terça-feira, 22 de novembro de 2022

O Governo Lula e o destravamento do futuro

Fontes: Rebelião / Socialismo e Democracia [Imagem: Lula na apresentação do programa de transição. Créditos: Socialismo e Democracia]

Por Fernando de la Cuadra , Newton Albuquerque
https://rebelion.org/

Neste artigo os autores analisam qual deve ser o programa imediato e mediato para a restauração da democracia no Brasil.

A investida do poder econômico

Falta mais de um mês para a posse do presidente eleito Lula da Silva no Palácio do Planalto e os bancos e grupos empresariais já fazem pressões descaradas sobre o futuro governo. Uma declaração de Lula sobre a importância da política social e do combate à fome sobre a suposta austeridade dos gastos públicos provocou uma onda de declarações desproporcionais de setores representativos do poder econômico. Aliás, um deles chegou a ameaçar que, se Lula continuasse a “combater” o mercado, o impeachment de seu governo – que assumiu em janeiro de 2023 – não demoraria para ser concluído.

A arrogância destes setores continua a ser reforçada pela imprensa, que faz eco da chantagem exercida por grupos económicos que temem perder os seus privilégios e controlo sobre os trabalhadores, mantendo a contração salarial e práticas contrárias ao mundo do trabalho com o reforço da precarização e do perda de direitos trabalhistas consagrados no governo Bolsonaro.

As conquistas dos setores populares e da classe trabalhadora durante os governos do PT foram consideradas insuportáveis ​​pelos donos do grande capital, que têm sustentado seu "sucesso" econômico e competitividade internacional no ritmo da extrema exploração dos trabalhadores, como ocorre no vasto maioria dos países da região. A grande vulnerabilidade dos trabalhadores implica, especificamente, em aproveitar uma enorme possibilidade de extração de riqueza dos setores trabalhistas, o que acaba sendo uma espécie de mantra mágico para empresários gananciosos e atrasados.

Por exemplo, para essas classes era intolerável a possibilidade de trabalhadores domésticos viajarem de avião para Miami ou de um subordinado comprar um carro. Isso não apenas expõe uma repulsa cultural das classes médias brasileiras, mas, sobretudo, representa um indicador de que a prosperidade econômica da classe assalariada é simplesmente inaceitável pelos padrões de exploração a que aspiram os segmentos empresariais.

Se a reação dos representantes da indústria e das finanças parece muito histérica, pode ser justamente porque sua veemência visa enquadrar e constranger o futuro governo em uma camisa de força orçamentária que não afeta seus interesses. Seria o caso de legislar com urgência uma reforma tributária que taxasse progressivamente as fortunas e os lucros das grandes empresas a fim de obter os recursos necessários para financiar os programas sociais do próximo governo.

Em suma, o alarmismo expresso pelos representantes do capital e a invocação da referida responsabilidade fiscal apenas confirmam uma estratégia de ocultação de seus interesses espúrios que em hipótese alguma se confundem com os interesses da nação e do povo brasileiro. Ficaram calados durante os quatro anos do regime de Bolsonaro, tolerando e aceitando sem reservas todas as ilegalidades e as inúmeras violações do “teto de gastos” infringido pelo atual governo.

Brasil e sua herança amaldiçoada

Uma das consequências mais desastrosas do entrincheiramento do bolsonarismo neofascista na sociedade brasileira e no Estado foi o bloqueio do futuro. A necropolítica de Jair Bolsonaro e suas hordas bárbaras instilou medo nas pessoas, estimulou a privatização, procurou restringi-las ao espaço vital da mera sobrevivência, do medo atomizador que refuta a política autêntica como expressão do comum, da relação fecunda entre os corpos . e mentes ativas. Porque ao seqüestrar a esfera pública dos argumentos, submetendo-a aos delírios paranóicos dos algoritmos de extrema direita, Bolsonaro fechou as instituições às energias provenientes da manifestação pluralista dos diversos atores políticos, especialmente dos trabalhadores brasileiros, das classes proletárias, ao impor seu padrão de costumes em detrimento das questões estruturais em pauta. A par disso, vale também mencionar o trabalho de degradação da linguagem, agora guiada pela pornografia abjeta de um discurso intolerante, ávido pela destruição física e simbólica dos inimigos.

Dinâmica autocrática desse bolsonarismo que corrompeu a dialética contraditória do conflito salutar que modula a construção intersubjetiva do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a ascensão de Bolsonaro como consumação do movimento golpista iniciado em 2016 com o afastamento ilegítimo da presidente Dilma Rousseff, marca o sucesso da estratégia das classes dominantes e dos aparatos estatais de revisão da ideia de Brasil , do projeto de país, ao preferir reviver o passado reacionário da República Velha e restaurar a tradicional inserção agrária e passiva nas relações econômicas internacionais, erodindo os fundamentos da Constituição de 1988, seus fundamentos, princípios e mandatos.

De facto, estreitaram os canais da Sociedade Civil, dos circuitos da economia política, ao optarem por um modelo de desenvolvimento subalterno, mesquinho, confinado ao papel de produtor de bens agrícolas e divorciado da construção de uma nacionalidade substantiva, de um nacional- popular, porque integrando todos os povos e seu potencial produtivo, criativo, uma economia com ritmo intenso e harmonizador dos vários Brasis, das diferentes regiões que a compõem.

Além de minar a cultura brasileira ao estigmatizar os elementos africanos que norteiam nossas atividades religiosas e cotidianas, estigmatizar os nordestinos, perseguir tenazmente as mulheres, os homossexuais, os "diferentes", num triste espetáculo de hostilidade para com as bases da diversidade nacional. Ao contrário de reconhecer o Outro como referente intrínseco da alteridade que nos constitui, o fascismo prega sua negação peremptória, mais ainda, sua transformação na causa de todas as mazelas do país. Assim, cria-se a antecâmara da “Solução Final”, do expurgo, eliminação daqueles que se desviam ou divergem da voz monótona do sistema.

Lula na COP27. Créditos: Socialismo e Democracia

Agenda Imediata e Mediata para a reconstrução democrática

O Brasil precisa mais do que nunca retomar seu processo de construção, ou melhor, de reconstrução, após o desmonte geral das instituições, direitos, prerrogativas e garantias estabelecidas na Constituição Cidadã de 1988. A primeira e urgente tarefa é romper com as cercas estabelecidas pela o sigilo indecoroso do governo Bolsonaro sobre os dados do Estado. Orçamento secreto, encobrimento de vários esquemas de corrupção -incluindo a família da milícia no governo-, maquiagem, falsificação de informações, destruição de computadores que armazenavam dados da Administração Pública são alguns dos exemplos antirrepublicanos da prática do governo Bolsonaro.

Sem acesso a todas essas informações não é possível estabelecer cenários de governança e muito menos definir o planejamento, os investimentos necessários para o resgate e promoção dos direitos sociais à educação, saúde, moradia, reajuste anual do salário mínimo, aumento de verbas para as universidades, para o microcrédito, para a promoção da inovação tecnológica, da cultura, etc. Afinal, a cidadania vista de forma concreta exige uma presença maior e mais efetiva do Estado como instrumento da soberania popular, sobretudo diante das desigualdades sociais.

Outra tarefa é o combate urgente à fome, o controle dos preços dos produtos básicos por meio de uma política de preços que potencialize o consumo interno massivo, ao contrário do que ocorre hoje, já que toda a produção de alimentos é voltada exclusivamente para a geração de divisas no mercado externo . O Brasil produz proteína animal, soja, laranja, milho e muitos outros alimentos para serem enviados à Europa, Estados Unidos, China, enquanto mais de 33 milhões de habitantes sofrem a mais atroz fome.

Não menos importante, porque repercute nas próprias condições materiais de vida das pessoas, é a recuperação da agenda democrática entre nós. O enfraquecimento do regime dos direitos fundamentais, os ataques ao poder judiciário como instância autônoma de viabilização da cidadania, bem como a desmoralização do poder legislativo pela ação do dinheiro, dos negócios indizíveis realizados na calada da noite , demonstram inequivocamente a dificuldade de reequilibrar os poderes do Estado, reajustando-os às aspirações populares e aos pareceres programáticos da Carta Fundamental.

Nesse sentido, destaca-se também a delicada questão de repensar a relação entre a sociedade brasileira e as Forças Armadas. A ação protetora que o poder militar exerceu historicamente sobre as instituições sempre foi uma ameaça e uma realidade em uma história marcada por golpes de Estado, que infelizmente trazem consternação e desânimo. Desde 2014, essa situação se agravou devido à fragilidade da hegemonia burguesa, de seus partidos e associações, na vida pública.

Por esta razão, as classes dominantes mais uma vez se voltaram para o Exército como uma espécie de "poder moderador" para conter "os de baixo". Funcionários de irreprimível vocação autoritária e de classe, convictos da sua auto-atribuída supremacia de representantes "técnicos" da nacionalidade. A velha argumentação que emana dos escritos do ultraconservador, ideólogo da direita nativa, Oliveira Viana, sobre a necessidade instrumental do autoritarismo como meio de chegada errática a uma “democracia” sempre futura e improvável.

A segurança pública, por exemplo, deve ser reservada aos civis, as linhas gerais de articulação complementar entre a preservação da vida, o plexo de direitos e a justiça social a ser realizada pela ação estatal. O protagonismo das Forças Armadas na trama do golpe de 2016 e na assunção do neofascista Bolsonaro ao governo explicitou a perseverança autocrática dessa instituição em nossas vidas e seu completo divórcio com o povo e suas relações materiais e subjetivas demandas. Atuam como braço operacional do Capital Financeiro Internacional e do imperialismo estadunidense, rompendo com todos os traços de desenvolvimento soberano, de registro ativo na economia e na política mundial.

Sem resolver esse gargalo, viveremos para sempre sob a sombra das botas militares. A mesma preocupação que devemos ter com a questão agrária, com o latifúndio que gera cativos que ficam sem direitos e acesso a bens básicos, além de reproduzir aspectos coloniais em nossa formação sociopolítica e cultural. Bem como a indispensável questão da regulação normativa e constitucional dos meios de comunicação, detendo assim o poder gigantesco do Capital nos meios de comunicação. A prática oligopolista, o cruzamento de propriedade dos meios de informação, a seletividade partidária dos donos de TV, rádio e jornais precisam ser enfrentados adequadamente se quisermos uma democracia no Brasil.

Finalmente, uma profunda reforma do sistema de justiça no Brasil é imperativa. Abrir a lei e sua dicção à maioria, aprofundar o diálogo participativo sobre a Constituição e o apoio programático vinculante dos poderes e agentes públicos é dramaticamente essencial. A superlotação das penitenciárias com negros, a barbárie institucionalizada do racismo na polícia, a militarização da segurança e o recrutamento elitista de membros da justiça são provas incontornáveis ​​da inviabilidade de suas práticas com o Estado de Direito.

No entanto, tais mudanças, investimentos prioritários, reconstruções institucionais serão realizadas em um contexto complexo, juntamente com uma frente ampla e contraditória, sem esquecer os atritos nas ruas patrocinados pelo protofascismo de Bolsonaro. Uma extrema-direita que não quer entrar no jogo democrático, sem dúvida, continuará enfrentando de forma decisiva os avanços do governo e tentará bloquear todas e cada uma das políticas destinadas a beneficiar a população.

Mas, por sua vez, o governo que começa em 1º de janeiro de 2023 também terá que lançar mão de todo o seu arsenal e repertório de mobilizações para manter intacto o apoio popular e expandir permanentemente em diferentes territórios, bairros populares, sindicatos, universidades, comunidade. centros, organizações e movimentos sociais, e assim convocar uma atividade permanente e entusiástica que apoie as transformações urgentes que a nação necessita para destravar seu futuro.


Fernando de la Cuadra é doutor em Ciências Sociais, editor do blog Socialismo y Democracia e autor do livro De Dilma a Bolsonaro: itinerário da tragédia sociopolítica brasileira (editorial RIL, 2021).

Newton Albuquerque é Doutor em Direito e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Brasil.



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