sábado, 25 de dezembro de 2021

Putin e Xi planeiam escapar do SWIFT


O anúncio da Rússia e da China de uma plataforma de comércio financeiro independente libertará nações sob sanções dos EUA da intrusão ocidental nas suas atividades comerciais
Vladimir Putin foi diretamente à questão. Na abertura de sua conversa por vídeo de uma hora e catorze minutos com Xi Jinping em 15 de dezembro, ele descreveu as relações Rússia-China como "um exemplo de genuína cooperação inter-estatal no século XXI".

Os seus inúmeros níveis de cooperação são conhecidos há anos – desde comércio, petróleo e gás, finanças, aeroespacial, luta contra a Covid-19, até a interconexão progressiva da Belt and Road Initiative (BRI) e a União Económica da Eurásia (UEEA ).

Mas agora o cenário estava preparado para o anúncio de um sério contra-movimento na sua ação cuidadosamente coordenada de oposição ao implacável conjunto Guerra Híbrida/Guerra Fria 2.0 implantado pelo Império.

Como o Assistente do Presidente para Política Externa Yuri Ushakov explicou sucintamente, Putin e Xi concordaram em criar uma “estrutura financeira independente para operações comerciais que não pudesse ser influenciada por outros países”.

Fontes diplomáticas, não oficialmente, confirmaram que a estrutura pode ser anunciada por uma cimeira conjunta antes do final de 2022.

Isto é uma viragem de jogo impressionante de mais de uma maneira. Foi amplamente discutido em encontros bilaterais anteriores e nos preparativos para as cimeiras do BRICS – principalmente centradas no aumento da participação do yuan e do rublo nos acordos Rússia-China, contornando o dólar dos EUA e abrindo novas opções de mercado de participações para investidores russos e chineses.

Agora chegamos ao ponto crítico. E o evento catalisador foi ninguém menos que falcões americanos lançando a ideia – financeiramente nuclear – de expulsar a Rússia do SWIFT, a rede de intercâmbio financeiro usado por mais de 11 mil bancos em mais de 200 países, bem como instituições financeiras, para transferências rápidas de dinheiro em todo o mundo.

Cortar a Rússia do SWIFT seria parte de um novo e severo pacote de sanções desenvolvido em resposta a uma ‘invasão’ da Ucrânia que nunca acontecerá – principalmente porque os únicos que por ela pedem são os fomentadores de guerra profissionais da NATO.

Aproveitando um erro estratégico

Mais uma vez, um erro estratégico americano oferece à auto-designada “parceria estratégica abrangente” Rússia-China a possibilidade de avançar na sua coordenação. Ushakov colocou de forma muito diplomática a questão: é hora de contornar o mecanismo SWIFT "influenciado por terceiros países" e formar "uma estrutura financeira independente".

Isso representa uma grande viragem do jogo para todo o Sul Global – já que dezenas de nações anseiam ser libertadas da, de facto, ditadura do dólar, com o circo das sucessivos pacotes de flexibilização quantitativa do Fed.

A Rússia e a China vêm experimentando os seus sistemas de pagamento alternativos há bastante tempo: o SPFS (Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras) russo e o CIPS (Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços) da China. Não será fácil, pois os bancos chineses mais poderosos estão profundamente envolvidos com o SWIFT e expressaram suas reservas sobre o SPFS. No entanto, eles terão que se integrar inevitavelmente antes do lançamento do novo mecanismo, possivelmente no final de 2022.

Depois dos bancos russos e chineses mais importantes – do Sberbank ao Banco da China – adotarem o sistema, o caminho abre-se para que outros bancos da Eurásia e do Sul Global participem.

No longo prazo, o SWIFT, sujeito à ininterrupta interferência política americana, será cada vez mais marginalizado ou restrito às latitudes atlantistas. Contornar o dólar americano, no comércio e em todos os tipos de acordos financeiros, é uma plataforma absolutamente central da noção em constante evolução Rússia-China de um mundo multipolar.

O caminho será longo, é claro, especialmente quando se trata de oferecer um contraponto sólido ao sistema financeiro global controlado pelos Estados Unidos, um labirinto que inclui as enormes casas de investimento das variedades BlackRock, Vanguard e State Street, com sua participação acionista interligada praticamente com todas as grandes empresas multinacionais. No entanto, uma saída do SWIFT ganhará rapidamente impulso, porque está intrinsecamente ligada a uma série de desenvolvimentos que Putin e Xi abordaram na sua conversa, os mais importantes dos quais são:

1. A interconexão progressiva do BRI e da UEEA, oferecendo funções em expansão para o New Development Bank (NDB) administrado pelo BRICS, bem como para o Asia Infrastructure Investment Bank (AIIB).
2. O crescente alcance geopolítico e geoeconómico da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), especialmente após a admissão do Irão em outubro.
3. E, crucialmente, a próxima presidência chinesa do BRICS em 2022.

A China em 2022 investirá profundamente no BRICS +. Este clube expandido do BRICS estará vinculado a um processo de desenvolvimento que inclui:

1. A consolidação da Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) – um grande acordo comercial do Leste Asiático que une a China, a ASEAN 10, o Japão e a Coreia do Sul, bem como a Austrália e a Nova Zelândia.
2. A Área de Livre Comércio do Continente Africano (ACFTA).
3. E os memorandos de entendimento assinados entre a UEEA e o MERCOSUL e entre a UEEA e a ASEAN.

Ancorando na Ásia Ocidental

Yaroslav Lissovolik, um dos maiores especialistas mundiais em BRICS +, argumenta que agora é a hora do BRICS + 2.0, operando num sistema que abre “a possibilidade de acordos bilaterais e multilaterais para complementar a rede central de alianças regionais formadas pelos países do BRICS e seus respetivos vizinhos regionais”. Portanto, se estamos falando de um grande salto qualitativo em termos de desenvolvimento económico em todo o Sul Global, a questão é inevitável. E quanto à Ásia Ocidental?


Todas estas interconexões, além de uma saída do SWIFT, certamente irão favorecer o Corredor Económico China-Paquistão ( CPEC), sem dúvida o projeto principal do BRI, ao qual Pequim planeia juntar o Afeganistão. O CPEC será progressivamente conectado ao futuro corredor Irão-China via Afeganistão, parte do acordo estratégico Irão-China de 20 anos no qual os projetos da BRI terão destaque. O Irão e a China já negoceiam em yuans e riais, então acordos entre o Irão e a China num mecanismo não SWIFT serão um dado adquirido.

O que aconteceu com o Irão é um exemplo clássico do SWIFT a tornar-se refém da manipulação política imperial. Bancos iranianos foram expulsos da SWIFT em 2012, por causa da pressão dos suspeitos de sempre. Em 2016, o acesso foi restaurado no âmbito do JCPOA, conquistado em 2015. Ainda em 2018, sob a administração de Trump, o Irão foi mais uma vez cortado do SWIFT. Nada disso acontecerá com a adesão do Irão ao novo mecanismo Rússia-China.

E isso nos leva à interconexão da China e expansão da BRI no Irão, Iraque, Síria, Líbano e Iémene. A reconstrução da Síria pode ser amplamente financiada via mecanismo não SWIFT. O mesmo vale para a China que compra energia iraquiana. O mesmo para a reconstrução de um Iémen, possivelmente a abrigar um porto de propriedade chinesa, parte da cadeia de pérolas.

A Arábia Saudita, os Emirados e Israel podem permanecer na esfera de influência financeira dos EUA, ou na sua ausência. E mesmo que não haja uma nação do BRICS ancorada à Ásia Ocidental, e nenhum acordo económico de integração regional no horizonte, o papel do integrador económico será eventualmente desempenhado pela China.

A China desempenhará um papel semelhante ao Brasil ancorando o MERCOSUL, a Rússia ancorando a UEEA e a África do Sul ancorando a SADC/SACU. Tanto o BRI quanto a UEEA receberão um tremendo impulso ao contornarem o SWIFT. Simplesmente o mundo não pode ser multipolar se usar no comércio a desvalorizada moeda de curso legal do império.

BRI, UEEA e acordos interligados de desenvolvimento económico, combinados com a tecnologia digital, irão integrar milhares de milhões de pessoas no Sul Global. Pense-se num futuro possível e auspicioso, com telecomunicações baratas fornecendo serviços financeiros e acesso ao mercado mundial, num ambiente que não seja em dólares, para todos aqueles que até agora estiveram isolados de uma economia verdadeiramente globalizada.

17/Dezembro/2021

[*] Analista político especializado em assuntos asiáticos.
O original encontra-se em thecradle.co/Article/columns/4857
Este artigo encontra-se em resistir.info

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