sexta-feira, 24 de maio de 2024

Raisi liderou a iniciativa rumo à 'nova ordem mundial' Rússia-China-Irã


Raisi em visita a instalação militar iraniana em fevereiro de 2024. Foto Reuters (Foto: Reuters)

 "Tomemos um momento para examinar o crítico caminho rumo a uma nova ordem mundial que ele ajudou a forjar"

Pepe Escobar
brasil247.com/

A visão voltada para o Leste do Presidente iraniano Ebrahim Raisi foi de importância fundamental para o avanço no vínculo estratégico Moscou–Teerã–Pequim e para abrir à força o caminho rumo à institucionalização da multipolaridade.

Em meio à tristeza e à dor da perda do Presidente do Irã Ebrahim Raisi, tomemos um momento para examinar o crítico caminho rumo a uma nova ordem mundial que ele ajudou a forjar.

Nos quase três anos desde que Raisi ascendeu à presidência do Irã, a integração eurasiana e o impulso rumo à multipolaridade vêm sendo conduzidos fundamentalmente por três atores principais: Rússia, China e Irã.

Que, nada acidentalmente, são as três maiores "ameaças existenciais" ao poder hegemônico.

Às 10 horas da noite deste último domingo, em Moscou, o Presidente russo Vladimir Putin convidou o embaixador do Irã em Moscou, Kazem Jalali, para sentar-se à mesa em uma reunião convocada de improviso, onde estava presente a nata da Equipe de Defesa da Rússia.

O convite teve um alcance que foi muito além das míopes conjecturas da mídia, sobre se a morte extemporânea do Presidente do Irã se deveu a um "desastre acidental" ou a um ato de sabotagem. Ele foi resultado dos frutos do incansável trabalho de Raisi visando a posicionar o Irã como um país voltado para o Leste, forjando corajosamente alianças estratégicas com as grandes potências da Ásia, ao mesmo tempo em que apaziguava as relações de Teerã com antigos inimigos regionais.

A intensificação da integração eurasiana

Voltando àquela mesa de domingo, em Moscou. Todos estavam lá, do Ministro da Defesa Andrei Belousov e o Secretário do Conselho de Segurança Sergei Shoigu, até o Chefe do Estado-Maior Valery Gerasimov, o Ministro das Emergências Aleksandr Kurenkov e o Assessor Especial do Presidente, Igor Levitin.

A principal mensagem foi que Moscou está com Teerã para o que der e vier. E que a Rússia apoia por inteiro a estabilidade e a continuidade do governo do Irã que, de qualquer modo, já estão plenamente garantidas pela constituição do Irã, com suas detalhadas medidas contingenciais tratando de uma transição de poder pacífica, mesmo sob circunstâncias incomuns.

Como estamos em pleno modo Guerra Híbrida, aproximando-nos de uma Guerra Quente na maior parte do planeta, os três estados-civilização que vêm dando forma a um novo mundo não poderiam ser mais evidentes.

Rússia–Irã–China (RIC) são estão interligados por amplas parcerias estratégicas bilaterais, além de serem filiados aos BRICS e à Organização de Cooperação de Xangai (OCX), e seu modus operandi foi claramente aberto ao exame da Maioria Global na crucial cúpula de Putin com o Presidente chinês Xi Jinping, na semana passa em Pequim.

Em suma, nenhuma dessas três potências asiáticas permitirá que os outros dois parceiros sejam desestabilizados pelos suspeitos de sempre.

Um legado do mais alto brilho

O falecido Presidente Raisi e seu principal diplomata, o Chanceler Hossein Amir-Abdollahian, deixam um legado do mais alto brilho.

Sob sua liderança, o Irã se tornou membro dos BRICS, membro pleno da OCX e um interessado importante na União Econômica Eurasiana (UEEA). Essas são as três principais organizações multilaterais que vêm forjando o caminho rumo à multipolaridade.

A nova iniciativa diplomática do Irã alcançou atores importantes do mundo árabe e da África, da Arábia Saudita, Kuwait e Egito até Líbia, Sudão e Djibouti. Teerã, pela primeira vez, conduziu uma sofisticada operação militar contra Israel, disparando uma bateria de drones e mísseis partindo do território iraniano.

As relações entre Irã e Rússia subiram de patamar na cooperação comercial e militar-política. Dois anos atrás, Putin e Raisi concordaram com um tratado bilateral amplo. A minuta do documento-base foi agora concluída e será assinada pelo próximo presidente do Irã, expandindo ainda mais a cooperação.

Fui informado por um membro da delegação iraniana no ano passado, em Moscou, que quando foi perguntado aos russos o que poderia ser discutido, eles responderam: "Vocês podem nos perguntar qualquer coisa". E vice-versa.

Portanto, todas as implicações entrelaçadas da guinada estratégica "Olhar para o Leste" de Raisi, associadas ao "pivotar para a Ásia" anterior da Rússia, vêm sendo tratadas por Moscou e Teerã.

O Conselho de Ministros de Relações Exteriores da OCX irá se reunir nas próximas terça e quarta em Astana, como preparação para a cúpula a ser realizada em julho, na qual Belarus irá se tornar membro pleno. Um outro fato de importância crucial é que o gabinete da Arábia Saudita também aprovou a decisão de Riad vir a se juntar à OCX, o que possivelmente ocorrerá no próximo ano.

A continuidade do governo iraniano será bem representada em Astana com a presença do Chanceler interino Ali Bagheri Kani, que era o número dois de Amir-Abdollahian. Não há a menor dúvida de que ele entrará na luta ao lado do Chanceler russo Sergey Lavrov e de seu colega chinês Wang Yi, a fim de discutir as muitas camadas da jornada multipolar.

Uma declaração hipersônica

As linhas gerais da carta descrevendo as implicações do novo sistema foram reveladas na semana passada na surpreendente declaração conjunta divulgada no evento-marco que foi a cúpula Putin-Xi, em um surpreendente documento de dez capítulos e mais de doze mil palavras, no qual o termo "cooperação" apareceu nada menos que 130 vezes.

O documento pode ser corretamente interpretado como um manifesto conjunto hipersônico, que destrói de alto a baixo a artificial "ordem internacional baseada em regras" de Washington.

Uma seção se destaca em especial:

Todos os países têm o direito de escolher de forma independente seus modelos de desenvolvimento e sistemas políticos, econômicos e sociais com base nas condições nacionais e na vontade de seu povo; de se oporem à interferência nos assuntos internos de países soberanos; de serem contrário a sanções unilaterais e à "jurisdição de braço longo" sem base no direito internacional nem na autorização do Conselho de Segurança da ONU; e de se contraporem ao traçado de linhas ideológicas. Ambos os lados apontaram que o neocolonialismo e o hegemonismo são totalmente contrários à tendência de nossos tempos e conclamaram pelo diálogo entre iguais, pelo desenvolvimento de parcerias e pela promoção de intercâmbio e de aprendizado mútuo entre civilizações.

O Irã, dolorosamente sancionado há mais de quatro décadas, está agora aprendendo diretamente com a Rússia e a China sobre os esforços desses dois países de destruir as narrativas "desacopladoras", bem como os efeitos do tsunami das sanções ocidentais contra a Rússia.

Por exemplo, uma série de corredores ferroviários China–Europa agora são usados principalmente para enviar mercadorias chinesas à Ásia Central e reexportá-las para a Rússia.

Mas em meio a esse boom comercial, os gargalos logísticos também se multiplicam. Praticamente todos os portos europeus se recusam a aceitar quaisquer carregamentos vindos da Rússia ou dirigidos àquele país. E os maiores portos da Rússia continuam a ter problemas: Vladivostok não tem capacidade para navios de carga de grande calado, e São Petersburgo é demasiadamente distante da China.

De modo que o capítulo 3 da declaração conjunta Rússia–China coloca ênfase particular na "cooperação portuária e de transportes, incluindo o desenvolvimento de um maior número de rotas logísticas" e no aprofundamento da cooperação financeira, "inclusive com o aumento da participação das moedas locais nos serviços financeiros", e "o aumento da cooperação industrial, "incluindo áreas estratégicas tais como a fabricação de automóveis e barcos, fundição de metais e produtos químicos".

Tudo isso se aplica também à cooperação Rússia-Irã, como, por exemplo, no aperfeiçoamento do Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul (CITNS), em especial no trecho que vai de Astrakhan, no Cáspio, aos portos iranianos e, em seguida, descendo rumo ao Golfo Pérsico.

O Chanceler iraniano Bagheri Kani havia observado anteriormente que graças à "excepcional localização geopolítica" do Irã, que tem acesso ao Oeste Asiático, ao Golfo Pérsico, à região do Mar Cáspio e à Eurásia de modo geral, o país pode contribuir para o "crescimento econômico e o potencial econômico" de todos os atores regionais.

A visita de Putin à China, na semana passada, incluiu uma visita à riquíssima cidade de Harbin, situada no nordeste do país – que tem fortes laços geográficos e históricos com a Rússia. Uma gigantesca Exposição China–Rússia atraiu mais de cinco mil empresas comerciais. Não é irrealista imaginar uma igualmente bem-sucedida Exposição Rússia-Irã em um porto do Cáspio.

Um projeto prometeico

O que liga Rússia, China e Irã é, principalmente, uma recém-formulada estrutura projetada por Estados-Civilização Soberanos. O lamentável falecimento do presidente-mártir Raisi não irá alterar em nada o Grande Quadro.

Estamos em meio a um longo processo em que enfrentamos um ambiente condicionado por décadas de dor e medo. Esse processo ganhou uma imensa tração nestes últimos anos, a começar com o lançamento oficial das Novas Rotas da Seda, em 2013.

As Novas Rotas da Seda e a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) constituem um projeto prometeico que é tanto geopolítico quanto geoeconômico. Paralelamente, ocorreu a expansão gradual do papel da OCX como mecanismo de cooperação econômica. Aqui também, o Irã é um membro de primeira linha da ICR, da OCX e dos BRICS.

Após o golpe de Maidan, na Ucrânia, em 2014, a parceria estratégica Rússia–China começou a ganhar ímpeto. Logo em seguida, o Irã passou a vender praticamente toda a sua produção de petróleo para a China, ingressando na proteção do guarda-chuva nuclear chinês.

Então tivemos a humilhação do Império no Afeganistão. E a Operação Militar Especial na Ucrânia, em fevereiro de 2022. E a expansão dos BRICS, agora passando a englobar países do Sul Global que antes eram terreno ocidental.

Durante sua memorável visita a Moscou na primavera de 2023, Xi disse a Putin que "mudanças jamais vistas nos "últimos cem anos" viriam a ocorrer, e que ambos deveriam estar no comando dessas inevitáveis mudanças.

Esse, exatamente, foi o cerne de suas discussões da semana passada em Pequim.

O perfeitamente preciso bombardeio iraniano do ultraprotegido território israelense – como resposta ao ataque terrorista a seu consulado diplomático em um outro país – enviou uma mensagem inédita e meridianamente clara à Maioria Global: o poder do Hegêmona no Oeste Asiático está chegando ao fim.

Perder o Rimland é anátema para a geopolítica perfeitamente americana. A região tem que voltar a seu controle, já que os Estados Unidos sabem o quão importante ela é.

Uma nova direção

O Anjo da História, entretanto, aponta para uma nova direção – para China, Rússia e Irã como os novos Soberanos que vêm moldando o ressurgimento do Heartland.

Em termos concisos, esses três Soberanos possuem nível epistemológico, vontade, criatividade, capacidade organizacional, visão e as ferramentas de poder para levar a cabo um verdadeiro projeto prometeico.

Pode soar como um milagre, mas as atuais lideranças dos três estados compartilham esse mesmo entendimento e esse mesmo empenho.

Por exemplo, o que poderia ser mais atraente do que a possibilidade de o antigo negociador nuclear Saeed Jalili vir a ser o próximo presidente do Irã, juntando-se ao novo Chanceler Ali Bagheri Kani? No passado, Jalili foi tachado de demasiadamente "linha-dura" para o gosto ocidental, mas o que pensa o Ocidente deixou de ter tanta importância por estas paragens.

Após a grandiosa guinada de 180 graus em direção ao Leste e à multipolaridade efetuada por Raisi, bem diferente do reformismo do ex-presidente iraniano Hassan Rouhani, com suas equivocadas e fracassadas incursões ocidentais, Jalili talvez seja o homem certo para a próxima fase do Irã. E que elegantíssimo complemento ao duo Xi–Putin ele seria.

Tradução de Patricia Zimbres



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