sexta-feira, 3 de novembro de 2023

BRASIL NA CRISE ENTRE PALESTINA E ISRAEL - O mediador inesperado

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conversando com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, buscando uma solução para a saída dos brasileiros que estão na Faixa de Gaza (Ricardo Stuckert/PR)

Do cenário internacional à política doméstica: o desafio brasileiro de mediar a crise entre Palestina e Israel, enquanto enfrenta as repercussões e divisões internas sobre a questão

Fernando Brancoli

A recente tragédia humanitária envolvendo Palestina e Israel voltou a dominar o cenário político, especialmente após o ataque do Hamas em 8 de outubro. Esse renovado foco gerou debates globais em busca de soluções políticas para um conflito que persiste há mais de sete décadas. Pedidos para que as Nações Unidas, os Estados Unidos e até mesmo o papa se envolvessem para evitar um novo massacre de civis explodiram na imprensa, com poucas concordâncias sobre como se encontrar medidas para evitar que as recentes violência transbordem para situações ainda mais catastróficas.

Durante sua presidência rotativa no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil se posicionou como um potencial mediador diplomático e humanitário, buscando evitar a invasão israelense à Faixa de Gaza. Caso isso não fosse possível, a intenção era garantir a proteção dos civis, inevitavelmente afetados pelo confronto entre o Exército de Tel Aviv e o Hamas. O presidente Lula fez declarações públicas tanto de contato com autoridades da região – com os presidentes de Israel e do Egito – quanto pedidos para a criação de corredores humanitários para auxiliar na fuga de civis de Gaza. O governo brasileiro também iniciou programas de repatriação de brasileiros na região, com aviões da Força Aérea.

As críticas, domésticas e internacionais, rapidamente apareceram, acusando a liderança do presidente Lula como pueril, egocêntrica ou mesmo interessada em um dos lados. Contudo, refletir sobre as limitações do Brasil – mas também suas amplas possibilidades de facilitar esse processo – é uma boa forma de entender as modificações potentes pelas quais passa o Sistema Internacional atualmente, além de transformações na própria sociedade brasileira.

NEM TUDO É SOBRE BOMBAS

Antes de qualquer ponto específico sobre o papel de Brasília, é preciso reforçar a certeza de que os países que tradicionalmente realizavam a mediação entre os diferentes grupos palestinos e israelenses, nas últimas décadas, não possuem atualmente nem autoridade ou algum grau de neutralidade para fazer as partes envolvidas sentarem na mesa. Estados Unidos, Catar, Turquia e a União Europeia, que estiveram há décadas envolvidos em tentativas de mediação, têm sido apontados como demasiadamente próximos de um dos lados ou possuidores de interesses arraigados no conflito que os impediriam de atuar de forma neutra. A ausência de conversa se dá até mesmo entre Israel e os diferentes grupos da Palestina: desde 2014, não há reunião alguma de políticos de alto nível entre os dois grupos, com as interações sendo mínimas e muitas vezes no campo burocrático mínimo.

Nesse espaço, o Brasil tem uma vantagem bastante grande: tem relações históricas tanto com Tel Aviv como com Ramalá, com proximidades bastante potentes com os dois grupos. Apesar de percalços nas relações – quando a então presidente Dilma foi acusada, em 2014, de ser a mandatária de um país “anão diplomático” pelo embaixador de Israel –, o Brasil tem uma imagem historicamente positiva na região. Esse ponto se materializa em um dos ativos mais valiosos na diplomacia: o acesso. Com uma rede diplomática bastante profissional e ativa, Brasília consegue, com embaixadores constituídos, manter contato direto com os Estados Unidos, o Irã, a Arábia Saudita, o Líbano e Israel. Não é pouca coisa e pouquíssimos países no globo têm tantos canais de informação. Isso ajuda a responder a uma das críticas mais presentes quanto à iniciativa brasileira: seríamos militarmente fracos, economicamente distantes e geograficamente isolados para ter qualquer relevância no processo. Esse tipo de argumento, centralizado em capacidades materiais imediatas, ignora que a capacidade de articular argumentos distintos é justamente um dos elementos mais potentes em um mundo multipolar e com diferentes frentes de interesse. A capacidade brasileira já foi colocada à prova e funcionou: fomos o país que mais rapidamente tirou nacionais de Israel, ao mesmo tempo em que fomos o único a manter negociações abertas com o Egito para a retirada de brasileiros de Gaza pelo deserto do Sinai.

A opção brasileira por enfrentar a crise entre Israel e Palestina, nesse sentido, se dá em duas frentes. Como já comentado, o país ocupa por um mês a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU. Nesse momento, Brasília tem o poder de agenda do coletivo mais poderoso do globo, ou seja, os tópicos e temas escolhidos pelo país serão colocados à mesa. Já foram agendadas reuniões de emergência sobre a crise palestina – contudo, com pouca concordância coletiva sobre as melhores formas de se agir. Apesar do tema estar no centro das discussões, há pouca vontade política para pressionar Israel, principalmente, a interromper os ataques à Gaza. Nesse front, um cessar-fogo é improvável e há pouco a se fazer.

A segunda ação brasileira foi a pressão para a criação de corredores humanitários em Gaza, garantindo que civis possam fugir das áreas bombardeadas em segurança. Corredores humanitários são espaços em que todas as frentes envolvidas em um conflito concordam em não atacar, para garantir não só que pessoas não envolvidas no conflito possam fugir como que ajuda humanitária possa chegar. A estratégia seria particularmente válida para a Faixa de Gaza: com mais de 2 milhões de habitantes, 41 km de comprimento e 10 km de largura, equivalente a um quarto da cidade de São Paulo; a região depende exclusivamente de Israel para eletricidade, comida e medicamentos. Todos esses itens foram cortados por Tel Aviv há dias e há um receio de desabastecimento completo.

Inicialmente, Israel reagiu ao ataque do Hamas com uma campanha de bombardeio ainda mais intensa do que o normal. Cerca de 300 mil tropas foram mobilizadas para a fronteira, com Israel preparando-se para uma iminente campanha terrestre. Israel também exigiu que os civis de Gaza deixassem o norte da região, uma demanda impossível, visto que as estradas estão destruídas e a infraestrutura em escombros. Além disso, a eletricidade é escassa e as poucas instalações de socorro e hospitais estão praticamente inoperantes. Mesmo que desejassem deixar a faixa, os habitantes de Gaza encontrariam o cruzamento de Rafah para o Egito bombardeado, e o presidente egípcio Abdel Fattah el-Sisi não mostrou muitos sinais de oferecer refúgio.

O pedido brasileiro de um corredor humanitário, no entanto, é limitado pela própria história. Os palestinos não veem o pedido de evacuação como um gesto humanitário, na medida em que acreditam que a intenção de Israel é executar outra nakba, ou “catástrofe”: o deslocamento forçado de palestinos de Israel em 1948. Dentro dessa lógica, palestinos não acreditam – e não deveriam acreditar – que será permitido a eles retornarem a Gaza após os confrontos. É por isso que a sugestão brasileira para tal corredor tem sido vista com reticências: caso consiga algo, seria acelerar o deslocamento de Gaza e a criação de uma nova onda de refugiados permanentes. Isso também ofereceria, com bastante clareza, um roteiro para os extremistas de direita no governo de Netanyahu fazerem o mesmo em Jerusalém e na Cisjordânia, onde a retirada humanitária de palestinos poderia significar uma nova onda de assentamentos ilegais. A situação se mostra, então, desafiadora: o incentivo de ajuda humanitária é bem-vindo e necessário, sem fazer com que as ferramentas de ajuda sirvam para reforçar práticas de opressão históricas na região.

Nessa lógica, o cenário em que o Brasil precisa operar, do ponto de vista internacional, é dos mais complexos da história do Oriente Médio. Porém, a situação em casa também não é das melhores.

ISRAEL (IMAGINÁRIA) É AQUI

Um elemento ainda pouco levado em conta na crise do Oriente Médio é que as discussões transbordaram fortemente para a política doméstica do Brasil. Na semana dos ataques do Hamas, deputados federais discutiram em sessão na Câmara, com acusações de Eduardo Bolsonaro, por exemplo, afirmando que o PT teria relações com o Hamas. Nas redes sociais, congressistas trocaram as fotos dos seus perfis por bandeiras de Israel, ao mesmo tempo em que compartilhavam vídeos do conflito ou fake news sobre a tragédia na região.

O Oriente Médio em geral, e a Palestina e Israel em particular, entraram de vez para a agenda nacional em 2010, quando o presidente Lula, em seu segundo mandato, tentou costurar um acordo, com ajuda da Turquia, sobre o programa nuclear do Irã. Naquele momento, Lula foi acusado de tentar voos maiores do que os possíveis pelo Brasil, se imiscuindo em um conflito que não nos dizia respeito. Além disso, ao costurar um acordo com Teerã, estaríamos dando às costas para Israel, supostamente a única democracia na região e rival histórico do governo dos Aiatolás. O apoio a Israel, além disso, seria uma forma de grupos de direita fazerem um contraponto ao apoio histórico que grupos progressistas têm em relação à causa palestina.

A situação ficou ainda mais complexa nos anos seguintes, com o crescimento da influência política de determinados grupos neopentecostais no Brasil. Grupos como o comandado pelo pastor e deputado federal Marcos Feliciano, ou pelo pastor Silas Malafaia, passaram a reforçar que alianças com Tel Aviv também teriam explicações teológicas. Em um argumento bastante controverso, apoiar Israel seria igualmente apoiar a garantia de que as áreas sagradas do cristianismo seriam mantidas a salvo de bárbaros muçulmanos, ao mesmo tempo em que passagens bíblicas sobre o fim do mundo reforçariam a necessidade de se manter a maioria judaica na região. Em São Paulo, a Igreja Universal do Reino de Deus construiu uma suposta réplica do Templo de Salomão, com direito a estrelas de Davi e outros símbolos judaicos espalhados pelo seu interior. A extrema direita, representada por Jair Bolsonaro, materializou esses argumentos com maior força: Bolsonaro se batizou no Rio Jordão, em Israel – e posteriormente estabeleceu relações muito próximas com Benjamin Netanyahu. No que o historiador Michel Gherman chamou de uma “Israel Imaginária”, tais grupos homogeneizaram a complexidade do país do Oriente Médio em características que os interessavam. O papel da religião, o militarismo da sociedade e a economia de Israel foram características exageradas por tais grupos, em uma lógica que apontavam que o Brasil deveria emular e copiar a nação judaica. O judaísmo é indiscutivelmente significativo em Israel, entretanto, reduzir a nação apenas a esse aspecto é desconsiderar a rica tapeçaria de culturas, ideologias e histórias que compõem a região. Grupos neopentecostais no Brasil, contudo, frequentemente utilizam a religiosidade de Israel como uma lente através da qual enxergam a nação, muitas vezes filtrando a realidade por meio de suas próprias interpretações teológicas. Esse prisma religioso leva a uma visão simplificada e, muitas vezes, distorcida da realidade israelense, onde nuances são perdidas e a complexidade política e social é esquecida.

No entrelaçamento da geopolítica com narrativas nacionais, o Brasil encontra-se em um cruzamento curioso de sua história diplomática e política interna. A ascensão da extrema direita e de grupos religiosos de influência crescente moldou a perspectiva nacional sobre o conflito do Oriente Médio de maneiras antes inimagináveis. O reflexo dessas alianças na política externa brasileira destaca não apenas o poder de narrativas globais no cenário doméstico, mas também a necessidade de abordar com cautela e discernimento a maneira como tais narrativas são apropriadas.


Fernando Brancoli é professor de Relações Internacionais na UFRJ.

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