segunda-feira, 24 de julho de 2023

Como será o fim do domínio global do dólar americano

Agora grande parte do mundo apoia a desdolarização. Isso irá acontecer, mas não como um "big bang".

Marcel Salikhov [*]
www.resistir.info/

A desdolarização do sistema financeiro global deve continuar. Este processo será facilitado pelo desenvolvimento de novas tecnologias financeiras. Os bancos centrais procurarão estabelecer acordos diretos entre si sem utilizar as moedas dos países desenvolvidos. No futuro, as moedas digitais dos bancos centrais poderão também ser utilizadas para transações internacionais, reduzindo os custos das transações económicas. No entanto, este processo será bastante lento.

O dólar americano é, desde há muito, a divisa dominante no mundo. A sua utilização nas transações internacionais ultrapassou durante muitas décadas a quota americana na economia mundial, que se situa atualmente em cerca de 24%. Por exemplo, de acordo com o FMI, o dólar representava 58,4% das reservas internacionais dos bancos centrais por moeda no final de 2002. De acordo com o SWIFT, a quota-parte do dólar nas transferências interbancárias em abril de 2023 era de 59,7%. Este valor foi significativamente mais elevado do que no ano anterior.

Vários fatores contribuem para a utilização ativa do dólar americano, mesmo nas transações entre países terceiros: a dimensão da economia americana (o maior e mais líquido mercado de instrumentos financeiros, incluindo os fiáveis), a influência política e o papel das multinacionais americanas nos mercados mundiais. Todos estes aspectos interagem e apoiam-se mutuamente durante um longo período de tempo. Vale a pena recordar também que a crise financeira mundial de 2008-2009, que teve origem na própria economia dos EUA, não afetou a posição do dólar a nível mundial.

No entanto, o bloqueio das reservas do Banco da Rússia pelos países ocidentais, bem como as sanções financeiras em grande escala contra bancos e empresas russas, levaram muitos a perguntar se as vantagens da dolarização serão tudo o que parecem. Os riscos não económicos das transações em dólares americanos e dos ativos dolarizados tornaram-se evidentes para todos, especialmente para os bancos centrais.

Em particular, o artigo 21º da Convenção das Nações Unidas de 2004 sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e da sua Propriedade garante imunidade para ativos de bancos centrais. No entanto, este artigo não protegeu os ativos do Banco da Rússia de serem congelados, o que agora estabeleceu um precedente.

As ações da Rússia nestas condições eram esperadas e compreensíveis. Desde o início de 2023, o Banco Central começou a efetuar operações ao abrigo da regra orçamental em yuan chinês. Empresas russas estão a reestruturar as suas operações de comércio externo e a forma como acumulam ativos estrangeiros, preferindo utilizar as divisas de países "amigos". Isto significa, basicamente, não ocidentais.

Ao mesmo tempo, os dados atuais não revelam um abandono maciço da utilização do dólar americano pelos bancos centrais. A percentagem da divisa americana nas reservas internacionais tem diminuído de forma constante ao longo das últimas décadas, mas a um ritmo relativamente lento.

Enquanto cerca de 70% das reservas globais dos bancos centrais eram detidas em dólares americanos no início da década de 2000, este número caiu para menos de 60% em 2020. Não se registou uma diminuição radical das reservas em dólares em 2022. A sua percentagem de reservas diminuiu 0,44 pontos percentuais, ao passo que a sua utilização nas transferências interbancárias realmente aumentou.

Existem alternativas ao dólar?

A principal razão para isto, apesar dos riscos políticos obviamente acrescidos, é a falta de alternativas sérias que possam absorver montantes significativos de poupanças dos bancos centrais.

O papel tradicional das reservas cambiais, tanto para atores privados como para governos, é assegurar a estabilidade financeira e diversificar o risco. As reservas dos bancos centrais são um dos instrumentos que servem este objetivo. São altamente líquidas e podem ser utilizadas rapidamente para intervenções cambiais, se necessário. A desvantagem é a elevada vulnerabilidade de tais ativos em termos de sanções. Além disso, os rendimentos são baixos.

O mercado de obrigações do Estado da zona euro está fragmentado em países individuais, muitos dos quais com baixas notações de crédito. O yuan chinês não é uma moeda livremente convertível. Está dividido em partes internas (offshore) e externas (onshore) e está sob o controlo rigoroso do Banco Nacional da China.

O ouro como ativo pode ser uma boa cobertura em tempos de crise, mas não gera rendimentos de juros e tem baixa liquidez. Portanto, está longe de ser óbvio para os bancos centrais dos países em desenvolvimento quais ativos – e em que divisa – podem constituir uma alternativa aos ativos detidos em dólares americanos.

Armazenar riqueza não apenas em ouro e reservas cambiais

Um fator mais importante do que a proporção nominal do dólar americano nas reservas internacionais é a mudança de abordagem da gestão e da acumulação de ativos estrangeiros. Os próprios dados do FMI mostram que o valor total das reservas dos bancos centrais tem permanecido virtualmente inalterado nos US$11,5-12 milhões milhões (trillion) ao longo da última década, mesmo com o crescimento da economia mundial.

As reservas cambiais da China atingiram um pico de US$4 milhões de milhões em 2014 e têm estado a diminuir desde então. O seu valor atual é de US$3,2 milhões de milhões, menos 20% do que em 2014. Muitos outros países em desenvolvimento não estão a aumentar as suas reservas internacionais, ou mesmo a reduzi-las.

Isto não significa, porém, que não estejam a ser criados ativos externos. Estes podem assumir formas "não convencionais", como os ativos de fundos soberanos, bancos estatais, instituições de desenvolvimento e outras estruturas não diretamente relacionadas com os bancos centrais.

O investimento direto estrangeiro por parte de estruturas governamentais pode também ser classificado como um tipo de ativo de reserva. Esta estratégia não se destina a maximizar a disponibilidade e a liquidez dos ativos, mas sim a garantir os próprios interesses económicos nos mercados externos. Em certa medida, proporciona uma maior proteção contra os riscos políticos do congelamento de ativos, uma vez que o seu estatuto jurídico é menos transparente.

A estratégia da China

Uma estratégia semelhante está a ser seguida pela China, que procura "internacionalizar" gradualmente a sua divisa. Formalmente, a quota-parte do yuan nas reservas internacionais dos bancos centrais é pequena, não ultrapassando os 3%. Além disso, entre um terço e metade desta procura é assegurada pelo Banco da Rússia.

A estratégia da China consiste em garantir o estatuto internacional do RMB através do comércio e não do investimento. Nos últimos anos, a China tem procurado ativamente motivar e encorajar os seus parceiros a transacionar em RMB em vez de outras moedas. Isto está a ser feito de várias formas, incluindo o desenvolvimento de infraestruturas, o seu próprio análogo do sistema SWIFT, o desenvolvimento da compensação, os empréstimos internacionais na divisa e assim por diante.

Muitas pessoas já ouviram falar do termo "petroyuan" – um análogo do petrodólar. Na sua essência, trata-se da assinatura de contratos de longo prazo para o fornecimento de petróleo em yuan em troca de um fluxo de bens e equipamentos. Assim, o comércio já está a ser realizado em yuan e não em dólares americanos. Isto cria uma procura externa à economia chinesa. Ao mesmo tempo, as autoridades chinesas mantêm restrições às transações de capitais.

A desdolarização do sistema financeiro mundial vai continuar. Este processo será facilitado, nomeadamente, pelo progresso da tecnologia financeira. O desenvolvimento de plataformas de negociação automatizadas reduzirá o custo da troca de uma divisa por outra. Os bancos centrais procurarão compensar diretamente as moedas uns dos outros sem utilizar diretamente as divisas dos países ocidentais.

No futuro, as moedas digitais dos bancos centrais também poderão ser utilizadas para transações internacionais, reduzindo os custos para os agentes económicos. No entanto, este processo será lento e não devemos esperar uma mudança fundamental no sistema financeiro mundial num futuro previsível.

15/Julho/2023

Ver também:
  • China can boost yuan’s international role, says report
  • [*] Diretor do Centro de Perícia Económica da Escola Superior de Economia, Moscovo

    O original encontra-se em geopolitics.co/2023/07/15/heres-how-the-end-of-the-us-dollars-global-dominance-will-play-out/

    Este artigo encontra-se em resistir.info

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