. Isso não adianta nem para quem tomou a vacina, pois se imunizarmos apenas uma parte da população, não há efetividade. Por isso, nesse caso, considero a compra privada de vacinas como uma forma de negacionismo, e isso tem a ver com aquela lógica que comentei de que o mercado não deve ter regulação e que deve haver a substituição de órgãos regulatórios, de cientistas, pelas decisões do mercado.
Em sua pesquisa, a senhora faz todo um mapeamento discursivo. Esse mapa revela uma estratégia desse governo? E qual seria essa ação que faz uso do negacionismo e das teorias conspiratórias?
Para responder eu vou fazer referência ao trabalho da Deisy Ventura e de sua equipe, publicado pela Conectas, em que analisaram vasto material mostrando que, no caso do Brasil, tivemos um projeto intencional de contar com o maior número possível de pessoas contaminadas na população. Nesse caso, o projeto era de que, acreditando na chamada imunidade de rebanho por contágio, a pandemia iria acabar porque se iria adquirir essa imunidade coletivamente. Ou seja, isso não foi um descuido, foi algo deliberado.
Considero que foi mesmo um projeto para colocar toda a população em risco porque, se considerarmos que, a essa altura do campeonato, já se sabia o percentual de pessoas que poderiam morrer nesse processo, significa que o cálculo de mortes era o esperado. Assim, é importante perceber isso como projeto; não foi acaso e nem falta de gestão, mas intencional. Às vezes, as pessoas tendem a ver que o que aconteceu foi apenas uma inaptidão por parte do governo Bolsonaro, mas quando se vê um trabalho como o da Deisy Ventura, percebemos que esse foi um projeto que foi colocado em processo na tentativa de ser implementado.
Recentemente, vi no noticiário que o Brasil, mesmo entrando no consórcio Covax Facility, pediu um número mínimo de vacinas. Ou seja, não queria as vacinas. Não foi uma questão de descuido ou falta de investimento público, de falta de estratégia ou logística, foi uma escolha deliberada.
Muitas vezes a própria imprensa coloca a figura do ex-ministro Eduardo Pazuello como o de um grande incompetente. Mas, pelo que a senhora coloca, seria o contrário. Talvez, ele fosse realmente muito competente em seu projeto. Correto?
Tanto que Pazuello, quando saiu do Ministério da Saúde, disse: “missão cumprida”. Então, foi lá e cumpriu a sua missão da maneira como se esperava. Esse é o ponto.
Voltando à sua pesquisa. Nela, a senhora trabalha a categoria de medo social. Gostaria que detalhasse esse conceito e explicasse por que, nesses tempos que temos vivido, o medo social parece ter fácil adesão.
Pensar o medo como um tipo de afeto político, em que a resposta para diminuir o medo social não estaria apenas em levar informação para a população e, pela via da racionalidade, explicar que as vacinas são seguras, pois isso tudo é uma parte do processo. Do ponto de vista da literatura que estamos abordando e mobilizando para discutir o mundo social, o que gera o medo social é a situação de insegurança que está ligada a questões econômicas, conectando diretamente com o neoliberalismo. Trata-se da ideia de que é preciso a redução de investimentos por parte do Estado nas áreas de educação, de saúde, de campanhas de vacinação (que está sendo praticamente nula no Brasil). Há uma lógica em que a palavra final mais forte está ligada a um lobby do privado versus a Anvisa. Portanto, cria-se uma situação de desemprego, em que o Auxílio Emergencial surgiu por muita pressão popular, muita luta, mas, se fosse pelo governo, não haveria esse auxílio. Então, o Estado não teria adotado uma política pública para conseguir amparar esta situação. Quando estamos diante de cenários como este, em que as pessoas têm medo de perder o emprego, não têm seguridade social, em que há uma situação de insegurança política e econômica, isso faz com que as pessoas tenham medo e passem a ser mais suscetíveis a teorias conspiratórias, ficando mais expostas a essas situações.
Existe uma linha da psicologia nos estudos de teorias conspiratórias em que se questiona sobre as razões do porquê algumas pessoas estão mais propensas que outras a acreditar nesses discursos. As respostas estão muito ligadas a questões pessoais e individuais – e isso é importante e relevante –, mas o tipo de literatura que estamos mobilizando fala mais de fenômenos sociais e de quando são colocadas em prática políticas de austeridade e como isso gera uma situação de insegurança, medo social, fazendo com que as pessoas fiquem mais suscetíveis a estas teorias. Umas das formas, não a única, de combater a desinformação passa por ter mais transparência na informação, e no nosso caso teria sido bom se tivéssemos mais peças publicitárias informativas para falar sobre a pandemia, os riscos, como já fizemos em outros momentos da história do Brasil, com a epidemia de HIV/aids. Além disso, é importante pensarmos como combater essa situação de insegurança social a partir de políticas públicas, de investimentos por parte do Estado em áreas de atendimento à população que são estratégicas. Não é só no campo da racionalidade que vamos convencer as pessoas, pois muitas estão sem trabalhar, não têm como sustentar suas famílias e, pelo sim pelo não, vão se submeter a tomar medicamentos sem eficácia comprovada para poderem ir trabalhar e fazer suas coisas.
O Brasil não distribui máscaras, não fez campanha de informação e o Auxílio Emergencial foi agora reduzido a valores inadequados às necessidades das pessoas: esses são aspectos que nos ajudam a entender por que as teorias conspiratórias estão em circulação. Antes de falarmos que é estranho as pessoas não entenderem esses discursos fantasiosos, é preciso compreender que parte da população vai ficando em uma situação de insegurança social.
Tudo isso tem a ver com o elo que vocês fazem do neoliberalismo, porque vai tirando o Estado e as pessoas ficam cada vez mais fragilizadas…
Bolsonaro foi se desresponsabilizando pela pandemia e responsabilizando cada vez mais as famílias. A frase de Bolsonaro “cada família que cuide do seu idoso” diz, no fundo, que nós, o Estado, não estamos nos responsabilizando com uma rede de segurança para as pessoas idosas, as pessoas doentes, as crianças, as famílias, as mulheres, os vulneráveis. Isso recai muito fortemente sobre essa população vulnerabilizada que precisa dar conta de sobreviver e de cuidar dos doentes, passando por uma série de marcadores de desigualdade, dentre eles a questão da raça.
Deseja acrescentar algo?
Para o estudo que fizemos utilizamos uma autora chamada Ruth Wodak, que explica que essas teorias conspiratórias acabam ganhando “credibilidade” a partir de alguns elementos, dentre eles o uso da autoridade, quando, por exemplo, um médico vai no WhatsApp e diz que trabalha em um hospital e que, por isso, sabe o que está falando. Há o elemento da “moral” que está ligada a todas essas coisas que falei, isto é, os pânicos morais, quando levamos em conta a fala da Mayra Pinheiro na CPI [da Pandemia], que comenta que tinha um pênis na frente do prédio da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, discurso que está ligado à moralidade. O outro elemento está ligado à racionalização, a supostos estudos relacionados a determinadas teorias conspiratórias. O último elemento é o que a autora chama de “mitopoiesis”, em que a teoria conspiratória e as narrativas relacionadas ao medo vão se juntando e criando grandes estruturas narrativas. Por exemplo, as muitas narrativas sobre as vacinas vão se colando umas às outras e criam uma estrutura. O que analisamos em nossa pesquisa mais detalhadamente é esse quarto elemento.
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