Imagem: Kostiantyn Vierkieiev
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O problema fiscal dos governos estaduais não pode ser discutido tão somente como uma restrição financeira
“Nesse jogo, excluídos alguns sonhadores prussianos, as ideias estiveram permanentemente a serviço das táticas mais do que das estratégias, da “liquidez” mais que da produção, ou seja, perfeitamente no seu lugar: o das crises brasileiras” (José Luís Fiori).
A renegociação das dívidas estaduais tende a ser tratada de forma isolada, como apenas uma restrição financeira. Isso impede de se indagar qual o papel dos governos estaduais e, logo, de suas finanças. Ou seja, essa discussão só faz sentido se estiver relacionada à questão federativa. Essa não se resume a distribuição de recursos, mas envolve a relação entre o poder estatal e a gestão estratégica do território no país.
Em meados da década de 1990, inicia-se o processo de renegociação das dívidas estaduais que vem sendo rolado até hoje. Esse processo transcorre quando a convenção de estabilidade (monetária) alcança hegemonia e torna o Estado nacional seu guardião, enquanto a adesão acrítica ao paradigma da globalização estimula a mudança para um federalismo competitivo na prática (a despeito do modelo cooperativo na constituição). Essas tendências tornam a relação da União e entes subnacionais pautada por uma predisposição para identificar potencial risco inflacionário no gasto desses últimos e desequilíbrio no contexto de crescente guerra fiscal.
Em 2018, quando se completava primeiro ano do Regime de Recuperação Fiscal – RRF, enfatizei em entrevista o quanto seu arcabouço reafirma uma lógica de agiotagem. Afinal, resume a relação entre União e ente subnacional como mera relação de credor e devedor, cuja preocupação central é dar condições de reorganização do fluxo de pagamentos para que continuasse. Como agiota, o credor não incluí em suas avaliações os efeitos socioeconômicos sobre a realidade subnacional de impor um ajuste de caráter recessivo, desde que seja perseguido o resultado fiscal.
No geral, a União assume um papel de controle restrito, resumido a sanções, enquanto poucos mecanismos de coordenação são efetivados. No limite, age como capital a juros que, voltado para critérios de valorização, desvincula-se de qualquer responsabilidade compartilhada com as políticas públicas dos entes subnacionais (já chegaram a ser interrompidas para priorizar pagamento da dívida).
Portanto, o problema fiscal dos governos estaduais não pode ser discutido tão somente como uma restrição financeira. Na verdade, o problema não é assumir uma obrigação, mas antes para qual finalidade ela serve. Ela pode ser um instrumento ideológico para impor a fórceps medidas de austeridade e reformas administrativas tão somente para aumentar poupança e maior capacidade de pagamento dela. Inversamente, ela pode ser um instrumento de planejamento indutor como uma das formas de financiamento de uma estratégia de desenvolvimento intrafederativa.
Portanto, a dívida só é o problema quando se revela uma relação assimétrica de poder que retira autonomia federativa, e sem nenhum conjunto de prioridades que se associe a uma gestão estratégica do território.
A Secretaria do Tesouro Nacional – STN (órgão vinculado ao Ministério da Fazenda) desempenha papel central nos processos de renegociação das dívidas estaduais. Em tese de doutorado defendida na FGV/SP, Rogério Ceron (2021, p.86), o atual secretário da Secretaria do Tesouro Nacional, afirmou que: “[o Rio de Janeiro] é o caso de falência fiscal mais emblemático do Brasil na atualidade e não há horizonte de recuperação à frente e nem de solução para o endividamento (o estado continua sem arcar com os encargos da dívida)”. Na mesma tese, se foi além e afirmou também: “como ocorreu em outros momentos do tempo, o estado não tem endereçado soluções estruturais e aguarda mais um resgate e perdão de dívida por parte do Governo Federal. Caso também emblemático de resiliência fatalística, apostando mais uma vez no bailout (…)”.
A atual posição do governo fluminense parece não ser capaz de refutar essa avaliação, quando decide retaliar na opinião pública e judicializar a questão da dívida. O desespero se explica. Já no primeiro ano de vigência do novo Regime de Recuperação Fiscal, 2022, ficou em situação de inadimplência ao descumprir compromisso fiscal (meta de resultado primário prevista). Segundo legislação, além de sofrer multa, está sob risco de ser extinto o regime se ficar este ano novamente (ou seja, dois exercícios consecutivos). Preocupações não faltam quando a previsão de déficit é de R$ 8,5 bilhões para esse ano e de R$ 13,7 bilhões para 2025 (segundo a PLDO enviada à ALERJ recentemente).
Se é inaceitável a União assumir postura de agiotagem, assumir a posição sartreana de “o inferno são os outros” e ignorar o debate de contrapartidas beira o nonsense. Inclusive rejeitando rapidamente a proposta inovadora do Ministério da Fazenda de reduzir os encargos em troca de maiores investimentos estaduais em educação.
A história poderia estar sendo diferente. No mesmo ano de defesa da tese acadêmica do atual secretário da STN, o governo fluminense passou a construir um Plano de Recuperação Fiscal – PRF que, posteriormente, se desdobrou em um Plano Estratégico de Desenvolvimento Econômico e Social – PEDES. Sua principal originalidade está em não só apresentar uma solução desenvolvimentista de reequilíbrio fiscal (que recebeu aprovação técnica da gestão anterior da Secretaria do Tesouro Nacional), mas buscar ser protagonista no debate nacional sobre uma mudança profunda no arcabouço do Regime de Recuperação Fiscal e, se possível, até sua superação por uma nova política federativa. De lá para cá, o governo estadual desassociou um plano do outro, descaracterizou o primeiro e pouca efetividade deu para o segundo. A pergunta que fica é: por quê?
A fim de realizar nova “fuga para frente” e disfarçar sua negação de seguir qualquer estratégia, prefere-se então chamar Raul Seixas e bradar: “nós não vamos pagar nada”. De fato, a tese acadêmica do atual secretário da STN não exagerou. O governo fluminense confirma o histórico de não priorizar soluções estruturais (mesmo tendo as apresentado antes no PRF e no PEDES). E mais, segue uma tradição de esperar o problema chegar a um nível crítico para apelar para nova injeção de liquidez, ainda que com sistemático descompromisso com resultados que demonstrem estar reduzindo sua insustentabilidade fiscal. Nesse caso, o problema não é a dívida, mas uma fragilidade político-institucional que ela explicita como um limite para gestão técnica eficaz e de caráter estratégico.
Garantir maiores mecanismos de controle social é algo fundamental. Afinal, a população em geral e mesmo a maioria dos servidores desconhecem o PRF e o PEDES, e o que está em jogo por opções políticas. Como exemplo, a perda de recomposição inflacionária dos servidores estaduais que, após quase uma década, tinha voltado com a aprovação do PRF que a sustentava tecnicamente e não foi mais dada este ano.
*Bruno Sobral é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador da Rede Pró-Rio.Veja neste link todos artigos de
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