domingo, 28 de janeiro de 2024

Nem mesmo o genocídio será interrompido


A decisão da Corte Internacional de Justiça foi uma vitória legal para a África do Sul e os palestinos, mas não interromperá a matança.

Chris Hedges [*]

A Corte Internacional de Justiça (CIJ) recusou-se a implementar a exigência mais crucial feita pelos juristas sul-africanos: "o Estado de Israel suspenderá imediatamente suas operações militares em e contra Gaza".

Mas, ao mesmo tempo, desferiu um golpe devastador no mito fundacional de Israel. Israel, que se apresenta como eternamente perseguido, foi acusado de cometer genocídio contra palestinos em Gaza.

Os palestinos são as vítimas, não os perpetradores, do "crime dos crimes". Um povo, outora necessitado de proteção contra o genocídio, agora está potencialmente a cometê-lo.

A decisão do tribunal questiona a própria razão de ser do "Estado judeu" e desafia a impunidade de que Israel desfruta desde sua fundação, há 75 anos.

A CIJ ordenou que Israel tomasse seis medidas provisórias para evitar atos de genocídio, medidas que serão muito difíceis, se não impossíveis, de cumprir se Israel continuar seu bombardeio de saturação de Gaza e a atacar infraestruturas vitais.

O tribunal pediu a Israel "que previna e puna a incitação direta e pública ao genocídio". Exigiu que Israel "tome medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária urgentemente necessários".

Ordenou que Israel protegesse os civis palestinos. Pediu a Israel que proteja as cerca de 50.000 mulheres que dão à luz em Gaza.

O texto ordenou que Israel tomasse "medidas efetivas para prevenir a destruição e garantir a preservação de provas relacionadas a alegações de atos no âmbito do Artigo II e do Artigo III da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio contra membros do grupo palestino na Faixa de Gaza".

O tribunal ordenou que Israel "tome todas as medidas ao seu alcance" para prevenir os crimes que equivalem a genocídio, como "matar, causar danos corporais e mentais graves, infligir ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial e impor medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo".

Israel foi obrigado a apresentar um relatório em um mês para explicar o que havia feito para implementar as medidas provisórias.

Gaza foi atingida por bombas, mísseis e projéteis de artilharia enquanto a decisão era lida em Haia – pelo menos 183 palestinos foram mortos nas últimas 24 horas.

Desde 7 de outubro, mais de 26 mil palestinos foram mortos. Quase 65.000 ficaram feridos, segundo o Ministério da Saúde palestino. Outros milhares estão desaparecidos. A carnificina continua. Esta é a fria realidade.

Traduzido para o vernáculo, o tribunal está a dizer que Israel deve alimentar e fornecer cuidados médicos às vítimas, cessar as declarações públicas que defendem o genocídio, preservar evidências de genocídio e parar de matar civis palestinos. Volte e informe em um mês.

É difícil ver como essas medidas provisórias podem ser alcançadas se a carnificina em Gaza continuar.

"Sem um cessar-fogo, a ordem não funciona", afirmou Naledi Pandor, ministra das Relações Internacionais da África do Sul, sem rodeios após a decisão.

O tempo não está do lado dos palestinos.

Milhares de palestinos morrerão dentro de um mês. Os palestinos em Gaza representam 80% de todas as pessoas que enfrentam fome ou fome catastrófica em todo o mundo, de acordo com as Nações Unidas.

Projeta-se que toda a população de Gaza até o início de fevereiro não tenha comida suficiente, com meio milhão de pessoas passando fome, de acordo com a Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar, com base em dados de agências da ONU e ONGs. A fome é arquitetada por Israel.

Na melhor das hipóteses, o tribunal – embora não decida por alguns anos se Israel está a cometer genocídio – deu licença legal para usar a palavra "genocídio" a fim de descrever o que Israel faz em Gaza. Isto é muito significativo, mas não é suficiente, dada a catástrofe humanitária em Gaza.

Israel lançou quase 30.000 bombas e projéteis sobre Gaza – oito vezes mais bombas do que os EUA lançaram sobre o Iraque durante seis anos de guerra. Utilizou centenas de bombas de 2.000 libras para destruir áreas densamente povoadas, incluindo campos de refugiados.

Essas bombas "bunker buster" têm um raio de morte de mil pés [305 m]. O ataque aéreo israelense é diferente de tudo o que se viu desde o Vietname. Gaza, com apenas 20 quilômetros de comprimento e cinco quilômetros de largura, está rapidamente se tornando, deliberadamente, inabitável.

Israel continuará, sem dúvida, seu ataque argumentando que não viola as diretrizes do tribunal. Além disso, o governo Biden certamente vetará a resolução no Conselho de Segurança exigindo que Israel implemente as medidas provisórias.

A Assembleia Geral, se o Conselho de Segurança não endossar as medidas, pode votar novamente pedindo um cessar-fogo, mas não tem poder para aplicá-lo.

O processo Defense for Children International – Palestine v. Biden foi apresentado em novembro pelo Centro de Direitos Constitucionais contra o presidente Joe Biden, o secretário de Estado Antony Blinken e o secretário de Defesa Lloyd Austin. O processo questiona o fracasso do governo dos EUA em impedir a cumplicidade no genocídio do povo palestino por Israel.

Ele pede ao tribunal que ordene ao governo Biden que cesse o apoio diplomático e militar e cumpra suas obrigações legais sob o direito internacional e federal.

A única resistência ativa para deter o genocídio de Gaza é proporcionada pelo bloqueio do Iêmen ao Mar Vermelho. O Iêmen, que esteve sob cerco por oito anos pela Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, França, Reino Unido e EUA, experimentou mais de 400.000 mortes por fome, falta de assistência médica, doenças infecciosas e bombardeios deliberados de escolas, hospitais, infraestruturas, áreas residenciais, mercados, funerais e casamentos.

Os iemenitas sabem muito bem – desde pelo menos 2017 que várias agências da ONU descreveram o Iémen como a viver "a maior crise humanitária do mundo" – o que os palestinos estão a suportar.

A resistência do Iêmen – quando a história desse genocídio for escrita – a diferenciará de quase todas as outras nações. O resto do mundo, incluindo o mundo árabe, recua em condenações retóricas desdentadas ou apoia ativamente a obliteração de Gaza e seus 2,3 milhões de habitantes por Israel.

O jornal israelense Yedioth Ahronoth informou que os EUA enviaram 230 aviões de carga e 20 navios cheios de projéteis de artilharia, veículos blindados e equipamentos de combate para Israel desde os ataques de 7 de outubro, nos quais cerca de 1.200 israelenses foram mortos.

Armas e equipamentos militares dos EUA estão sendo enviados para Israel – que está ficando sem munições – da base britânica RAF Akrotiri, no Chipre, de acordo com o site de investigação britânico Declassified UK. O jornal israelense Haaretz informou que mais de 40 aviões de transporte americanos e 20 britânicos, além de sete helicópteros pesados, voaram para a RAF Akrotiri, a 40 minutos de Tel Aviv.

A Alemanha planeia fornecer 10.000 cartuchos de munição de precisão de 120 mm a Israel. Se o tribunal decidir contra Israel, esses países serão reconhecidos pela corte internacional mais importante do mundo como cúmplices do genocídio.

A decisão foi rejeitada pelos líderes israelenses.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, buscando apresentar a decisão de não exigir um cessar-fogo como uma vitória para Israel, disse:

"Como todo país, Israel tem o direito inerente de se defender. A tentativa vil de negar a Israel este direito fundamental é uma discriminação flagrante contra o Estado judeu, e foi justamente rejeitada. A acusação de genocídio feita contra Israel não é apenas falsa, é ultrajante, e pessoas decentes em todos os lugares deveriam rejeitá-la".


"A decisão do tribunal antissemita de Haia prova o que já se sabia: este tribunal não busca justiça, mas sim a perseguição ao povo judeu", disse o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir. Eles ficaram em silêncio durante o Holocausto e hoje continuam a hipocrisia e dão mais um passo adiante."

A CIJ foi fundada em 1945 após o Holocausto nazista. O primeiro caso que ouviu foi apresentado ao tribunal em 1947.

"Decisões que coloquem em risco a continuidade do Estado de Israel não devem ser ouvidas", acrescentou Ben-Gvir. "Devemos continuar derrotando o inimigo até a vitória completa."

O tribunal, que rejeitou os argumentos de Israel para recusar o caso, reconheceu "que a operação militar conduzida por Israel após o ataque de 7 de outubro de 2023 resultou, entre outros, em dezenas de milhares de mortos e feridos e na destruição de casas, escolas, instalações médicas e outras infraestruturas vitais, bem como deslocamentos em grande escala".

A decisão incluiu uma declaração feita pelo subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários e coordenador de ajuda de emergência, Martin Griffiths, que em 5 de janeiro chamou Gaza de "um lugar de morte e desespero". O documento judicial prosseguiu:

". . . As famílias estão dormindo ao relento enquanto as temperaturas despencam. Áreas onde os civis foram instruídos a se mudar para sua segurança foram alvo de bombardeios. As instalações médicas estão sob ataque implacável. Os poucos hospitais que estão parcialmente funcionais estão sobrecarregados com casos de trauma, criticamente sem todos os suprimentos e inundados por pessoas desesperadas em busca de segurança.

Um desastre de saúde pública está se desenrolando. Doenças infecciosas estão se espalhando em abrigos superlotados à medida que os esgotos se espalham. Cerca de 180 mulheres palestinas estão dando à luz diariamente em meio a esse caos. As pessoas estão enfrentando os maiores níveis de insegurança alimentar já registrados. A fome está ao virar da esquina.

Para as crianças, em particular, as últimas 12 semanas foram traumáticas: sem comida. Sem água. Sem escola. Nada além dos sons aterrorizantes da guerra, dia sim, dia não.

Gaza tornou-se simplesmente inabitável. Seu povo está testemunhando ameaças diárias à sua própria existência – enquanto o mundo assiste."


O tribunal reconheceu que:

"... 93% da população de Gaza enfrenta níveis de fome críticos, com alimentos insuficientes e altos níveis de desnutrição. Pelo menos 1 em cada 4 famílias está enfrentando "condições catastróficas": passando por uma extrema falta de comida e fome e tendo recorrido à venda de seus bens e outras medidas extremas para pagar uma refeição simples. A fome, a miséria e a morte são evidentes."

A decisão, citando Philippe Lazzarini, comissário-geral da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA), continuou:

"Abrigos superlotados e insalubres da UNRWA agora se tornaram 'casa' para mais de 1,4 milhão de pessoas. Falta-lhes tudo, desde comida a higiene e privacidade. As pessoas vivem em condições desumanas, onde as doenças estão se espalhando, inclusive entre as crianças. Vivem o inabitável, com o relógio correndo rápido em direção à fome.

A situação das crianças em Gaza é especialmente desoladora. Uma geração inteira de crianças está traumatizada e levará anos para se curar. Milhares foram mortos, mutilados e órfãos. Centenas de milhares de pessoas estão privadas de educação. Seu futuro está em risco, com consequências de longo alcance e duradouras."


O tribunal também se referiu a comentários feitos por vários altos funcionários do governo israelense que defendem o genocídio, incluindo o presidente e o ministro da Defesa. Declarações feitas por autoridades do governo e outras autoridades formam um elemento crucial do componente "intenção" ao tentar estabelecer o crime de genocídio.

Ele citou o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, que declarou – dois dias após o ataque liderado pelo Hamas em 7 de outubro – ter ordenado um "cerco completo" à Cidade de Gaza, sem permissão para "eletricidade, comida, nem combustível". Ele disse:

"Eu eliminei todas as restrições (...) Vocês viram o que estamos a combater. Combatemos contra animais humanos. Este é o ISIS de Gaza", disse Gallant às tropas israelenses que se concentravam em torno de Gaza no dia seguinte. "É contra isso que estamos lutando... Gaza não voltará ao que era antes. Não haverá Hamas. Vamos eliminar tudo. Se não demorar um dia, vai demorar uma semana, vai demorar semanas ou até meses, vamos chegar a todos os lugares."


A CIJ citou o presidente de Israel, Isaac Herzog, dizendo: "Não é verdade essa retórica sobre civis que não estão cientes, não estão envolvidos. Não é absolutamente verdade. Poderiam ter se levantado. Poderiam ter lutado contra aquele regime maligno que tomou Gaza num golpe de Estado. Mas estamos em guerra. Estamos em guerra. Estamos defendendo nossas casas".

Herzog continuou: "Estamos protegendo nossas casas. Essa é a verdade. E quando uma nação protege sua casa, ela luta. E vamos lutar até quebrar a espinha dorsal deles."

A decisão de hoje foi lida pela atual presidente da CIJ, a juíza Joan Donoghue, uma advogada americana que trabalhava no Departamento de Estado dos EUA e no Departamento do Tesouro antes de ingressar na Corte Mundial em 2010.

"Na opinião da Corte, os fatos e circunstâncias mencionados acima são suficientes para concluir que pelo menos alguns dos direitos reivindicados pela África do Sul e para os quais está buscando proteção são plausíveis", diz o texto. "Este é o caso no que diz respeito ao direito dos palestinos em Gaza de serem protegidos de atos de genocídio e atos proibidos relacionados identificados no Artigo III, e o direito da África do Sul de buscar o cumprimento por Israel das obrigações deste último sob a Convenção."


Está claro na decisão que o tribunal está plenamente ciente da magnitude dos crimes de Israel. Isto torna ainda mais angustiante a decisão de não pedir a suspensão imediata da actividade militar israelita em Gaza e contra Gaza.

Mas o tribunal desferiu um golpe devastador na mística que Israel usou desde sua fundação para levar adiante seu projeto colonial de colonatos contra os habitantes indígenas da Palestina histórica. Tornou credível a palavra genocídio, quando aplicada a Israel.

Nota do autor aos leitores: Agora não há mais como continuar a escrever uma coluna semanal para o ScheerPost e produzir meu programa de televisão semanal sem a sua ajuda. Os muros estão a fechar-se, com uma rapidez surpreendente, no jornalismo independente, com as elites, incluindo as elites do Partido Democrata, clamando por mais e mais censura. Bob Scheer, que dirige o ScheerPost com um orçamento apertado, e eu não renunciarei ao nosso compromisso com o jornalismo independente e honesto, e nunca colocaremos o ScheerPost atrás de um paywall, cobraremos uma assinatura por isso, venderemos seus dados ou aceitaremos publicidade. Por favor, se puder, inscreva-se no chrishedges.substack.com para que eu possa continuar a postar minha coluna de segunda-feira no ScheerPost e produzir meu programa de televisão semanal, The Chris Hedges Report.


26/Janeiro/2024


[*] Jornalista ganhador do Prêmio Pulitzer que foi correspondente estrangeiro por 15 anos de The New York Times, onde atuou como chefe do escritório do Médio Oriente e chefe do escritório dos Balcãs para o jornal. Ele já trabalhou no exterior para The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR. É o apresentador do programa The Chris Hedges Report.

Este artigo encontra-se em resistir.info


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