sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Um laboratório político chamado Uruguai

Coleta de assinaturas contra a Lei de Consideração Urgente do Presidente Lacalle Pou. (Foto: Arquivo Telemundo)

LUIS IBARRA
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A convocação de um plebiscito sobre a obra-prima do plano conservador interrompeu a ofensiva da direita, afastou a iniciativa do governo e reordenou as forças populares. Um movimento tático que mudou completamente a situação estratégica do Uruguai.

Imediatamente após assumir a presidência, Luis Lacalle Pou aprovou uma lei emergencial. A norma reuniu em um único texto as mais diversas questões, desde a regra fiscal à restrição do direito de greve à comercialização de combustíveis e ao reforço do poder de polícia, entre outras questões. A coalizão de direita estava tentando se equipar rapidamente com todos os instrumentos necessários para implementar seu programa de austeridade.

Posteriormente, o governo concordou com uma redução de salários com a central sindical e aprovou um orçamento contendo as despesas do Estado. A direita também planeja reformar a previdência social para aumentar a idade de aposentadoria e reduzir, na mesma medida, o pagamento de pensões. O plano conservador, em suma, segue a lógica de reduzir custos com mão de obra e impostos para aumentar as margens de lucro das empresas e estimular o investimento de capital.

A liderança presidencial e a unidade da coalizão governante contrastavam fortemente com a falta de liderança política e com as diferenças dentro da esquerda. A Frente Amplio, depois de quinze anos de mandato com maiorias absolutas, teve dificuldade em se reciclar como oposição.

As diferenças entre as forças populares

Os parlamentares de esquerda criticaram duramente a urgência dos procedimentos para limitar a discussão legislativa. Em vez disso, eles assumiram um papel positivo no que diz respeito ao conteúdo. A Frente Ampla apoiou grande parte das disposições da lei de emergência, tentou melhorar outras e apenas um terço dos artigos votou negativamente. Essa conduta buscou evitar um embate com o governo e dar a imagem de uma força construtiva, que o projetasse como a melhor alternativa para as futuras eleições de 2024.

Em vez disso, o movimento sindical, junto com a federação estudantil e cooperativas habitacionais, decidiu promover um referendo sobre a lei de emergência. É um procedimento constitucional que, através da assinatura de 25% dos cadernos eleitorais no ano da aprovação, leva ao plebiscito de norma. Em vez de uma acumulação passiva de forças, as organizações sociais concretizaram um movimento que tentou resistir à ofensiva conservadora com a mobilização política dos cidadãos.

Embora não sejam caminhos opostos, eles abrigam tensões entre si. Em primeiro lugar, os políticos de esquerda relutavam em ser arrastados pelos sindicatos para um confronto com o governo; ainda mais, quando eles apoiaram a maior parte da lei contestada. A Frente Ampla, entretanto, entendeu que não poderia se separar de suas bases sociais e optou por condicionar seu apoio: o referendo deveria limitar-se exclusivamente àquelas disposições que havia votado negativamente.

Um segundo debate foi então aberto nas organizações sociais. Alguns invocaram a autonomia do social para rejeitar o condicionamento partidário, enquanto outros destacaram a articulação entre as forças sociais e políticas para o sucesso da iniciativa.

A campanha oculta

As discussões se arrastaram interminavelmente ao longo de seis meses, consumindo metade do tempo disponível para finalizar o recurso. A vontade de levar a cabo a iniciativa passou a ser posta em causa; parecia que eles estavam apenas tentando passar a responsabilidade por sua frustração um para o outro. Por fim, o debate resultou no lançamento da campanha de referendo para anulação de 135 artigos da lei de emergência, liderada pela central sindical e pelo PIT-CNT, e com o apoio da Frente Ampla.

A meta era reunir o apoio de mais de 670 mil assinaturas válidas nos seis meses restantes. As pesquisas de opinião pública registraram uma disposição favorável entre os cidadãos. Mas as restrições de mobilidade, no auge da pandemia, introduziram uma dificuldade adicional.

O governo optou por ignorar o desafio e continuar com a implementação de seu programa. A impossibilidade de manifestações públicas e a ausência das principais figuras da Frente Ampla contribuíram para retirar o tema do cenário político. A coleta de assinaturas ocorreu em uma dimensão paralela, apoiada nas organizações sociais e nas estruturas territoriais de esquerda.

A campanha só ganhou notoriedade nos meios de comunicação à medida que se aproximava o prazo, que chegava sem recolher as assinaturas necessárias. No entanto, ao contrário do que se esperava, o acontecimento não teve um efeito desmoralizante, mas antes gerou uma reação da militância. O impulso final conseguiu chegar, em poucos dias, ao apoio de 800 mil cidadãos, valor que garantiu, para além do expurgo do corpo eleitoral, que haveria de facto um referendo.

Uma nova situação política

A certeza do plebiscito mudou a relação entre as forças políticas e definiu uma nova situação. Por um lado, tirou a iniciativa do governo. A direita é obrigada a defender perante a opinião pública as disposições que aprovou com urgência e submetê-las a uma decisão eleitoral. Não apenas a ofensiva conservadora foi interrompida, mas o plano de austeridade foi até mesmo revertido em alguns de seus aspectos mais controversos. O governo suspendeu a comercialização de combustíveis, adiou a reforma da previdência e prometeu recuperar o salário real pelo resto do mandato.

O fracasso da tática de ignorar a campanha atingiu a liderança presidencial e estressou a coalizão governista. Os sócios juniores aproveitaram para fazer valer as suas exigências particulares, como a libertação de prisioneiros militares por crimes contra a humanidade.

A desordem no campo governante contrasta, agora, com a recomposição das forças populares. Tanto a Frente Amplio quanto o PIT-CNT realizaram seus congressos e renovaram suas autoridades após a campanha. Em evento significativo, foi eleito para a chefia da força política que até então atuava como presidente da central sindical. Não é que as diferenças tenham desaparecido em um abraço de unidade. Simplesmente, as diferentes atitudes são rearranjadas em uma nova situação política, que coloca a consulta popular no centro.

Uma nota de cautela

A campanha pelo referendo mudou a relação estratégica entre as forças políticas. Por um lado, parou a ofensiva conservadora, privou o governo da iniciativa e desordenou a coalizão de direita. Por outro lado, ele reconstruiu, deu a iniciativa e, acima de tudo, mudou o clima entre as forças populares.

Doravante, trazer ao debate público e submeter à consulta popular disposições que o governo havia sancionado às pressas e em discussão limitada é um mérito democrático indiscutível das forças populares.

O destino do plano de austeridade agora mudou para outro terreno, onde é possível mudar a relação de forças com a ativação política da cidadania. Com SIM ou NÃO, os resultados substantivos desta experiência no laboratório político uruguaio serão decididos em março próximo.

LUIS IBARRA

Cientista político, Mestre em Governo e Políticas Públicas. Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República do Uruguai.

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