Luiz Inácio Lula da Silva durante evento de campanha em São Paulo em outubro de 2022. (Foto: Nelson Almeida, AFP)
Uma contribuição marxista para a conceituação do fenômeno lawfare.
Durante a última década – se não mais – o fenômeno do lawfare ocupou um lugar central na arena política latino-americana. A difamação nos meios de comunicação social e a perseguição judicial de líderes políticos e sociais, funcionários do Estado e empresários foram elementos centrais e comuns da política de quase todos os países do nosso continente.
O neologismo lawfare foi cunhado por um oficial da Força Aérea Norte-Americana – General Charles Dunlap – para designar uma tática militar. Em duas palavras, Dunlap entendia o lawfare como a utilização do direito (especialmente do direito internacional) para minar a capacidade operacional do poder militar dos EUA nas suas invasões. Ao mesmo tempo, para Dunlap, o lawfare implicava a participação de pessoal jurídico especializado nas operações das Forças Armadas dos Estados Unidos. Em suma, lawfare, na concepção de Dunlap, era o uso bélico da lei.
Grande parte da literatura disponível sobre lawfare sustenta, portanto, que o fenômeno que na América Latina chamamos de lawfare, em essência, é o mesmo que Dunlap tentou compreender com este termo. Mas, é claro, no caso latino-americano, a guerra jurídica não constitui um elemento integrante de uma guerra convencional. Pelo contrário, o lawfare seria uma tática típica de um novo tipo de guerra (significada pelo surgimento dos BRICS e pela reação norte-americana contra ele) chamada por alguns autores de Guerra Mundial Híbrida e Fragmentada. Neste novo tipo de guerra, os campos de batalha não são (apenas) aqueles onde os exércitos se confrontam com a artilharia e a infantaria, onde as cidades são bombardeadas e onde pessoas inocentes são assassinadas. Aqui também há batalhas que se travam a nível comunicacional, político, econômico e jurídico-judicial. Lawfare, então, continua a enquadrar-se na conceituação de Dunlap, embora com modificações relevantes.
Não partilho desta forma de conceber o fenômeno. Em primeiro lugar, penso que a identificação da tática que Dunlap nomeou com esse termo com o fenômeno que aqui nos interessa é extremamente problemática. Será o uso da lei pelos Estados Unidos nas suas operações militares o mesmo fenômeno social? (ou o apelo ao direito internacional como forma de se proteger dos bombardeios norte-americanos) que os processos de perseguição judicial e estigmatização mediática que temos testemunhado na América Latina? Se a resposta for que em ambos os casos se trata da "utilização da lei para fins militares", apenas que num caso se trata de operações militares convencionais e no outro de operações não convencionais, diria que aqui estamos diante da identificação meramente formal de diversos fenômenos sociais.
Na minha opinião, o lawfare assemelha-se muito mais à ação repressiva de um Estado contra, digamos, uma revolta dos trabalhadores, do que a uma ação militar entre duas forças em conflito. Contudo, o lawfare apresenta, neste sentido, uma contradição curiosa: é tanto uma ação de um Estado estrangeiro (fundamentalmente, os Estados Unidos) sobre a política local, como também uma acção levada a cabo por atores dos Estados locais e da sociedade civil. E é uma ação repressiva que não é dirigida apenas contra líderes das classes subalternas, mas também tem perseguido alguns dos capitalistas mais importantes do continente.
Em primeiro lugar, uma conclusão básica da investigação, cujos principais resultados apresento aqui resumidos, é que o fenômeno que Dunlap designou com o seu neologismo é completamente diferente do lawfare tal como o conhecemos. São dois objetos diferentes, designados pelo mesmo termo.
Para compreender a especificidade do lawfare (de agora em diante usarei sempre esta palavra para me referir ao fenômeno que investiguei, o lawfare na América Latina), em vez de procurar desenvolver uma “definição” de lawfare, optei por direcionar a pesquisa para as condições histórico-concretas de emergência desse fenômeno social. Ou seja, em vez de desenvolver uma definição formal, questionarei as condições de emergência do fenômeno.
Para responder a esta questão, considero que a perspectiva marxista pode ser extremamente fecunda. Um ponto de partida dessa concepção do ser social – especialmente na sua leitura lukacsiana – é que os fenômenos sociais não existem “em si mesmos”, ou seja, não existem fora da sociedade tomada como uma totalidade histórica em desenvolvimento. Nem a política, nem o direito, nem a ideologia, nem mesmo a economia no sentido estrito, têm existência própria e autônoma. São todos aspectos, ou melhor, momentos de uma totalidade de relações sociais em desenvolvimento histórico (em que o momento da produção é, segundo a expressão de Marx, o momento dominante). Compreender, então, um fenômeno como o lawfare em si e por si, abstraindo das suas circunstâncias sócio-históricas numa definição formal geral, é, nesta perspectiva, extremamente problemático.
Agora, assumindo esse ponto de vista, surge uma dupla tarefa para a conceituação do lawfare . Em primeiro lugar, precisamos de uma caracterização, pelo menos muito geral, dos aspectos decisivos, dos momentos determinantes, do capitalismo contemporâneo (isto é, da sociedade como um todo). Este primeiro problema divide-se, por sua vez, em outros dois. Primeiro: quais são as tendências fundamentais do desenvolvimento capitalista actual? E em segundo lugar, que forma e que papel desempenha o Estado moderno (e, consequentemente, o poder judicial) no desenvolvimento destas tendências atuais do capitalismo?
Em segundo lugar, coloca-se a tarefa de analisar o lawfare — à luz dessa conceptualização geral da sociedade capitalista contemporânea — na sua própria especificidade. Para levar a cabo esta segunda tarefa optamos por tentar reproduzir o método de Marx: analisar o fenômeno no seu caso clássico, no caso mais típico e desenvolvido até agora. É por isso que escolhemos a Lava Jato no Brasil como estudo de caso . Este foi, sem dúvida, o caso de lawfare mais importante, mais ressonante e de maior impacto e alcance.
Comecemos por expor esquematicamente aquelas tendências do capital que considero decisivas para a compreensão da sua forma atual. Seguindo Zardoya et. al, defendo que as tendências fundamentais do sistema capitalista contemporâneo podem ser capturadas na sua essência com as categorias de transnacionalização e desnacionalização do capitalismo monopolista de Estado .
Os referidos autores deram continuidade e atualizaram a teorização leninista clássica sobre o imperialismo, concebendo as tendências imanentes do capitalismo como uma totalidade em permanente metamorfose histórica. Isto significa que o sistema capitalista, sem deixar de ser o que é (aquela lógica identificada por Marx em O Capital), adquire no seu desenvolvimento histórico diversas formas de existência, marcadas pelo grau de desenvolvimento das contradições sociais que surgem das leis. da produção capitalista. Por exemplo, na época de Marx predominava a livre concorrência, enquanto – seguindo a tradição leninista – na era atual predomina o monopólio. O que não significa, claro, que a frequência tenha desaparecido. Muito pelo contrário: poderíamos dizer que o capitalismo monopolista nada mais é do que a forma mais elevada de competição, uma competição monopolista aparentemente paradoxal à escala global.
A tendência fundamental do capitalismo contemporâneo seria, portanto, a transnacionalização dos monopólios capitalistas dos países centrais e a desnacionalização das formações capitalistas periféricas. Na sequência desta transnacionalização do capital, podemos verificar uma transnacionalização dos poderes políticos, ideológicos e militares dos poderes centrais. Vale a pena esclarecer aqui que isto não significa o fim ou o desaparecimento dos Estados nacionais no quadro do capitalismo (o que é um absurdo). Pelo contrário, significa a metamorfose, a refuncionalização dos Estados nacionais no sistema do capital: os Estados capitalistas centrais, em correspondência com o desenvolvimento transnacional dos monopólios capitalistas, assumem funções econômicas, políticas, militares e jurídicas de âmbito tendencial. global (transnacional). Por outro lado, os países e estados periféricos vêem as suas funções econômicas, políticas, jurídicas, etc. desnacionalizadas; vêem as suas capacidades estatais e econômicas determinadas por forças político-sociais extranacionais;
Este desenvolvimento transnacionalizante constitui, portanto, uma contradição tendencial no desenvolvimento histórico (insolúvel nos quadros da sociedade capitalista) entre as formações do Estado nacional e a formação social capitalista como um todo. Este é um aspecto daquilo que István Mészáros chamou de “crise estrutural do capital”, uma crise permanente e intransponível no sistema metabólico do capital.
Quanto ao segundo problema geral (o do papel do Estado neste processo), uma categoria própria ocupou um lugar fundamental nesta pesquisa. Tomando a categoria Gramsciana do intelectual como produtor de hegemonia (organizador e articulador da direção ideológica e moral de uma classe, elemento unificador de um bloco histórico) e integrando-a à categoria marxista de personificação do capital, cunhei a categoria de “personificação” hegemônica do capital.
Com esta categoria procuro captar a especificidade da função dos intelectuais (sujeitos membros do Estado, num sentido estrito e ampliado) no sistema da sociedade capitalista. A “personificação hegemônica do capital” constitui uma modificação da “personificação do capital”: se na sociedade capitalista os sujeitos são alienados na personificação das coisas, se o capitalista é forçado a responder aos imperativos da acumulação de capital - sob pena de ruína - então é possível pensar que na formação do Estado desta sociedade os sujeitos que assumem funções políticas também são afetados por esse imperativo.
Mas, claro: a função dos capitalistas individuais é especificamente diferente daquela do Estado. O capitalista singular, em termos muito gerais, deve responder ao imperativo da maximização do lucro. Ao mesmo tempo – especialmente seguindo Gramsci aqui – o Estado e os seus intelectuais devem superar os interesses corporativos imediatos do capital em virtude de uma atitude ético-política (que, no entanto, segundo o próprio Gramsci, em última análise, tem uma finalidade económica). Portanto, as personificações hegemónicas do capital não são obrigadas a realizar o imperativo da acumulação imediata de uma determinada fracção do capital, mas sim a responder ao imperativo da reprodução de uma forma de capital como uma totalidade.
E é aqui que ambos os aspectos conceptuais da investigação estão intimamente relacionados: cada personificação hegemônica do capital é obrigada a responder aos imperativos de uma forma específica de organização da sociedade capitalista como um todo. No entanto, na sociedade capitalista não existe uma forma única de organização possível: as diferentes frações do capital, de acordo com os seus interesses e imperativos específicos, incorporam potencialmente várias formas do sistema capitalista. Desta forma, as personificações hegemônicas personificam sempre uma ou outra forma possível do sistema capital.
Chamo o processo pelo qual certas personificações hegemônicas passam de assumir os imperativos de uma forma de capital para outra (seja no mesmo sujeito individual ou devido à substituição de determinado sujeito em determinado estado ou função política) de “metamorfose do personificações hegemônicas do capital.
Cabe esclarecer aqui que a categoria de personificação hegemônica do capital não implica uma negação da agência dos sujeitos que assumem as posições políticas que buscam garantir a reprodução da sociedade capitalista como um todo. Os imperativos objetivos do capital levantam – como dizia o velho Lukács – a questão; Os sujeitos (se assumirem esses imperativos) deverão buscar a resposta por seus próprios meios. E esta última pode ser muito diversa, certa ou errada, e sempre foi mediada por fatores ideológicos, subjetivos e contingentes.
Falamos, então, de uma personificação hegemônica do capital quando um sujeito vê sua ação política determinada pela busca de resposta aos imperativos que surgem de uma determinada forma de capital, quando um sujeito político assume esses imperativos.
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Com esse aparato conceitual, portanto, abordei a análise das condições de surgimento do caso Lava Jato no Brasil ocorrido entre os anos de 2014 e 2022. Por razões lógicas de espaço, não será possível aqui elaborar uma descrição do caso. Portanto, apresentarei de forma breve e esquemática as conclusões derivadas de sua análise.
O estudo de documentos judiciais e diplomáticos (tanto do Estado brasileiro quanto dos Estados Unidos), bem como a análise de fontes jornalísticas e de alguns telegramas do Wikileaks, mostraram que as condições de surgimento do caso Lava Jato podem ser caracterizadas como um processo de a desnacionalização do Estado brasileiro (especialmente em seu poder judiciário, em alguns setores importantes de sua sociedade civil, como alguns de seus meios de comunicação mais relevantes, em setores da polícia federal e dos serviços de inteligência) e a transnacionalização de funções (judicial, midiática, inteligência e defesa da sociedade civil) dos Estados Unidos. Podemos resumir esse processo na seguinte lista:
1. Os funcionários mais importantes do caso Lava Jato (o juiz Sergio Moro, o promotor Deltan Dallagnol, entre outros) foram formados nos Estados Unidos e mantiveram vínculo constante com o Departamento de Estado e o Departamento de Justiça daquele país, bem como com segurança e inteligência de serviços. Um dos elementos mais importantes deste vínculo de formação é o chamado Projeto Puentes (2009), uma instância de formação de funcionários judiciais promovida pelos Estados Unidos na qual, entre outras coisas, foi difundida a prática de “relatórios premiados” ». (uma prática altamente questionada e típica do lawfare).2. A reforma judicial de 2013 no Brasil – que possibilitou, entre outras coisas, a prática da “denúncia recompensada” – foi promovida e promovida por organizações ligadas aos Estados Unidos.3. Durante o processo judicial da Lava Jato —especialmente no que diz respeito à perseguição a Lula Da Silva— a coordenação direta de Moro e Dallagnol com autoridades dos Estados Unidos é um fato confirmado por vazamentos publicados em 2016. Além disso, fontes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos confirmaram publicamente seu trabalho conjunto (formal e informal) com o judiciário brasileiro (o que, segundo a legislação brasileira, é em si um crime).4. Existem múltiplas evidências da participação direta de funcionários do FBI e da NSA na formação do caso Lava Jato, especialmente no que diz respeito à denúncia da relação entre Odebrecht e Petrobras.5. No que diz respeito à sociedade civil, à mídia e à mobilização de massas desencadeada pelo caso Lava Jato —contra o governo Dilma Rousseff— a participação da organização Rede Atlas foi decisiva. É uma rede global de think tanks centrados nos Estados Unidos que reúne pelo menos onze importantes think tanks brasileiros de extrema direita , vários deles ligados a funcionários judiciais, políticos, jornalistas e proprietários de importantes meios de comunicação, que desempenharam um papel decisivo no caso Lava Jato e na sua instrumentalização política.6. Além disso, o judiciário dos EUA agiu diretamente, tanto contra a Odebrecht – talvez a capitalista mais importante do Brasil – como contra a Petrobras (uma das mais importantes empresas petrolíferas do continente).
Em todos estes aspectos constitutivos do caso lawfare em questão, trata-se, portanto, de uma refuncionalização desnacionalizante do Estado e da sociedade civil brasileira, e de uma transnacionalização do Estado norte-americano. Podemos confirmar, portanto, que as condições para o surgimento do lawfare são dadas por este processo de transnacionalização.
Segundo Lukács, a ação humana é teleológica; Visa sempre atingir um propósito (o que não acontece com a história e a sociedade como um todo, que não são teleológicas). Parto da hipótese, portanto, de que as personificações hegemônicas do capital transnacionalizado têm por finalidade garantir a reprodução e a expansão daquela forma de sociedade capitalista. Portanto, um aspecto importante da análise do caso Lava Jato é perguntar sobre seus objetivos e resultados. Esquematicamente, podemos resumi-los da seguinte forma:
1. Desmantelamento parcial da mais importante empresa capitalista do Brasil (Odebrecht), que se encontrava em processo de transnacionalização regional, em concorrência com os norte-americanos (caso paradigmático de concorrência monopolista).2. Desmantelamento ou redução da capacidade econômica de empresas estatais decisivas no Brasil, fundamentalmente Embraer (venda para Boeing) e, sobretudo, Petrobras (uma das primeiras medidas de Michel Temer foi revogar a regulamentação que exigia que a Petrobras fosse a principal operadora do Pré -sal).3. Desarticulação da principal força política que representava (com importantes limitações) um projeto político-econômico centrado na autonomia nacional, ou seja, o PT, o governo de Dilma Rousseff e, especialmente, a figura política de Lula Da Silva.
Em resumo: o caso Lawfare Lava Jato teve como alvo a Odebrecht, as principais empresas estatais brasileiras e o PT. Estes três objetivos caracterizam-se pelo seu carácter de contratendências à transnacionalização hegemônica (norte-americana) na região. Seja pela competição econômica ou pelas contradições político-hegemônicas. Vemos, então, que não só as pré-condições deste caso de lawfare, mas também o seu propósito são determinados pela transnacionalização desnacionalizante do capital.
Podemos concluir, então, que os sujeitos políticos agentes do caso Lava Jato eram personificações hegemônicas do capital transnacional e que, além disso, suas ações tenderam a uma expansão da metamorfose transnacionalizante das personificações hegemônicas do capital no Brasil. A análise anterior permite, então, chegar a uma nova definição de lawfare que, embora provisória, parece mais ajustada aos casos latino-americanos dos últimos anos. Entendido desta forma, o lawfare é um modo específico de produção da hegemonia do capital financeiro transnacional, uma hegemonia que se desenvolve na forma de transnacionalização do Estado imperialista e que se manifesta como uma metamorfose transnacionalizante das personificações hegemônicas do capital, acima de tudo todos (embora não só) no judiciário dos países periféricos.
[*] O artigo anterior é um resumo dos resultados de uma investigação sobre lawfare que o autor realizou em 2023 (e que ainda permanece inédita) com base na análise do caso Lava Jato no Brasil.MANUEL SAMAJÁFormado em Ciência Política pela Universidade Nacional de San Martín (Argentina), organiza e ministra o curso virtual “Introdução ao pensamento dialético: da filosofia clássica alemã ao marxismo contemporâneo”.
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