sexta-feira, 10 de maio de 2024

Os Estados Unidos usaram a América Latina como laboratório

O coronel James Steele, do Exército dos EUA, fala com um oficial do Exército salvadorenho durante a Guerra Civil de Salvador, 1985. (Scott Wallace / Getty Images)

UMA ENTREVISTA COM GREG GRANDIN

TRADUÇÃO: LAIRA VIEIRA

UMA ENTREVISTA DE
Daniel Denvir

Nos últimos dois séculos, as intervenções imperialistas dos Estados Unidos tiveram um impacto devastador sobre os povos da América Latina. Essas intervenções também desempenharam um papel crucial na política interna do país, permitindo que novos blocos de poder se unissem e desenvolvessem suas estratégias.

O imperialismo dos EUA na América Latina teve um impacto devastador na região nos últimos dois séculos. Também moldou profundamente a política interna dos Estados Unidos durante o mesmo período. O historiador Greg Grandin discute essa história esquálida em seu livro “Empire’s Workshop: Latin America, the United States, and the Making of an Imperial Republic”.

De acordo com Grandin, a América Latina tem sido consistentemente o lugar onde os Estados Unidos desenvolveram suas estratégias de dominação no cenário mundial, ao mesmo tempo em que permitem que blocos de poder específicos sejam coerentes com o sistema político doméstico. Washington orquestrou ou forneceu apoio fundamental para dezenas de esforços bem-sucedidos de mudança de regime em estados latino-americanos. A intervenção dos EUA tem sido tão frequente que se tornou normalizada e quase invisível.

Grandin sentou-se com Daniel Denvir, apresentador do podcast Jacobin The Dig, em junho de 2021 para discutir os argumentos do Empire’s Workshop. Você pode ouvir a conversa aqui. O trecho a seguir foi editado para maior extensão e clareza.

DD - Como a longa história de intervenção dos EUA na América Latina moldou o desenvolvimento do império americano?

GG - Ao longo de dois séculos, a América Latina tem sido uma oficina para os Estados Unidos de várias maneiras. Em primeiro lugar, pôde experimentar coisas diferentes na região – não apenas novas táticas militares, mas também precedentes legais para justificar a intervenção militar. Foi o local onde os Estados Unidos projetaram pela primeira vez seu poder.

Quando pensamos na América Latina hoje, a vemos começando na fronteira EUA-México que foi desenhada no mapa após a guerra na década de 1840. Mas a América Latina já havia se estendido muito mais ao norte, cobrindo o espaço entre o rio Mississippi e o Pacífico. Antes do México conquistar sua independência, esse território fazia parte do Império Espanhol.

A região também serviu de oficina para os Estados Unidos em termos de formação de coalizões em momentos de realinhamento político, de Andrew Jackson a Franklin Delano Roosevelt (FDR) e Ronald Reagan. A América Latina foi o pivô não reconhecido dessas coalizões. Era o lugar onde diferentes constituintes se reuniam e desenvolviam um senso de si mesmos como uma classe ou como um bloco de classes.

“A América Latina foi o lugar onde os Estados Unidos projetaram pela primeira vez seu poder”.

Alguns cientistas políticos argumentam que os Estados Unidos conseguiram em grande parte conter o conflito social dentro de seu sistema partidário – além da Guerra Civil, é claro. Esse sistema evoluiu ao longo do tempo, com grandes realinhamentos que levaram ao poder novas coalizões políticas compostas por vários constituintes por meio de um dos dois partidos que governavam na época. Acho esse argumento interessante e explica muita coisa, mas seus defensores não olham para o papel da política externa.

Devemos lembrar que os Estados Unidos são uma nação excepcional. Nenhum outro país do mundo teve as mesmas oportunidades de expansão quase ilimitada, a começar pelo avanço territorial para oeste e sul. Isso deu origem à ideia de que os problemas sociais domésticos poderiam ser resolvidos pelo crescimento externo contínuo. A América Latina foi indispensável para isso.

DD - Que tipo de precedentes legais feios os Estados Unidos estabeleceram na América Latina?

GG Em 1854, por exemplo, um navio de guerra dos Estados Unidos destruiu Greytown, na Nicarágua. Isso fazia parte de uma luta competitiva com a Grã-Bretanha por uma rota de comércio internacional. Os tribunais americanos confirmaram a legitimidade do bombardeio como uma prerrogativa presidencial. Houve um acúmulo de precedentes como esse, muitas vezes trabalhados discretamente em tribunais de baixo escalão, que ainda são citados em nosso tempo.

Durante a guerra no México, os Estados Unidos tinham um pequeno exército permanente, por isso dependiam de voluntários. Qualquer estado poderia levantar uma força voluntária e estaria sob o comando nominal do exército. Esses voluntários cometeram atrocidades terríveis: estupros, destruição de igrejas, profanação de cemitérios. As coisas ficaram tão ruins que o general Winfield Scott pediu ao Congresso autoridade para estabelecer tribunais militares para julgar os perpetradores.

Isso significava que Scott tinha poder extraordinário para estabelecer esses tribunais em outro país, que estava sendo administrado pelo exército dos EUA. O governo dos EUA então citou esse precedente após o 11 de setembro como justificativa para manter combatentes inimigos em Guantánamo. O acréscimo de precedentes como esse deu ao executivo uma mão ainda mais livre quando se tratava de política externa.

DD - O que tornou a política de “Boa Vizinhança” de FDR um afastamento radical da história anterior da intervenção dos EUA na América Latina?

GGFoi uma revisão radical do direito internacional em geral, baseado na ideia de conquista e no direito das grandes potências de enviar tropas para proteger seus interesses contra quaisquer ameaças percebidas.

Desde o século XIX, uma corte de juristas, estadistas e teóricos políticos da América Latina argumentou que você poderia refazer o direito internacional nas Américas de modo que fosse baseado na presunção de solidariedade e interesses mútuos. Nessa perspectiva, a prioridade imediata era induzir os Estados Unidos a abandonar seu direito de intervir nos assuntos dos países latino-americanos sempre que quisesse. As autoridades americanas resistiram à essa agenda por muito tempo.

No entanto, na década de 1930, os EUA tiveram a experiência de estarem atolados em contra-insurgências invencíveis em países como o Haiti e a República Dominicana. Governava Cuba como uma neocolônia por meio da Emenda Platt, que Washington inseriu na Constituição cubana.

“O governo dos EUA citou um precedente da guerra do século XIX no México como justificativa para manter combatentes inimigos em Guantánamo”.

Essa emenda deu aos Estados Unidos o direito de intervir quando quisessem, o que fizeram várias vezes. Em 1939, ficou claro que essa abordagem não estava fazendo nada para consolidar o poder dos Estados Unidos na América Latina e, na verdade, estava radicalizando o hemisfério sul e gerando antagonismo em relação aos Estados Unidos.

Quando Roosevelt fez seu discurso de posse como presidente, em 1933, concentrou-se predominantemente na política interna, com apenas um parágrafo sobre relações exteriores. Ele introduziu a ideia de uma abordagem de “boa vizinhança” nesse parágrafo, não especificamente em relação à América Latina, mas como uma abordagem geral para o resto do mundo.

Não havia muitos lugares onde FDR pudesse colocar essa visão em prática. Os militaristas estavam em marcha na Ásia e os fascistas estavam ganhando força na Europa. Mesmo os aliados dos EUA na Europa estavam apertando seu controle sobre suas colônias. A administração Roosevelt voltou-se para a América Latina, e Cordell Hull, o secretário de Estado, foi a Montevidéu para a sétima Conferência Pan-Americana em novembro de 1933.

Hull era um democrata jacksoniano do Tennessee que lutou na Guerra Hispano-Americana em 1898. Ele estava acompanhado por Ernest Gruening, um editor do Nation que era um ferrenho anti-imperialista. Gruening instou Hull a aceitar o princípio da não-intervenção. Na conferência, Hull concedeu aos latino-americanos uma série de questões. Mais importante, ele disse que os Estados Unidos reconheceriam a soberania absoluta dos estados latino-americanos em seus assuntos internos e externos.

Roosevelt retirou todas as forças americanas da região e revogou a Emenda Platt em Cuba. Ele começou a tolerar um grau significativo de nacionalismo econômico em países como Brasil, México e Bolívia. Tudo isso criou uma enorme boa vontade e permitiu a Hull assinar uma série de acordos bilaterais de livre comércio.

Isso, por sua vez, ajudou os Estados Unidos a sair da Grande Depressão e se preparar para a Segunda Guerra Mundial. Esse processo de abertura dos mercados latino-americanos também permitiu a Roosevelt construir laços com um bloco corporativo em modernização, em torno de produtos farmacêuticos, energia e eletrônicos que se tornaram o lastro comercial da coalizão do New Deal.

DD - Que papel desempenhou a Revolução Mexicana e seus legados no desenvolvimento da política da Boa Vizinhança?

GG - A Revolução Mexicana foi a primeira revolta contra o capital dos Estados Unidos no que ficou conhecido como Terceiro Mundo. Isso resultou na aprovação da primeira constituição social-democrata do mundo, que estabeleceu direitos à educação, previdência social, pensões e assim por diante. O papel do Estado na economia mexicana se expandiu muito, com mais controle sobre os recursos naturais.

“A Revolução Mexicana foi a primeira revolta contra o capital dos Estados Unidos no que ficou conhecido como Terceiro Mundo”.

Por muito tempo, os governos dos EUA se opuseram completamente à definição de propriedade social da Constituição Mexicana e seu entendimento muito robusto de domínio eminente que dava ao estado autoridade para nacionalizar recursos. Mas Roosevelt aceitou porque não tinha escolha. Ele precisava do México durante a Depressão e como aliado na Segunda Guerra Mundial, por isso não se opôs à nacionalização das participações mexicanas da Standard Oil e de outros ativos econômicos dos EUA.

O México também se tornou uma inspiração para alguns dos elementos mais radicais na coalizão do New Deal. Rexford Tugwell e o Sindicato dos Meeiros foram ao México porque queriam ver como seria a verdadeira reforma agrária. Eles começaram a sugerir que Roosevelt poderia seguir uma abordagem semelhante nos Estados Unidos, embora isso nunca fosse acontecer.

DD - A política de boa vizinhança de FDR não durou muito depois de sua morte, não é?

GG Imediatamente após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, havia muita esperança na expansão da social-democracia. Havia também uma crença generalizada de que você poderia promover o desenvolvimento quebrando o poder da classe fundiária, que extraía riqueza por meio do controle monopolista da terra e do trabalho.

Se esse monopólio fosse quebrado, você aumentaria o poder de compra dos camponeses que poderiam então comprar produtos feitos localmente, fortalecendo a burguesia industrial progressista.

No entanto, as mudanças geopolíticas mais amplas no final dos anos 1940, com o início da Guerra Fria, quebraram esse vínculo entre democracia e desenvolvimento aos olhos dos planejadores americanos. Eles estabeleceram uma nova equação entre desenvolvimento e ordem. Os EUA não estavam mais encorajando a democratização ou a sindicalização dos trabalhadores.

A América Latina nunca teve sua própria versão do Plano Marshall. Na Europa, as elites em processo de industrialização tinham acesso a quantidades maciças de capital público e não sentiam que era necessário suprimir os sindicatos, ou a esquerda não comunista para se desenvolver.

Na América Latina, por outro lado, eles foram instruídos a obter o dinheiro do capital privado e de empréstimos. Nesse contexto, a prioridade era reprimir o trabalho organizado e todas as reivindicações de reforma social. Não havia espaço estrutural para os partidos social-democratas ou mesmo para os democratas-cristãos.

A Revolução da Guatemala, em 1944, foi um exemplo perfeito da primavera democrática continental da qual venho falando. Jacobo Árbenz foi eleito em 1950 com o mandato de estender os ideais da democracia política ao âmbito social.

Isso significava tentar afirmar o papel do setor estatal no campo, onde a United Fruit Company administrava suas plantações como propriedades feudais. Árbenz aprovou uma lei de reforma agrária que expropriou as terras da United Fruit com base na avaliação da própria empresa para fins fiscais.

A CIA colocou em jogo uma operação para derrubar Árbenz. Baseou-se em todos os avanços em guerra psicológica e técnicas para disseminar desinformação. O objetivo principal era promover a ideia de que havia uma oposição interna a Árbenz quando não havia. Eles criaram uma força mercenária de militares descontentes em Honduras, e informaram ao exército nacional guatemalteco que, se os mercenários falhassem, os Estados Unidos iriam intervir diretamente.

Ao tentar isolar a Guatemala, os Estados Unidos não romperam com o multilateralismo. Conseguiu que a Organização dos Estados Americanos sancionasse a Guatemala sob o pretexto de que estava ameaçada por uma agressão comunista externa. Árbenz era extremamente popular, assim como a reforma agrária, mas o golpe foi bem-sucedido, seguido por décadas de repressão brutal.

DD - Como os eventos na Guatemala influenciaram a revolução em Cuba no final da década?

GG Quando a revolução democrática da Guatemala começou, os esquerdistas – incluindo os do Partido Comunista – ainda viam os Estados Unidos como um modelo potencial de desenvolvimento e ainda pensavam que poderiam trabalhar com a burguesia progressista. As políticas de reforma agrária visavam fortalecer a burguesia progressista. Eles ainda pensavam que poderiam criar coalizões de classe nacionais para realizar reformas social-democratas.

“A ideia dos Estados Unidos como um agente libertador e revolucionário no mundo, está profundamente arraigada na autoconcepção do país”.

Em 1959, cinco anos após o golpe contra Árbenz, os líderes revolucionários cubanos tinham uma visão muito mais radical da justiça econômica. Fidel Castro também estava melhor preparado para o que os Estados Unidos fariam em resposta.

Eles repeliram a invasão da Baía dos Porcos, que levou à uma onda de radicalização em todo o hemisfério sul e deu a Castro a condição de lendário como alguém que poderia derrotar o Golias dos EUA, ao contrário de Árbenz.

DD - A administração Kennedy apoiou contra-insurgências na América Latina, mas também lançou a Aliança para o Progresso, que prometia bilhões de dólares em ajuda ao desenvolvimento para ajudar nas reformas e acabar com as concentrações extremas de poder. Havia forças contraditórias ou blocos de poder em ação no governo dos Estados Unidos que deram origem a essas políticas?

GG A ideia dos Estados Unidos como um agente libertador e revolucionário no mundo, está profundamente arraigada na autoconcepção do país. A campanha presidencial de John F. Kennedy foi baseada na restauração de um senso de propósito, parte do qual envolvia abraçar essa retórica revolucionária.

Foi também especificamente em resposta a Castro e à inspiração que sua revolução ofereceu ao resto do hemisfério sul. Kennedy disse que iríamos completar a revolução das Américas. Ao mesmo tempo, porém, os Estados Unidos se comprometeram a fortalecer a segurança interna de Estados como os da América Latina.

A Aliança para o Progresso promoveu tentativas de reforma agrária no Chile e até, em certa medida, na Guatemala e em El Salvador. Mas também fortaleceu os serviços de segurança nos países latino-americanos, profissionalizando-os e fazendo-os trabalhar de forma coordenada, compartilhando informações.

À medida que a polarização política crescia durante os anos 1960 e 1970, com muitos da esquerda decidindo seguir o caminho cubano da insurgência, viu-se uma radicalização da direita e o surgimento de esquadrões da morte.

Houve uma primeira rodada de golpes na década de 1960 em países como El Salvador, Honduras, República Dominicana e Brasil, seguida de uma segunda rodada na década de 1970. O segundo turno concentrou-se especialmente no Cone Sul e na Cordilheira dos Andes: Bolívia, Chile, Uruguai e Argentina.

Os golpes de primeiro turno visavam contrariar a influência de Cuba ou qualquer possível simpatia por Cuba, e começar a fortalecer as capacidades repressivas desses Estados sob a rubrica de uma doutrina de segurança nacional. Mas desencadearam um ciclo de radicalização e repressão, com insurreições em vários países. A segunda rodada foi a culminação desse ciclo, com Estados de esquadrões da morte de pleno direito chegando ao poder.

A segunda rodada de golpes levou o fortalecimento das agências de segurança nacional ao nível internacional por meio da Operação Condor. Esse foi o período em que vimos as piores formas de violência, com desaparecimentos e massacres.

No final da década de 1970, a América do Sul estava bloqueada, com um país após o outro governado por ditaduras de direita apoiadas pelos Estados Unidos. O eixo do conflito então se deslocou para a região da América Central.

DD - Voltando um pouco a esse ponto, por que Richard Nixon e Henry Kissinger achavam o governo chileno de Salvador Allende tão ameaçador?

GG - Isso estava ocorrendo no contexto mais amplo da briga com a União Soviética. Os Estados Unidos estavam tentando se livrar do Vietnã. Isso envolvia em parte o reconhecimento da ideia de o mundo ser dividido em esferas de influência para as duas superpotências. O Chile estava firmemente dentro da esfera de influência dos Estados Unidos, então o governo de Allende era um risco para tal.

“A ideia de um país como o Chile colocar no poder um autodenominado marxista era ameaçadora porque era mais difícil de desacreditar”.

Castro havia usado métodos autoritários para salvar a Revolução Cubana porque queria evitar o destino de Árbenz. Mas era mais difícil desacreditar alguém eleito democraticamente, como Allende.

Além disso, esse era um modelo que talvez não se limitasse ao Chile ou à América Latina. Os Estados Unidos estavam preocupados com o que acontecia na Europa Ocidental, com o aumento do apoio ao Partido Comunista Italiano e a revolução em Portugal.

A derrubada de Allende foi um aviso para os comunistas europeus de que, embora os Estados Unidos pudessem aceitá-los como sócios minoritários em uma aliança de centro-esquerda, eles nunca seriam aceitos como o principal partido de um governo europeu.

O Chile foi um caso interessante porque seu apelo foi em direções diferentes. Por um lado, foi um ator fundamental no Terceiro Mundo, com discussões em torno da ideia de uma nova ordem econômica internacional. Por outro lado, teve uma ressonância profunda para os eurocomunistas que estavam se distanciando da União Soviética e queriam trabalhar nas estruturas políticas estabelecidas da Europa Ocidental.

Os defensores de uma nova ordem econômica internacional queriam estabelecer um preço mínimo básico de quatorze commodities. Eles também queriam socializar os direitos de propriedade intelectual e a tecnologia, para ajudar o Terceiro Mundo a desenvolver e criar uma indústria de valor agregado. O neoliberalismo, é claro, fez exatamente o oposto, promovendo uma corrida para baixar os preços das commodities enquanto consolidava os direitos de propriedade intelectual e revertia a nacionalização.

DD - Que papel uma forma revigorada de imperialismo na América Central desempenhou na ascensão de Ronald Reagan e da Nova Direita durante os últimos anos da Guerra Fria?

GG A embaixadora de Reagan na ONU, Jeane Kirkpatrick, disse que a América Central era o lugar mais importante do mundo naquela época. Os comentaristas tiveram dificuldade em entender o que ela quis dizer com isso. Foi realmente mais importante do que a Europa ou o Oriente Médio, por exemplo?

Mas, de certa forma, a América Central foi tão importante para o governo Reagan precisamente por causa de sua insignificância. Não tinha recursos que os Estados Unidos não pudessem dispensar e não havia armas nucleares lá. Foi diretamente no quintal dos EUA. Reagan poderia dar carta branca aos conservadores do movimento sem temer as consequências.

Neoconservadores como Kirkpatrick argumentaram que os Estados Unidos deveriam retomar o Terceiro Mundo. A América Central foi o primeiro lugar para eles fazerem isso, com uma retórica de militarismo moralizado. Havia um bloco de neoconservadores seculares como Kirkpatrick e Elliott Abrams com os “teocons” da direita religiosa que se mobilizaram para apoiar o anticomunismo na América Central.

A aliança reaganista se formou em torno das guerras na América Central. Havia mercenários trabalhando com os Contras na Nicarágua e evangélicos fornecendo-lhes ajuda humanitária que viam isso como uma cruzada militar. Isso levou a um espessamento das relações entre as diferentes partes da aliança.

Assim que os republicanos voltaram ao poder sob Reagan, os militaristas e os teóricos da contra-insurgência que fracassaram no Vietnã, viram em El Salvador uma chance de acertar. Eles gastaram dinheiro em ações cívicas e reforma agrária, mas nada disso funcionou. No final das contas, os Estados Unidos e seus aliados salvadorenhos combateram os guerrilheiros da FMLN [Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional] até a paralisação por meio do uso maciço de violência — tortura, assassinatos e desaparecimentos em grande escala.

“A América Central foi tão importante para o governo Reagan precisamente devido a sua insignificância”.

A ideia de “ganhar corações e mentes” é uma forma de auto ilusão por parte dos teóricos da contra-insurgência. A repressão pura é o que acaba ganhando o dia. A linguagem da construção do estado e conquista de corações e mentes apenas permite que eles se convençam de que o que estão fazendo é nobre.

DD - Como o governo Reagan atacou oponentes domésticos e jornalistas críticos que desafiavam sua guerra suja na América Central?

GG - Em 1983, o governo Reagan criou o Escritório de Diplomacia Pública. Isso foi uma violação direta da Lei de Segurança Nacional, que proibia o uso de propaganda e desinformação ao público dos EUA. Era composto por agentes de operações psicológicas do Departamento de Defesa e usava empresas de publicidade alinhadas com os republicanos da Madison Avenue, para realizar pesquisas e grupos focais para que pudessem descobrir qual linguagem funcionaria bem com a opinião pública.

Se alguém relatasse uma história negativa sobre o regime apoiado pelos Estados Unidos em El Salvador, a resposta não era necessariamente para tentar refutá-la, mas sim para jogar lama suficiente na água para que ninguém pudesse formar uma opinião clara sobre o que havia acontecido. Ao mesmo tempo, eles queriam aumentar o custo para os jornalistas de reportar histórias como essa.

Um repórter observou que, se ela quisesse fazer uma reportagem sobre o Exército salvadorenho ou os Contras, teria que gastar tanto tempo verificando os fatos que não valia a pena. Ela seria atacada imediatamente e, se errasse em algum detalhe da história, seria um desastre para sua carreira.

DD - Tendemos a pensar na direita religiosa dos EUA em termos de questões culturais domésticas, como aborto e direitos dos homossexuais. Mas você argumenta que a política externa foi uma vertente fundamental em sua história.

GG Os conservadores evangélicos eram profundamente hostis ao surgimento da teologia da libertação, que criticava o sistema social mantido pelo militarismo dos EUA por motivos religiosos, argumentando que a motivação do lucro era um mecanismo amoral que destruía a solidariedade humana. A direita religiosa insistia que o livre mercado não era amoral – ele refletia a graça de Deus.

Isso coincidiu com o esforço dos conservadores seculares de apresentar o mercado como um lugar de criatividade e realização. Um foco na oposição à teologia da libertação uniu essas duas formas de conservadorismo. A projeção do reaganismo era reabilitar o mercado capitalista e o poder dos EUA em termos morais.

DD - A força Contra apoiada por Reagan na Nicarágua é mais lembrada hoje por causa do escândalo Irã-Contra. Os democratas trataram o Irã-Contra como uma questão de processo doméstico: o governo Reagan infringiu a lei ao enviar ajuda aos Contras depois que o Congresso o impediu de fazê-lo, usando o dinheiro gerado pela venda secreta de mísseis ao Irã. Por que eles se recusaram a confrontar o militarismo de Reagan em termos mais fundamentais?

GG Embora ainda houvesse um caucus de paz substancial dentro do Partido Democrata, o establishment democrata basicamente concordou com a suposição de que os sandinistas na Nicarágua eram um problema que precisava ser contido e era direito dos Estados Unidos fazer isso.

Há um ótimo vídeo, no YouTube, que você pode assistir do senador George Mitchell dando uma palestra para o tenente-coronel Oliver North. Tem sete minutos de duração e North não diz uma palavra. Ele está sentado lá com o peito cheio de medalhas, o queixo duro como pedra e o corte de cabelo curto. Mas logo de cara, Mitchell basicamente admite que os sandinistas eram um problema e era preciso encontrar maneiras de lidar com eles. É um exemplo de como você pode ganhar uma discussão sem dizer uma palavra.

“A ideia de “ganhar corações e mentes” é uma forma de autoilusão por parte dos teóricos da contra insurgência”.

Se você assistir a esse vídeo, verá que o establishment do New Deal está tão exausto que pode falar e falar sem realmente dizer nada, enquanto a coalizão ascendente de Reagan está tão confiante que não precisa falar nada. Por compartilharem amplamente os pressupostos do anticomunismo da Guerra Fria quando se tratava da Nicarágua, os democratas nunca foram atrás de Reagan no conteúdo de sua política, não nos aspectos processuais.

Irã-Contras não foi um escândalo; era a festa de debutante da Nova Direita. Se você quer entender a Nova Direita, não há lugar melhor para olhar do que o Irã-Contras em todos os seus diferentes aspectos. Quando Dick Cheney escreveu o relatório da minoria na Câmara, ele apresentou uma teoria do poder executivo que foi considerada ultrajante em 1987, mas que mais tarde seria reabilitada após o 11 de setembro sob George W. Bush como senso comum.

Sobre os autores


é o autor de All-American Nativism (a ser lançado em breve pela Verso Books), um escritor residente no The Appeal, e anfitrião do "The Dig" na Jacobin Radio.


ensina história na Universidade de Nova York. Seu mais novo livro, "The End of the Myth: From the Frontier to the Border Wall in the Mind of America", será publicado em março. Ele é o autor de, entre outros livros, Fordlandia, pré-selecionado para o Prêmio Pulitzer e o National Book Award, The Empire of Necessity, que ganhou os prêmios Bancroft e Beveridge na história americana, Shadow de Kissinger e Empire's Workshop.

 

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