A cabeleireira Márcia Oliveira de Aguiar passava os dias à beira de um colapso no apartamento da família na Taquara. Em meio a crises de choro e ansiolíticos, a mulher de Fabrício Queiroz não aguentava mais viver escondida. Tinha medo de ser reconhecida depois de tantas imagens da família no noticiário. Mas, sobretudo, ela não suportava mais se sentir uma marionete do Anjo.
Naquele mês, Márcia estava especialmente nervosa com o julgamento do que poderia acabar com o caso da rachadinha, e talvez aliviar a barra dos Queiroz. Era o que ela esperava e o que de alguma maneira tinha sido prometido pelo advogado Frederick Wassef. Contudo, depois de um ano convivendo com ele, Márcia entendeu que era muito custoso estar sob a proteção do Anjo. E o único jeito de atravessar aquele novembro de 2019 era desabafar com a advogada Ana Flávia Rigamonti, funcionária de Wassef em São Paulo, e de quem Márcia tinha se tornado próxima.
“Só que eu também não tô aguentando, tá entendendo? Eu tô muito preocupada com ele e a minha saúde também tá abalada, tá entendendo? A gente não pode mais viver sendo marionete do Anjo.‘Ah você tem que ficar aqui, tem que trazer a família.’ Esquece, cara, deixa a gente viver a nossa vida. Qual o problema? Vão matar? Ninguém vai matar ninguém, se tivesse que matar já tinha pego um filho meu aqui, você tá entendendo? Então deixa a gente viver a nossa vida aqui com a nossa família. Todo mundo tá vivendo a sua vida com os seus filhos, com a sua família. Só a gente que tá separado.”
E o ápice da revolta de Márcia era que Wassef sustentava que, caso o STF não desse a decisão que poderia encerrar a investigação, a família Queiroz deveria ir morar em São Paulo: “Isso daí não tem pé nem cabeça. Afinal de contas, a gente está foragido? A gente tá com a prisão decretada depois dessa decisão, se for positiva ou negativa? Porque, poxa, eu tô vendo que todo mundo tá vivendo sua vida. Alguns se mudaram para outro estado porque é trabalho. Agora a gente não, a gente está há um ano nessa luta aí. Então nós somos foragidos para viver fugindo? Estar em outro lugar? Não é possível isso. Entendeu? Bota isso para eles. Pode falar que é a minha palavra mesmo, quero saber o fundamento disso. Eu não vou sair do Rio para morar em São Paulo”.
MÁRCIA AGUIAR NASCEU no Rio de Janeiro em 1º de outubro de 1971. Passou a viver com Queiroz em 2001, aos trinta anos. O relacionamento, porém, começara no ano anterior, com o nascimento de Felipe, o único filho deles. Ela já tinha outros dois filhos, Fernando e Evelyn Mayara, de sua relação com outro paraquedista da reserva, Márcio Gerbatim. Queiroz tinha três filhas do primeiro casamento: Nathália, Evelyn e Melissa. O casal passou a morar numa casa numa vila, na Taquara. Foi lá que Márcia viveu uma das maiores dores de sua vida, quando seu filho mais velho se matou com um tiro disparado por uma arma de Queiroz, em março de 2012. E esse não foi o único episódio difícil ali.
Na manhã de 1º de março de 2008, Márcia esteve na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá para registrar um boletim de ocorrência contra Queiroz. Horas antes o casal havia tido uma discussão e ele “partiu para cima” dela, desferindo “vários socos na cabeça, costela e [nos] braços”. Não era a primeira vez que sofria agressões dele, embora não tivesse registrado as anteriores. No boletim, ela expressou “desejo de representar criminalmente” contra o companheiro e pediu medidas protetivas. Naquele momento, Márcia não indicou testemunhas e disse que não tinha lesões aparentes. A delegacia a encaminhou para exames no Instituto Médico Legal às 6h43 daquele dia e, em seguida, para a Defensoria Pública, munida de um pedido de medida protetiva a ser apresentado ao Tribunal de Justiça. Márcia não foi ao IML nesse dia, nem nos seguintes.
Horas depois Queiroz foi à 32ª Delegacia de Polícia, a mesma na qual costumava registrar suas ocorrências quando integrava o 18º BPM, e fez uma queixa de lesão corporal contra Márcia. Registrou que tinha sido agredido com socos, tapas e pontapés. A mulher tentou pegar sua arma, e por isso ele teve que reagir. Uma semana mais tarde, Queiroz compareceu à Delegacia da Mulher para prestar depoimento. Disse que os dois viviam bem, mas “esporadicamente ocorrem discussões normais de casal”. Sobre a denúncia de Márcia, admitiu as agressões, mas contou ter sido agredido. Nas suas palavras, “o casal teve uma discussão por motivo familiar e os dois entraram em vias de fato”. Defendeu-se dizendo que nunca havia se envolvido “em ocorrência de violência doméstica”.
O tempo passou e em 25 de abril Márcia Aguiar foi à Defensoria Pública e retirou o pedido de medida protetiva que havia feito. Anotou de próprio punho: “Declaro que não preciso de proteção (medida protetiva) e não pretendo continuar com o processo criminal”. O inquérito ficou parado por bastante tempo, até que, em 30 de setembro de 2010, o MP arquivou a denúncia.
Quando tudo isso aconteceu, Márcia estava lotada na Alerj como consultora especial de Flávio para assuntos parlamentares. Trabalhava, porém, como cabeleireira. Mais tarde, em 2015, chegou até a oferecer esses serviços em seu perfil no Facebook: “escova de tratamento para realinhamento e hidratação dos fios” por 220 reais, “sem formol”. No RH da Assembleia, ainda era assessora.
Vaidosa, a cabeleireira sempre registrou com muitas selfies os looks com que ia às festas. Loira, o cabelo escovado e devidamente maquiada, ela prezava a intimidade com o clã Bolsonaro. Em 21 de março de 2015, quando Bolsonaro começava a se projetar candidato a presidente, ela acompanhou Queiroz a uma festa de aniversário dele. Ao entrar no restaurante Fratelli, na Barra, os dois tiraram fotos e fizeram questão de postar no Facebook. Um ano antes estiveram no aniversário de Michelle e, meses depois, no de Laura, a caçula do presidente. A proximidade e o convívio entre os Bolsonaro e os Queiroz não eram segredo. Carlos até interagia com os filhos do policial nas redes sociais.
Por anos eles viveram bem sob a proteção do clã, com vagas em diferentes gabinetes. Chegaram a ter oito familiares nomeados. Angela Melo Cerqueira, ex-cunhada de Queiroz, foi a primeira, entre 2006 e 2007. Em seguida, Márcia Aguiar e Nathália em 2007, lotadas no gabinete de Flávio na Alerj. Mais tarde até Márcio Gerbatim, ex-companheiro de Márcia, e um sobrinho dele. A engrenagem funciona como uma dança de cadeiras: sai um, entra outro. Nos últimos anos de Flávio na Alerj, entraram Evelyn Queiroz e Evelyn Mayara Gerbatim, respectivamente, filha e enteada de Queiroz. Evelyn Mayara ocupou a vaga da mãe, Márcia, mulher de Queiroz, a partir de setembro de 2017. Nathália deixou o lugar no Rio para a irmã Evelyn e ocupou um cargo no gabinete de Jair, em Brasília.
Além dos salários, os assessores também tinham acesso a benefícios. Valores para alimentação, transporte e gastos com educação. Mas existiam algumas regras. Os funcionários recebiam uma cota mensal como auxílio educação para cada filho, com limite máximo de três crianças. Em 2007, o benefício era de 447,25 reais. Mas se o pai e a mãe fossem funcionários da Alerj, o auxílio valia para apenas um deles, não era cumulativo. Como não estavam formalmente casados e não disseram à Alerj que viviam juntos, Márcia Aguiar e Fabrício Queiroz recebiam o benefício para todos os seis filhos. Com isso, chegaram a embolsar mais de 376,5 mil reais só de auxílio-educação. A Alerj até identificou que os dois tinham um filho juntos e a possibilidade de formarem um casal, mas o RH não checou as declarações dos dois negando a união. Nenhum funcionário do departamento de pessoal ou da Procuradoria deu uma olhadinha nos perfis do Facebook da dupla.
EM 30 DE DEZEMBRO DE 2018, Queiroz se internou no Albert Einstein, em São Paulo, para operar um tumor no intestino. Quatro dias antes havia dado uma entrevista para o SBT contando que estava doente. Por isso faltara às convocações para se explicar como havia movimentado mais de 1 milhão de reais se não recebia o suficiente para isso.
Mas, apesar do clima tenso, os Queiroz mantinham o espírito galhofeiro. Na véspera da cirurgia, 31 de dezembro, gravaram um vídeo dançando e gargalhando no quarto do hospital. Ao rodopiar com um suporte para soro e medicamentos intravenosos, ele fez até um sinal de positivo com as mãos. Quando o vídeo vazou, não faltou quem duvidasse que o câncer era uma desculpa. O clã Bolsonaro não aprovou a divulgação do vídeo, mas logo em seguida a defesa de Queiroz forneceu ao MP ampla documentação dos exames e da cirurgia. A internação no Einstein chamou a atenção porque dias depois da alta de Queiroz foi a vez de Bolsonaro fazer uma cirurgia no mesmo hospital. A coincidência era comentada nos bastidores devido às dúvidas sobre quem estava custeando as despesas médicas de Queiroz. Mais tarde, esse detalhe suscitaria o interesse dos promotores do Rio que o investigavam.
Em janeiro de 2019, porém, a principal preocupação de Queiroz era se manter longe dos holofotes. Para tanto, ele precisava de um lugar discreto e inacessível à imprensa. As questões jurídicas seriam resolvidas por seus advogados. Na estratégia de Wassef, importaria ganhar tempo e fazer com que o problema de Flávio caísse no esquecimento. Assim, Queiroz partiu para o primeiro esconderijo: um apartamento de duzentos metros quadrados de frente para a praia de Pitangueiras, no Guarujá, litoral paulista. O imóvel, da mãe de Wassef, abrigou o policial por cerca de quatro meses. Márcia o visitava com certa frequência, mas voltava ao Rio para ficar com os filhos.
Apesar de seguir as orientações do Anjo, Queiroz tomou suas precauções. Antes de sair do Rio, anotou uma série de contatos para a mulher acionar em caso de emergência. Preencheu 49 páginas de uma pequena agenda em cuja capa havia a imagem de um homem vestido de branco e a frase “Jesus Misericordioso”. Nas primeiras páginas ele registrou os números de alguns policiais amigos e do deputado estadual Rodrigo Amorim, além do deputado federal Lourival Gomes, dono do time de futebol amador onde Felipe jogava. A partir da página 17, os celulares de Flávio e Fernanda Bolsonaro, e na página seguinte, de Jair e Michelle. Também anotou o contato do policial do Bope Max Guilherme Machado de Moura, assessor especial do presidente, além de Alexandre Santini, sócio de Flávio na loja de chocolates. Mais para o final, escreveu o número de “Vitor, advogado do Flávio” e “caso do Queiroz”. O telefone era de Victor Granado Alves. O telefone da mãe de Adriano da Nóbrega também estava lá.
O policial entregou a agenda a Márcia, que passaria a registrar os gastos com o tratamento do marido. As duas consultas custaram 1,4 mil reais. A cirurgia sairia por 60 mil reais e o tratamento na oncologia 9 mil reais. Já o custo da internação, a despesa hospitalar, mais 70 mil reais. Exames e hotel dos primeiros dias: 6 mil reais. Passagens de avião: 1,6 mil reais. Total: 148 mil reais. “Dinheiro recebido”: 174 mil reais. Ao lado, Márcia ainda registrou, entre parêntesis, “sobrou 26 mil reais”.
Na agenda, ela anotou outras despesas, instruções, senhas e orientações para administrar a casa no Rio. E o que dizer num eventual depoimento. Primeiro: “fazer ponte entre a população e o político”, já que “nosso deputado nem sempre podia estar com seus eleitores por diversos compromissos. E aí que nós acessores [sic] fazemos essa parte entre eleitor e deputado”. Segundo: “Éramos escolhido para representar o deputado em eventos importantes as quais ele não podia comparecer, anotando as demandas da população e dando feedback aos cidadãos (por exemplo)”. Terceiro: “Eu realizava pesquisas diversas que tenham como objetivo identificar as demandas dos cidadãos e constatar quais ações o político deve tomar para trazer benefício a população”. Um ano e meio depois essas agendas seriam apreendidas e as anotações, divulgadas.
EM 16 DE JANEIRO DE 2019, Danielle Nóbrega contou a Queiroz, por WhatsApp, que fora intimada pelo MP dias antes: “Eu já fui orientada. Ontem eu fui encontrar os amigos”. Mas a ex-mulher de Adriano também estava tensa. Reclamava das contas, demonstrava nervosismo. Danielle se queixou a uma amiga, “Paty”, que lhe disse que o ex tinha de dar um jeito de manter os repasses de dinheiro. “Isso [vaga no gabinete] foi ele [Adriano da Nóbrega] que arrumou, nem era uma coisa assim digamos legal”, escreveu Paty, lembrando que a amiga “podia ter se enrolado”. Em outra conversa, com “Meme”, Danielle admitiu: “Enfim amiga… por outro lado, eu não [sei] se comentei com você, mas eu já vinha um tempo muito incomodada com a origem desse $ na minha vida. Sei lá, Deus deve ter ouvido”. A Polícia Civil e o MP estavam prestando toda a atenção nas pessoas ligadas a Adriano Nóbrega, tanto que seis dias depois Danielle, ainda de pijama, foi acordada por uma operação de busca e apreensão. Era o começo da Operação Intocáveis. De lá, os policiais saíram com documentos e seu celular, com todas as mensagens trocadas com Queiroz.
Naquele dia, 22 de janeiro, treze pessoas foram denunciadas por assassinato, extorsão e outros crimes. Algumas foram presas. Nóbrega estava na lista dos que deviam ser presos, mas não foi localizado. Acabava, enfim, o segredo guardado até entre os promotores do MP do Rio: a ex-mulher do capitão Adriano da Nóbrega fora assessora de Flávio Bolsonaro por onze anos, e a mãe de Nóbrega, Raimunda, por outros dois anos e meio.1
Não era tudo. Flávio e Carlos Bolsonaro haviam prestado homenagens ao policial. Também veio à tona um discurso de 2005 do então deputado federal Jair Bolsonaro a favor do miliciano. Escondido no apartamento da família de Frederick Wassef, Queiroz teve que assumir a responsabilidade e admitir que fora ele o responsável pelas indicações de Danielle e Raimunda.
MÁRCIA AGUIAR PASSARIA o ano de 2019 viajando entre São Paulo e Rio. Quando falava com amigos, Queiroz tergiversava sobre sua localização, mas dizia sentir falta da vida que tinha antes. E, ignorando o perigo, tentava atuar nos bastidores. Em março, ele trocou mensagens com um conhecido e admitiu que, no fim de 2018, havia conversado com Bolsonaro sobre uma assessora lotada no gabinete de Carlos.
O presidente lhe teria falado de sua preocupação com o assédio dos jornalistas que batiam à porta de uma casa utilizada como escritório político em Bento Ribeiro, na Zona Norte. A caseira era Cileide Mendes, que trabalhava com a família desde 2001. Esteve lotada no gabinete de Carlos por quase vinte anos, mas sua ocupação, antes de cuidar daquela casa, fora como babá de Jair Renan e de Ivan, primeiro filho de Cristina. Na troca de mensagens, Queiroz disse que Bolsonaro lhe contara não ter outra alternativa a não ser tirar Cileide do esquema: “Na época, o Jair falou para mim que ele ia exonerar a Cileide porque a reportagem estava indo direto lá na rua e para não vincular ela ao gabinete. Aí ele falou: ‘Vou ter que exonerar ela assim mesmo’. Ele exonerou e depois não arrumou nada para ela não? Ela continua na casa em Bento Ribeiro?”. Ela havia sido demitida em janeiro, no que pareceu uma nova operação limpeza, já no auge das notícias sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro. Mesmo assim ficou morando no local por bastante tempo.
Queiroz não negava estar aflito com os rumos da investigação sobre Flávio. Meses depois, em junho, conversou com um amigo e queixou-se das restrições para circular, até porque não conseguia fazer seus trabalhos de espionagem para os Bolsonaro. Irritado, comparava sua situação à de Adélio, o homem que fez um ataque à faca contra Bolsonaro e estava encarcerado numa prisão de segurança máxima. Queiroz avaliava Adélio como um privilegiado por estar incomunicável no cárcere, o que impedia que as pessoas de confiança de Bolsonaro descobrissem um suposto mandante para o atentado.
Nas palavras de Queiroz, se ele não estivesse com a investigação do MP, ele e os homens de confiança iriam “desvendar” o caso: “Se eu não estou com esses problemas aí, cara, a gente de bobeira, não ia ter que ficar fazendo muita coisa, com eles lá em Brasília, podia estar aí igual a você aí, andando, entendeu, aí dava para investigar, infiltrar, botar um ‘calunga’ no meio deles, entendeu? Para levantar tudo. A gente mesmo levantava essa parada aí. É o que eu falo, pô, o cara lá [Adélio] tá hiperprotegido”. Na sequência, no mesmo desabafo, Queiroz se ressente de uma ajuda mais efetiva para acabar com o caso da rachadinha: “Eu não vejo ninguém mover nada para tentar me ajudar aí. Entendeu? Ver, tal. É só porrada, cara, o MP está com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente e não vem ninguém agindo”.
Depois do Guarujá, o
policial passou uns dias em São Paulo e, a partir de junho de 2019, instalou-se
num sítio de Frederick Wassef, em Atibaia. Pouca gente conhecia seu paradeiro —
sua família e os advogados de Flávio, Victor Granado, Luis Gustavo Botto Maia e
Frederick Wassef. Mas até no governo havia quem desconfiasse de que o
presidente e os filhos sabiam de tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12