domingo, 19 de setembro de 2021

O legado humanista de Paulo Freire

Em 19 de setembro de 1921, nasceu Paulo Freire, o pensador brasileiro que mais influenciou o desenvolvimento das humanidades e da educação em todo o mundo.

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Em 19 de setembro de 1921, há exatos 100 anos, nasceu Paulo Freire. Ator e autor de enorme coerência, dedicou sua vida à luta pela construção de um método pedagógico que ajude a construir as condições para a emancipação das pessoas e colabore para transformar o mundo.

Ninguém sabe tudo e ninguém sabe tudo;
ninguém educa ninguém, ninguém se educa, os
homens se educam pelo mundo.

Paulo Freire ( Pedagogia do Oprimido , 1968)

Em 19 de setembro de 1921, nasceu Paulo Freire, o pensador brasileiro que mais influenciou o desenvolvimento das humanidades e da educação em todo o mundo. Ao longo de sua vida fecunda, Freire foi um ator e autor de enorme coerência, dedicando-se à luta pela construção de um método pedagógico que ajudasse a gerar as condições para a emancipação das pessoas e que simultaneamente ajudasse a transformar o mundo.

Desde o início, como idealizador do Programa Nacional de Alfabetização do governo João Goulart, esse ilustre pernambucano colocou em prática sua concepção de um tipo de alfabetização que resgataria o saber dos sujeitos letrados em um contexto histórico específico. Sua pedagogia baseou-se na crítica aos dispositivos de dominação existentes nas sociedades para perpetuar e consolidar o poder e os privilégios de uma minoria detentora de recursos econômicos, políticos, culturais, ideológicos e educacionais.

Sua perspectiva de oposição às formas de reprodução do poder por meio dos mecanismos educacionais o levou a conceber a pedagogia como uma prática emancipatória vinculada ao fato de que são os próprios sujeitos que empreendem o processo de sua formação por meio da consciência de seu lugar no mundo e de um. realidade que é compartilhada com outros que se encontram na mesma situação de subordinação.

Nós todos sabemos alguma coisa

Para Freire, então, a tarefa pedagógica representa um caminho de autodescoberta, onde ensinar não significa apenas transferir saberes de quem os tem para quem não os tem. Muito pelo contrário: ensinar na Freire implica gerar possibilidades de produção e construção do conhecimento de forma conjunta e colaborativa.

Isso supõe a necessidade de situar o processo pedagógico em cada contexto particular e desvincular dessa realidade as potencialidades libertadoras dos alunos numa perspectiva de transformação das condições de vida dos grupos subalternos para superar o que se denominou «relação entre colonizadores e colonizados» . Em outras palavras, o “oprimido” descobre na ação pedagógica dialética qual é a realidade em que está inserido e quais são as condições que lhe permitirão transformar esse contexto social.

Aqui a reflexão de Freire aponta para uma compreensão estrutural da relação de dominação que se estabelece através dos mecanismos pedagógicos sacralizados presentes no sistema escolar que supõem uma transferência ou «depósito» (modelo de educação bancária) daqueles que se apropriaram do conhecimento histórico e daqueles que o foram. excluídos ou que não têm nenhum conhecimento.

Essa modalidade única de empreendimento educacional foi consagrada ao longo da história e funciona como um instrumento de dominação de classe. Desse modo, a educação passa a ser um ato de depósito , e a única margem de ação que se oferece aos alunos é receber esses depósitos, salvá-los e arquivá-los, tornando a ação educativa um mero processo acrítico de transferência de conhecimentos, valores e visão de mundo das classes dominantes.

Na implementação de sua proposta educacional alternativa, Paulo Freire foi introduzindo elementos eminentemente inovadores da tarefa pedagógica e das formas pelas quais é possível articular o ensino com as condições concretas de vida e trabalho dos jovens e adultos que participam da aprendizagem. processo. Freire reconhece e assume que os adultos analfabetos são possuidores de seus próprios saberes e cultura, o que pode e deve ser considerado o ponto de partida de qualquer processo de ensino.

É por isso que a análise do fenômeno educacional que Freire propõe supõe a conscientização dos alunos para que, a partir dessa compreensão da posição que ocuparam estruturalmente no processo educativo, superem a visão desencantada e desmobilizadora que tem estado «Formatando» para incorporar uma perspectiva crítica que lhes permita se tornarem sujeitos ativos do processo educativo, como práxis de busca compartilhada e, consequentemente, emancipatória e transformadora.

São os próprios alunos que devem abrir suas consciências para lutar contra a dominação, a opressão e a injustiça. Isso implica descobrir por que estou no estado em que me encontro e como posso superar essa situação por meio de um projeto coletivo. “Ler o mundo para transformá-lo”: nisto reside o caráter “subversivo” da proposta freiriana e a razão pela qual tem sido sistematicamente atacada pelos porta-vozes do establishment .

Há uma ideia tão simples quanto central na concepção freiriana: ninguém se educa sozinho. As pessoas se educam mutuamente mediadas pelo mundo e, para tanto, os educadores populares são atores fundamentais - embora não exclusivos - uma vez que o desafio educacional requer a participação de todos os envolvidos. Naturalmente, o educador deve dominar a metodologia. Mas o processo pedagógico é, antes de tudo, uma tarefa colaborativa.

Todos nós ignoramos algo

Com a experiência acumulada na educação de adultos no meio rural, Freire escreve um livro notável, intitulado Extensão ou comunicação? , em que parte do questionamento do conceito de «extensão» - tradicionalmente utilizado em projetos de intervenção no setor agrário - e o revela como uma forma de «invasão cultural», justamente porque na visão clássica supõe que o conhecimento deve ser um extensão de um saber legitimado pela ciência, que é introjetado ou inoculado entre os camponeses que não o possuem.

Em sua reflexão, Freire postula que o processo de extensão, analisado do ponto de vista gnoseológico, o máximo que pode alcançar é mostrar a existência de novas informações. Por isso, a construção do conhecimento deve ser concebida como um processo mútuo e interligado em que a curiosa presença das pessoas em relação ao que acontece no mundo torna-se fundamental. E neste ensaio procura lançar luz sobre um tema central de sua proposta pedagógica: toda ação educativa deve considerar que os homens - como sujeitos ativos e conscientes de todo o processo - trabalham essencialmente para sua própria realização humana. Assim, o conhecimento implica também uma ação transformadora da vida, uma invenção e reinvenção permanente da realidade.

Em Paulo Freire, cristaliza-se a noção de que o fenômeno educacional busca a formação de uma consciência crítica e transformadora em que os sujeitos incorporem a essência de um objetivo politicamente orientado e que assume o projeto pedagógico em sua totalidade, isto é, como parte de um processo de mudança social e não como mero treinamento voltado para a aquisição de competências, aptidões e aptidões para melhor se enquadrar na estrutura produtiva definida pela civilização do capital.

Um fator transcendental para sustentar a prática educativa consistiria no estabelecimento de um diálogo e reflexão contínua entre educadores e alunos, tornando-os centros de aprendizagem em um quadro de respeito e generosidade. Para Freire não há diálogo se não houver humildade suficiente para reconhecer que o outro pode contribuir muito com sua experiência e seu conhecimento pessoal. Esse reconhecimento de que sabemos algo, mas também não sabemos muitas coisas, faz parte de uma convicção fundamental do projeto educacional freiriano.

Para o pedagogo brasileiro, a liberdade consistia especificamente em uma atividade exercida no cotidiano dos sujeitos por meio da consciência de mundo e da encenação do pensamento crítico a partir da realização do princípio da ação-reflexão-ação. De forma que, ao assumir o programa de alfabetização como parte de um projeto maior, quem dele participa desenvolve cada vez mais sua capacidade reflexiva por meio de uma postura crítica em torno da cultura que se tornou uma consciência histórica para transformar a realidade.

Por isso, a relação entre conhecimento e ação está no centro da reflexão de Freire e tem seu correlato nos desenvolvimentos posteriores da pedagogia política e no processo dialético que se estabelece entre a teoria e a prática revolucionária. Como defende Jorge Osorio, esta visão de mundo e o método de educação popular apoiam-se de forma conclusiva em ferramentas epistemológicas que se relacionam com uma filosofia da ação transformadora, com sua propensão para a teorização, que supõe uma reflexão permanente sobre a ação. novas práticas pedagógicas.

Isso tem permitido o constante enriquecimento dos postulados delineados até agora e seu fecundo diálogo com outras perspectivas teóricas e campos do conhecimento que vão da Teologia da Libertação ao pensamento descolonial (Pedagogias Decoloniais), passando pela educação comunitária, pela pedagogia da alteridade, pelas teorias do cuidado e as Epistemologias do Sul. Esses movimentos e ideias ganham ainda mais relevância em um período em que o surgimento de um pensamento reacionário e obscurantista é observado em paralelo em algumas fortalezas retrógradas do planeta.

Portanto, sempre aprendemos

Desde o tempo que Paulo Freire trabalhou com educação de adultos em Pernambuco, ele estava convicto de que, a rigor, não há analfabetos no mundo, o que existiria são pessoas com diferentes leituras da realidade que justamente a partir da tomada de Cientes de sua condição como oprimidos, eles se tornam capazes de participar de um projeto coletivo de aprendizagem e libertação.

Para ele, a autoconsciência da própria prática será sempre um campo fértil de investigação para compreender como os "homens" fazem uma leitura do mundo e como podem compartilhar essa experiência cotidiana de vida para tentar transformar a realidade social. Seu método que privilegiou o conhecimento instalado em todos os seres humanos continua a ser utilizado em milhares de experiências pedagógicas em todo o planeta, consagradas por muitos anos com o nome de Educação Popular.

Este modelo de Educação Popular não ficou isento de problemas e críticas, como evidenciado pelo fenômeno de que muitas vezes esse recurso tem sido aplicado sobretudo como fórmula de organização dos setores populares, perdendo nessa tentativa a dimensão pedagógica e crítica como foi. concebida pelo pensador brasileiro. No entanto, a concepção emancipatória de Paulo Freire continua a inspirar milhares de educadores nos cinco continentes, como forma válida de formar sujeitos conscientes e lúcidos de sua inserção e de seu papel no mundo.

Essa é a essência de Paulo Freire: um educador comprometido com seu tempo, que lutou com inegável paixão ao longo de sua vida para desenvolver uma pedagogia humanista e libertária, que hoje é mais relevante do que nunca. Como ele mesmo indicou a um grupo de educadores populares em uma de suas viagens à América Latina:
Não vim aqui trazer um discurso pedagógico, com ares de originalidade, mas para vos dizer que me entrego totalmente pelas coisas que faço e das quais participo. Não sou apenas mente, sou paixão, sinto, sou medo, sou relutância. Sou perguntas, dúvidas, desejos e utopias ... Sou um projeto.

FERNANDO DE LA CUADRA

Sociólogo pela Universidade do Chile, magistrado e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de Intelectuais e pensamento social e ambiental na América Latina (RIL, 2020) e De Dilma a Bolsonaro. Itinerário da tragédia sociopolítica brasileira (RIL, 2021). Editor do Socialism and Democracy Blog (http://fmdelacuadra.blogspot.com/).

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