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A filosofia da práxis é significativa hoje como a tentativa mais desenvolvida dentro do marxismo de refletir sobre as consequências da racionalização da sociedade sob o capitalismo
Este artigoexplica a filosofia da práxis de quatro pensadores marxistas, os primeiros Marx e Lukács, e os filósofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Marcuse. A filosofia da práxis sustenta que os problemas filosóficos fundamentais são, na realidade, problemas sociais concebidos abstratamente. Esse argumento tem duas implicações: por um lado, os problemas filosóficos são significativos na medida em que refletem contradições sociais reais; por outro lado, a filosofia não pode resolver os problemas que identifica já que só a revolução social pode eliminar as suas causas sociais.
Eu chamo isso de argumento “metacrítico”. Argumento que a metacrítica, nesse sentido, subjaz à filosofia da práxis, podendo ainda informar o nosso pensamento sobre a transformação social e filosófica. As várias projeções de tais transformações distinguem os quatro filósofos discutidos neste artigo. Eles também diferem no caminho para a mudança social. Eles desenvolveram o argumento metacrítico sob as condições históricas específicas em que se encontravam. As diferenças nessas condições explicam grande parte da diferença entre as teses, especialmente porque a filosofia da práxis está ancorada na circunstância histórica – daí decorre a resolução revolucionária mais ou menos plausível dos problemas quando estão escrevendo.
Introdução – metacrítica
Em 1844, Marx escreveu que “a filosofia só pode ser realizada pela abolição do proletariado e o proletariado só pode ser abolido pela realização da filosofia” (MARX, 1963, p. 59). Adorno comentou mais tarde: “a filosofia, que antes parecia obsoleta, continua viva porque se perdeu o momento de realizá-la” (ADORNO, 1973, p. 3). Qual o significado desse estranho conceito de “realização” da filosofia? O objetivo deste texto é esboçar uma resposta a essa questão, que está melhor desenvolvida em meu livro, intitulado The philosophy of praxis: Marx, Lukács, and Frankfurt School (A filosofia da práxis: Marx, Lukács e a Escola de Frankfurt)(2014).
Gramsci usou a expressão “filosofia da práxis” como denominação do marxismo em seus Cadernos do Cárcere. E ela passou a se aplicar às interpretações do marxismo que seguem o seu exemplo de situar todo o conhecimento num contexto cultural, ele próprio baseado em uma visão de mundo específica de classe. Gramsci chamou isso de “historicismo absoluto”, caracterizando assim o marxismo hegeliano da obra inicial de Marx, Lukács, Korsch, Bloch e da Escola de Frankfurt. Vou me referir a essa tendência como filosofia da práxis para distingui-la de outras interpretações do marxismo.
A filosofia da práxis sustenta que os problemas filosóficos fundamentais são, na realidade, contradições sociais abstratamente concebidas. Essas contradições aparecem como problemas práticos sem soluções, refletidos em dilemas culturais. A filosofia os trata como antinomias teóricas, enigmas insolúveis sobre os quais os pensadores lutam sem chegar a uma solução convincente ou a um consenso. Incluem as antinomias entre valor e fato, liberdade e necessidade, indivíduo e sociedade e, em última instância, sujeito e objeto. A filosofia tradicional vem a ser, portanto, teoria da cultura que não se sabe como tal. A filosofia da práxis se conhece como teoria cultural e interpreta as antinomias como expressões sublimadas das contradições sociais.
Esse argumento tem duas implicações: por um lado, os problemas filosóficos são significativos na medida em que refletem contradições sociais reais; por outro, a filosofia não pode resolver os problemas que identifica porque só a revolução social pode eliminar as suas causas. Como diz Marx em sua décima primeira tese sobre Feuerbach, “Os filósofos só interpretaram o mundo, de várias maneiras; a questão é transformá-la (MARX, 1967, p. 402). Mas, como veremos, a mudança prevista pela filosofia da práxis abrange tanto a natureza quanto a sociedade e isso cria novos e intrigantes problemas.
A versão mais desenvolvida desse argumento é a noção de Lukács das “antinomias do pensamento burguês”. Hegel afirmava que a tarefa fundamental da filosofia é superar as antinomias e conciliar seus polos. Lukács aceitou a visão de Hegel, mas argumentou que não se trata de uma tarefa especulativa. As antinomias decorrem das limitações da prática capitalista, de seu viés individualista e de sua orientação técnica. Lukács chamou o mundo criado por essa prática de “reificado”. As suas antinomias, pois, não podem ser resolvidas teoricamente, mas apenas por meio de uma nova forma de prática que abole a reificação. O seu argumento esclarece a contribuição anterior de Marx e explica a tentativa posterior da Escola de Frankfurt de criar uma “teoria crítica”.
Considere a “antinomia” entre valor e fato. A filosofia tem lutado contra essa antinomia desde que a razão científica substituiu a teleologia aristotélica. A maioria dos filósofos modernos tentou justificar racionalmente os valores morais, mesmo se não há mais lugar para eles na natureza. Os filósofos da práxis argumentam que esse procedimento é equivocado. O problema de fundo é a compreensão dominante da racionalidade e o correspondente conceito de realidade na sociedade capitalista. A ciência apresenta essas categorias filosóficas, mas elas têm origem social, ou seja, na estrutura das relações de mercado e no processo de trabalho capitalista.
É nesse contexto que os valores aparecem como opostos a uma realidade definida implicitamente pela obediência às leis econômicas indiferentes à humanidade. Lukács resume esse dilema: “Precisamente na expressão clássica e pura que recebeu na filosofia de Kant, permanece verdadeiro que o ‘dever’ pressupõe um ‘ser’ em relação ao qual a categoria ‘dever’ permanece inaplicável em princípio” (LUKÁCS, 1971, p. 160). Até agora o argumento parece relativista e reducionista, mas Lukács chegou à surpreendente conclusão de que uma transformação da realidade social pode alterar a forma de racionalidade e, assim, resolver a antinomia.
Eu chamo isso de argumento “metacrítico”. Eis que toma os conceitos abstratos de valor e fato, fundamenta-os em sua origem social e depois resolve sua contradição nesse nível. A aplicação dessa abordagem à antinomia fundamental do sujeito e do objeto é fundamental para todas as versões da filosofia da práxis. A discussão tem três momentos:
Primeiro, tem-se a dessublimação sociológica do conceito filosófico do sujeito: a partir de sua definição idealista como cogito transcendental, o sujeito é redefinido como um ser humano vivo e trabalhador. Esse movimento decorre da crítica original de Feuerbach à alienação da razão: “O que, para a religião, está no outro mundo, está neste mundo para a filosofia”. (FEUERBACH, 1966, p. 70) Para desalienar a razão filosófica, o verdadeiro sujeito deve ser descoberto por trás do véu teológico.
Segundo, é preciso conceituar de novo a relação do sujeito dessublimado com o mundo objetivo de acordo com a estrutura da relação sujeito-objeto cognitivo na filosofia idealista. Essa relação se resume ao conceito de identidade de sujeito e objeto que garante a universalidade da razão. Ela reaparece em muitos disfarces na filosofia da práxis, desde a interpretação ontológica das necessidades de Marx até o ” sujeito-objeto idêntico da história” de Lukács até a identidade atenuada implícita na noção de participação mútua dos seres humanos e da natureza na Escola de Frankfurt posterior.
Terceiro, resolver as antinomias que surgem nesse contexto projetando uma revolução nas relações entre os termos agora dessublimados. A revolução aparece, então, como um método filosófico no lugar dos métodos especulativos da filosofia moderna desde Descartes.
A metacrítica, nesse sentido, subjaz à filosofia da práxis, podendo ainda informar nosso pensamento sobre a transformação social e filosófica. As várias projeções de tais transformações distinguem os quatro filósofos que discuto neste artigo. Eles desenvolvem o argumento metacrítico sob as condições históricas específicas em que se encontravam. Diferenças nessas condições explicam grande parte da diferença entre os seus projetos, uma vez que a filosofia da práxis depende de uma circunstância histórica – a resolução revolucionária (mais ou menos plausível) das antinomias quando eles estão escrevendo sobre elas.
Filosofia da práxis em Marx
Os primeiros escritos de Marx propuseram pela primeira vez uma versão consistente da filosofia da práxis. Ele escreveu no início do movimento proletário, em uma sociedade atrasada, mas com uma cultura filosófica sofisticada, condições estas que favoreciam uma concepção amplamente especulativa do futuro. Ele projetou uma revolução total, transformando não só a sociedade, mas também a experiência e a natureza. Ele descartava a ciência moderna como alienada e prometia uma nova ciência unindo história e natureza: “Haverá”, argumentou, “uma única ciência” (MARX, 1963, p. 164). A qualidade bastante fantástica dessas especulações deu lugar a uma análise científica sóbria do capitalismo em trabalhos posteriores, nos quais o argumento metacrítico foi restringido à crítica da economia política.
O primeiro Marx buscou uma resolução das antinomias por meio da revolução. As suas concepções do sujeito como ser natural, da objetivação das faculdades humanas por meio do trabalho e da superação revolucionária da alienação capitalista correspondem aos três momentos da metacrítica. Nessa perspectiva, os Manuscritos de 1844 aparecem como uma ontologia historicizada com dimensão normativa. Prometem a “realização” da filosofia na realidade social.
O argumento de Marx começa com uma análise do lugar da revolução na filosofia política. A revolução havia sido justificada assim nos tempos modernos: a) com o argumento de que o Estado existente é um obstáculo à felicidade humana ou porque ele viola os direitos fundamentais. Estes são descritos como motivos “teleológicos” ou “deontológicos” para a revolução. Marx introduziu um fundamento deontológico original: as “exigências da razão”. O idealismo originalmente havia formulado essas demandas como a resolução das antinomias do pensamento e do ser, do sujeito e do objeto.
O esforço inicial desenvolveu o argumento em três etapas. Marx partiu da antinomia entre a cidadania moral no Estado burguês e a necessidade econômica na sociedade civil. Cidadão e homem são movidos por motivos completamente diferentes e conflitantes, um por leis universais, o outro por vantagem individual. Na primeira etapa da teoria, ele mostrou a importância de transcender essa oposição, mas não explicou como as necessidades podem ser harmonizadas e universalizadas para superar seu caráter competitivo. Em seguida, argumentou que o proletariado é o agente da revolução e, como tal, encarregado de resolver a antinomia do homem e do cidadão.
Mas esse argumento cria uma antinomia nova na teoria (marxista), posta também para a prática (proletária). O movimento proletário existente tem algo a ver com o projeto de Marx? Que tipo de motivação prática e material corresponderia aos objetivos filosóficos de Marx? A terceira fase do argumento respondeu a essas questões com uma desconstrução metacrítica da antinomia da razão e da necessidade.
A chave para a compreensão dos Manuscritos de Marx é a sua redefinição radical da necessidade como relação ontologicamente fundamental da realidade. Marx escreve: “Os sentimentos, as paixões etc. do homem não são meramente características antropológicas em sentido estrito, mas são verdadeiras afirmações ontológicas do ser (natureza)” (MARX, 1963, p. 189). Se a necessidade e não o conhecimento são fundamentais, as pretensões da filosofia idealista de derivar o ser do sujeito pensante são derrubadas.
Mas Marx não rejeitou simplesmente a formulação idealista. Em seu exposto ontológico, a necessidade não está acidentalmente relacionada aos meios naturais de satisfação, mas está essencialmente correlacionada com a natureza. A correlação é vivida no trabalho, que objetiva as faculdades humanas na natureza enquanto satisfaz necessidades. Esta é a “verdadeira” unidade de sujeito e objeto. E ela guarda semelhança em forma e função à unidade cognitiva de sujeito e objeto no idealismo.
A libertação do sujeito da necessidade da lei do mercado satisfaz, assim, as exigências da razão e fundamenta a crítica revolucionária de Marx à alienação do trabalho. As antinomias são superadas na história e não apenas a antinomia do homem e do cidadão que emergiu de seus primeiros ensaios sobre política, mas também a antinomia ontologicamente fundamental entre sujeito e objeto. “Assim, a sociedade se torna a união realizada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza” (MARX, 1963, p. 157)
Mas essa é uma afirmação plausível? O objetivo da filosofia idealista é demonstrar a unidade de sujeito e objeto, mostrando a constituição do objeto pelo sujeito. O que acontece com essa ambição se sujeito e objeto são redefinidos como seres naturais? No contexto da filosofia da práxis, isso dá origem a uma nova antinomia entre a sociedade e a natureza: um sujeito social vivo pode constituir a natureza? Os Manuscritos de Marx respondem que “sim”: a natureza é reduzida a um produto humano por meio do trabalho; quando o trabalho não pode fazer o serviço, através da sensação, entendida como socialmente informada e, portanto, constitutiva de uma dimensão especificamente humana do mundo objetivo: “O próprio homem torna-se o objeto”. (MARX, 1963, p. 161)
Mas certamente a natureza existia antes dos seres humanos e não depende deles para sua existência. A ciência natural estuda essa natureza independente que aparece para ela como realidade verdadeira. Se assim for, a história é um cantinho insignificante do universo e o ser humano é um fato meramente natural, sem significado ontológico.
Portanto, desde o início, o naturalismo é uma questão central para a filosofia da práxis. Marx desafia o naturalismo, argumentando que se se imagina a natureza independente dos seres humanos, imagina-se a si mesmo fora da existência. Em suma, a natureza independente dos seres humanos é um postulado sem sentido, não uma realidade concreta.
Marx rejeita, assim, a “visão do nada” como um resquício da noção teológica de um sujeito desencarnado. Ele defende o que chamo de “ateísmo epistemológico”. A sua ideia de natureza não é a da ciência natural moderna, que ele rejeita como uma abstração. Ele concebe a natureza como ela é vivida na necessidade, percebida pelos sentidos socializados e dominada pelo trabalho. Essa natureza vivida tem uma dimensão histórica que falta à natureza da ciência natural. Daí o apelo de Marx para a criação de uma nova ciência da natureza vivida.
O conceito de uma nova ciência só faz sentido se a própria ideia de conhecimento objetivo for transformada. Marx e mais tarde Lukács e a Escola de Frankfurt defendem uma nova concepção do que Horkheimer chama de “finitude do pensamento”. “Uma vez que é impossível aquele conceito extra histórico e, portanto, exagerado de verdade, que decorre da ideia de uma mente pura e infinita e, portanto, em última análise, do conceito de Deus, não faz mais sentido orientar o conhecimento que temos para essa impossibilidade e, nesse sentido, chamá-lo de relativo.” (HORKHEIMER, 1995, p. 244) O conhecimento surge sob um “horizonte finito”. Baseia-se no envolvimento socialmente situado do sujeito e não no desprendimento do objeto.
O conceito de reificação de Lukács
Embora a versão de Lukács da filosofia da práxis tenha semelhanças com a do primeiro Marx, ele foi influenciado principalmente pelas obras posteriores de Marx. O conceito de reificação é a mais importante inovação teórica de Lukács. Esse conceito sintetiza a ideia de racionalização de Weber com a crítica de Marx ao fetichismo das mercadorias e sua análise da relação do trabalhador com a máquina.
Embora Lukács geralmente evite a palavra “cultura”, com esse conceito ele de fato propõe o que chamaríamos de uma abordagem crítica da cultura do capitalismo. A crítica é articulada em termos extraídos do neokantismo e dos escritos lógicos de Hegel, mas a sua premissa mais básica vem do argumento marxista de que o capitalismo não pode compreender e gerenciar plenamente suas próprias condições de existência. Assim, o conceito de reificação põe-se como a base original para a teoria da crise capitalista.
Há muita confusão na literatura sobre o significado de reificação. Segundo sua etimologia, “reificação” é a redução das relações humanas às relações entre as coisas. A palavra “coisa”, nesse contexto, tem um significado específico: objeto de conhecimento factual e controle técnico. A reificação, tal como entende Lukács, generaliza a relação técnico-científica com a natureza como princípio cultural para a sociedade como um todo. Nesse sentido, a sociedade se torna constituída por meio de um padrão específico de crenças e práticas. A reificação não é, portanto, um estado mental, mas uma forma cultural que estrutura a sociedade e a consciência.
Eis como Lukács resume sua teoria. “O importante é reconhecer claramente que todas as relações humanas (vistas como objetos da atividade social) assumem cada vez mais a forma de objetividade dos elementos abstratos dos sistemas conceituais das ciências naturais e dos substratos abstratos das leis da natureza. Ademais, o sujeito dessa ‘ação’ também assume cada vez mais a atitude do observador puro desses processos – artificialmente abstratos –, ou seja, a atitude do experimentador” (LUKÁCS, 1971, p. 131). A reificação é, portanto, o princípio da inteligibilidade próprio do capitalismo. Não é um simples preconceito ou crença, mas a base construtiva de um mundo social.
Escrevendo em um momento em que a racionalização social invasiva ameaçava dominar a Europa, Lukács interpretou a análise de Marx da racionalidade econômica capitalista como paradigma e fonte da concepção moderna de ciência e tecnologia. As limitações econômicas do capitalismo aparecem como limitações da racionalidade em todas as esferas. Essas limitações têm a ver com o que Lukács chama de “formalismo”. O problema, argumenta Lukács, não está nessa razão científica formalista em si, mas em sua aplicação além dos limites da natureza, à sociedade como seu objeto apropriado.
A racionalidade econômica reificada é formal no sentido de que abstrai de conteúdos qualitativos específicos para determinações quantitativas, por exemplo, preço. A dialética forma/conteúdo é exemplificada pela contradição entre a forma econômica abstrata do trabalhador como vendedor de força de trabalho e o processo de vida concreto do trabalhador que transborda as fronteiras do conceito econômico.
“As diferenças quantitativas de exploração que aparecem para o capitalista na forma de determinantes quantitativos dos objetos de seu cálculo, devem aparecer para o trabalhador como as categorias decisivas e qualitativas de toda a sua existência física, mental e moral.” (LUKÁCS, 1971, p. 166)
A tensão entre forma e conteúdo não é meramente conceitual, mas leva à crise e à revolução. A teoria da reificação constrói assim uma ponte entre a teoria da crise de Marx e a intensificação das crises culturais e filosóficas da sociedade capitalista do início do século 20, todas as quais Lukács atribui aos efeitos do caráter formal da racionalidade moderna.
Lukács desenvolveu esse argumento por meio de uma história crítica da filosofia. O pensamento reificado, tal como se encontra em Kant, toma a relação técnico-científica com a natureza como modelo da relação sujeito-objeto em geral. Mas as leis científicas são abstraídas de objetos, tempos e lugares específicos. Se a racionalidade como tal é modelada na ciência, muito se perde com isso.
Com Kant generaliza-se a contradição entre forma e conteúdo. A racionalidade formal reificada dá origem a um conteúdo correlato que não pode abarcar plenamente. O conteúdo que não entra nos conceitos formais sem resquício aparece como a coisa-em-si. A antinomia do sujeito e do objeto divide o sujeito cognoscente da realidade última.
As três críticas de Kant à razão pura, à razão prática e ao juízo estético correspondem às três tentativas da filosofia clássica alemã de resolver as antinomias de um conceito formalista de racionalidade. Três exigências da razão emergem dessa “experiência filosófica”: o princípio da prática (somente um sujeito prático pode superar a antinomia da forma e do conteúdo); história como realidade (somente na história a prática é efetiva no nível ontológico); método dialético (a dialética supera a limitação da explicação racional às leis formais). Lukács organizou a sua exposição da filosofia pós-kantiana em torno da luta para atender a essas demandas a que o marxismo e somente ele, finalmente, atende.
Lukács argumentava que a dessublimação metacrítica do conceito de racionalidade no marxismo possibilita a resolução das antinomias da filosofia clássica alemã, das antinomias sociais como o conflito entre valor e fato, liberdade e necessidade, mas também da antinomia ontológica do sujeito e do objeto exemplificada pela coisa-em-si. As contradições são resolvidas pela revolução que, ao derrubar o capitalismo, põe fim ao reinado da forma reificada de objetividade da sociedade capitalista. A revolução, como crítica prática da reificação, é o terceiro momento da metacrítica; satisfaz as exigências da razão.
Mas o significado desse argumento é obscuro. O proletariado é um agente metafísico, um sujeito constituinte ao modo do idealismo, uma versão do ego transcendental, postulando o mundo existente? O filósofo neokantiano contemporâneo, Emil Lask, propôs uma teoria da lógica que ajudou Lukács a evitar essa conclusão absurda. Lukács baseou-se na distinção de Lask entre significado e existência para elaborar sua dialética social da forma abstrata e do conteúdo concreto.
Os sentidos fornecidos pela estrutura do capitalismo se impõem aos conteúdos da existência social. O proletariado medeia esses significados em um processo contínuo do qual faz parte. Mas, neste caso, Lukács parte de Emil Lask: a ação no nível do significado tem consequências no nível da existência. Forma e conteúdo devem ser entendidos juntos em sua relação em uma “totalidade”.
Lukács chama o proletariado de “sujeito-objeto idêntico” para o qual conhecimento e realidade são um só. Na consciência de sua condição reificada de indivíduos explorados, o proletariado se eleva acima dessa condição e transforma a si mesmo e à sociedade por meio da ação coletiva: “O autoconhecimento do trabalhador provoca uma mudança estrutural objetiva no objeto do conhecimento (…). Sob o manto da coisa havia uma relação entre os homens (…) sob a crosta quantificadora havia um núcleo qualitativo, vivo.” (LUKÁCS, 1971, p. 169) Eu chamo isso de um conceito “metodológico” de revolução. Não mostra a substância do proletariado nem vê a desreificação como a conquista de um estado de coisas final, não reificado. Ao contrário, as instituições e as relações sociais reificadas produzem sujeitos coletivos que contestam as formas reificadas a partir de dentro.
Essa teoria é uma fonte permanente de controvérsia. A discordância é especialmente relevante para as considerações de Lukács sobre a natureza e as ciências naturais, porque é aqui que a interpretação metafísica leva às consequências mais duvidosas. Argumento que Lukács é traído por suas referências retóricas ao idealismo, mas na verdade mantém uma visão dialética muito mais plausível. De fato, ele negou que a natureza “em si” seja constituída pela prática histórica. Isso é uma incoerência? Como, então, a revolução proletária pode resolver as antinomias se a natureza “em si” está além da história?
Lukács vivia em uma sociedade avançada na qual a ciência e a tecnologia desempenhavam um papel essencial; ele não podia prever a sua derrubada total como o primeiro Marx. Teve que encontrar uma versão mais sutil da resolução revolucionária da antinomia do sujeito e do objeto. A reificação é uma forma de objetividade, ou seja, uma condição a priori do sentido. Não se trata exatamente de um kantiano a priori, uma vez que é encenado na realidade social por seres humanos, e não por um sujeito abstrato que nunca pode ser um objeto. No entanto, opera no nível da inteligibilidade do mundo, mesmo desempenhando um papel material nas atividades práticas que o constituem. Transpor a antinomia do sujeito e do objeto para esse nível torna possível a sua reconciliação em unidade.
Nesses termos, o sujeito não precisa postular a existência material da natureza para superar a antinomia. Ao contrário, a questão é reformulada em termos da relação do sujeito com o sistema de significados em que o mundo é vivido e encenado. Essa relação assume duas formas diferentes que são, na verdade, “métodos”, tanto cognitivas quanto práticas. O que Lukács chamou confusamente de método “contemplativo” o da ciência natural que postula fatos e leis reificados. A ciência é contemplativa não porque é passiva, mas no sentido de que constrói o mundo como um sistema de leis formais que não podem ser mudadas por uma prática decodificadora. A reificação da natureza é, portanto, insuperável.
O caso é diferente para as instituições sociais que podem ser transformadas ontologicamente pela ação humana. A reificação da sociedade não se constitui como um destino inevitável. As instituições sociais podem ser transformadas ontologicamente pela ação humana que, ao modificar seu significado, altera seu funcionamento real. A institucionalização dessa “unidade entre teoria e prática” criaria um tipo de sociedade nova, a qual Lukács (muito brevemente) descreve da seguinte forma:
O mundo que confronta o homem na teoria e na prática exibe um tipo de objetividade que, se bem compreendida, nunca precisa se prender a um imediatismo semelhante ao das formas encontradas anteriormente. Esta objetividade deve, portanto, ser compreensível como fator de mediação constante entre passado e futuro e deve ser possível demonstrar que é em toda a parte produto do homem e do desenvolvimento da sociedade. (LUKÁCS, 1971, p. 159). Se ele tivesse desenvolvido essa percepção, ele teria nos dado um conceito original de socialismo.
A distinção metodológica entre prática contemplativa e prática transformadora é central no argumento de Lukács. Ambas são sociais, embora de maneiras diferentes. Todas as formas de conhecimento dependem de construções apriorísticas historicamente específicas da experiência. A natureza da ciência natural é um produto de uma dessas formas culturais, a forma contemplativa, e assim pertence à história, mesmo quando postula um mundo de fatos e leis fora do alcance da prática histórica.
O seu método contemplativo produz verdades sobre a natureza, mas é ideológico em sua aplicação científica à sociedade como tal. Assim, Lukács incorporou a ciência à história por meio de sua forma apriorística de objetividade e não pela constituição de seu conteúdo fático. O dualismo entre natureza e sociedade é metodológico, não metafísico e situa-se dentro de um quadro social mais amplo. Satisfaz, assim, as exigências da filosofia da práxis.
A Escola de Frankfurt
Passo agora à Escola de Frankfurt. Tanto Adorno quanto Marcuse reconhecem a influência da teoria da reificação de Lukács. Os Manuscritos de 1844, de Marx, libertaram Marcuse de Heidegger, em 1932. A metacrítica da racionalidade é o elo mais significativo entre a Escola de Frankfurt e a filosofia anterior da práxis. Como o primeiro Marx e o primeiro Lukács, esses filósofos subscrevem um historicismo absoluto que fundamenta uma perspectiva crítica sobre todos os aspectos da cultura do capitalismo, incluindo sua ciência e tecnologia.
Essa crítica é descendente direta do conceito de alienação de Marx e da teoria da reificação de Lukács. Esses filósofos argumentam com Lukács que a construção capitalista da experiência nos tempos modernos é exemplificada na cosmovisão científica. As limitações dessa visão de mundo se manifestam nas formas de racionalização que caracterizam as sociedades modernas. No entanto, rejeitam muitas das noções-chave de Lukács, como o conceito de totalidade e a unidade entre teoria e prática. Assim, na Escola de Frankfurt, a tese histórica da filosofia da práxis serve principalmente para fornecer um ponto de vista independente para a crítica social.
Adorno e Marcuse escrevem na esteira da maré revolucionária que levou Lukács ao comunismo. Eles ainda acreditam na necessidade de uma resolução prática das antinomias da filosofia em um tempo em que se tornou elusiva. Isso deslocou o seu foco das consequências específicas do capitalismo para o problema mais geral da estrutura da experiência moderna, que não suporta mais a emergência da consciência de classe. A análise da experiência distorcida fornece apenas um vislumbre do que seria revelado por sua contraparte não distorcida. Como escreve Adorno, “a coisa verdadeira se determina por meio da coisa falsa” (BLOCH, 1988, p. 12).
Os filósofos da Escola de Frankfurt ainda acreditam que apenas o proletariado pode resolver as antinomias, mas também afirmam que ele não é mais um sujeito revolucionário. Com a Dialética do esclarecimento, o foco muda das questões de classe para a dominação da natureza e o poder dos meios de comunicação de massa. O conceito de razão instrumental nesse livro se assemelha ao conceito de reificação de Lukács, mas se desprende de suas raízes marxistas originais. Este texto critica a racionalidade instrumental em sua forma capitalista como poder desenfreado sobre a natureza e os seres humanos.
Os autores invocam o potencial da razão reflexiva para superar a reificação e reconciliar humanidade e natureza. Eles apelam para a “atenção plena (mindfulness em inglês ou Eingedenken em alemão) da natureza no sujeito” para um ponto de vista oposto à instrumentalidade distópica que agora penetra até mesmo na vida interior (ADORNO; HORKHEIMER, 1972, p. 40). Percebemos o que sentimos falta ao refletir sobre nosso próprio pertencimento à natureza como seres naturais.
Ao fazê-lo, rompemos com a imposição forçada das formas capitalistas à experiência e com a redução do sujeito a uma mera engrenagem da máquina social. A questão não é rejeitar a racionalidade e, com ela, a própria modernidade, mas libertá-la da arrogância da dominação. Isso liberará o potencial de “acordo entre seres humanos e coisas”, ou seja, a paz, que Adorno define como “o estado de diferenciação sem dominação, com os diferenciados participando uns dos outros” (ADORNO, 1998, p. 247). Isso é o mais próximo que Adorno chega ante à afirmação da unidade entre sujeito e objeto. Contudo, as perspectivas para isso ocorra se afiguram como sombrias.
Os conceitos posteriores de identidade e não-identidade de Adorno recapitulam a dialética forma/conteúdo da reificação. O pensamento identitário é formal e perde o conteúdo que é recapturado pela dialética da experiência concreta. A cultura moderna empobrece a experiência ao “identificar” o objeto vivido com os conceitos abstratos que a subsomem no pensamento e apagam conexões e potencialidades mais complexas. A dialética revela a “constelação” de contextos e conceitos que permitem ao pensamento alcançar a verdade do objeto.
Adorno propôs uma “crítica racional da razão” (ADORNO, 1973, p. 85). Ele reconheceu o papel essencial da razão instrumental enquanto resistia à forma exorbitante que assume sob o capitalismo. Por exemplo, ele argumentou que a máquina é ao mesmo tempo um instrumento opressor da dominação capitalista e contém uma promessa de bons serviços para toda a humanidade por meio de sua forma objetiva. “A qualidade dos meios, que torna os meios universalmente disponíveis, sua ‘validade objetiva’ para todos, implica ela mesma uma crítica à dominação da qual o pensamento surgiu como seu meio.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1972, pp. 29-30) Ele apresentou argumentos semelhantes em relação ao mercado e a outras instituições modernas.
Essa interessante abordagem crítica nunca é desenvolvida além de breves aforismos. O conceito de “viés formal” que introduzi em minha teoria crítica da tecnologia desenvolve esse aspecto do argumento de Adorno como método crítico (FEENBERG, 2014). A questão é preservar o conteúdo emancipatório das instituições modernas, ao mesmo tempo em que se faz a crítica de sua implementação tendenciosa sob o capitalismo. Mas, por rejeitar todas as perspectivas revolucionárias, a versão de Adorno da filosofia da práxis leva a um beco sem saída. E isso fica evidente no diálogo dele e de Horkheimer sobre teoria e prática de 1956 e na incompreensão de Adorno diante da Nova Esquerda.
A versão de Marcuse da filosofia da práxis é influenciada pelo conceito fenomenológico de experiência e pela promessa da Nova Esquerda. Ele vê os movimentos sociais dos anos 1960 e 70 não como um novo agente de revolução, mas como prefigurando um modo emancipatório de experiência. A revolução em uma sociedade avançada é pelo menos possível, em princípio, a partir de uma generalização dessa nova forma de experimentar o mundo. Isso é suficiente para que Marcuse construa uma versão final da filosofia da práxis na qual a transformação da ciência e da tecnologia desempenha um papel central.
A libertação da dominação da natureza e dos seres humanos é, no mínimo, uma possibilidade real no sentido de Hegel. Assim, ele chega a conclusões mais positivas do que Adorno, embora também ele não possa encontrar nenhum agente eficaz de mudança.
A ontologia “bidimensional” de Marcuse aproxima-se da crítica de Adorno à razão instrumental. Assim como o conceito de não-identidade de Adorno, a segunda dimensão de Marcuse contém as potencialidades bloqueadas pela sociedade existente. Mas Marcuse também se baseia no conceito fenomenológico de mundo da vida de Husserl e Heidegger e no conceito existencialista de “projeto” para elaborar sua crítica à tecnologia. Esses conceitos fenomenológicos são invocados para explicar a herança falha da ciência e da tecnologia e a promessa da Nova Esquerda. O projeto civilizatório do capitalismo está comprometido com a dominação tecnológica. Restringe cada vez mais a experiência e o conhecimento aos seus aspectos instrumentais.
A revolução requer uma transformação das condições “apriorísticas” advindas da experiência histórica. A experiência deve revelar potencialidades intrínsecas aos seus objetos. Marcuse refere-se a uma “verdade existencial” da experiência que se assemelha ao conceito de constelação de Adorno. Essa verdade é “uma síntese, remontando os pedaços e fragmentos que podem ser encontrados na humanidade e na natureza distorcidas. Esse material recolhido tornou-se domínio da imaginação, foi sancionado pelas sociedades repressivas na arte” (MARCUSE, 1972, pp. 69-70). Com a Nova Esquerda e sua “nova sensibilidade” emerge uma nova forma de experiência que prenuncia tal a priori transformado.
A metacrítica de Marcuse à ciência e à tecnologia as vinculava à sua fonte na exploração capitalista dos seres humanos e da terra. “A projeção da natureza como matéria quantificável… seria o horizonte de uma prática social concreta que seria preservada no desenvolvimento do projeto científico”. (MARCUSE, 1964, p. 160) Ele relacionou a crítica da Escola de Frankfurt à racionalidade instrumental reificada ao novo modo de experiência que aparece na Nova Esquerda e, mais tarde, no movimento ambientalista. Assim como a “racionalidade tecnológica” reificada é derivada do mundo da vida do capitalismo, também uma racionalidade radicalmente diferente é prometida por esse novo modo de experiência. Uma racionalidade dialética incorporará a imaginação como a faculdade por meio da qual a forma reificada das coisas é transcendida.
Se essa nova forma de experiência fosse generalizada, a natureza e os demais seres humanos seriam percebidos, não instrumentalmente, mas como sujeitos. Ao contrário da famosa crítica de Habermas, isso não implica familiaridade conversacional, mas sim o reconhecimento da integridade do objeto como uma substância com potencialidades próprias. Marcuse propõe uma “libertação da natureza”, “a recuperação das forças que aumentam a vida na natureza, as qualidades estéticas sensuais que são estranhas a uma vida desperdiçada em desempenho competitivo interminável” (MARCUSE, 1972, p. 60). Sujeito e objeto estariam unidos não em uma identidade idealista, mas por meio da participação compartilhada em uma comunidade da natureza.
Mas há uma ambiguidade: como essa visão se aplica à ciência e à tecnologia? Marcuse pretende “reencantar” a natureza ou sua teoria visa uma reforma da formatação tecnológica? Como os filósofos anteriores da práxis, Marcuse rejeita o naturalismo; a ciência pertence à história: “As duas camadas ou aspectos da objetividade (físico e histórico) estão inter-relacionados de tal forma que não podem ser isolados um do outro; o aspecto histórico nunca pode ser eliminado tão radicalmente que reste apenas a camada física ‘absoluta’.” (MARCUSE, 1964, p. 218) O “a priori” histórico subjacente à ciência moderna pode, assim, evoluir e mudar em uma futura sociedade socialista sob o impacto de um novo modo de experiência.
Mas a principal preocupação política de Marcuse não é com a ciência, mas com a tecnologia. A ciência não pode ser mudada com sucesso por novas leis ou arranjos sociais, tal como os meios de transformação tecnológica. O socialismo introduzirá novos fins tecnológicos que, “como fins técnicos, operariam no projeto e na construção da máquina, e não apenas na sua utilização”. Marcuse chama isso de “tradução de valores em tarefas técnicas – a materialização de valores” (MARCUSE, 1964, p. 234).
A revolução pode resolver as antinomias por meio da transformação tecnológica, deixando a transformação da ciência para a evolução interna das disciplinas científicas em um novo contexto social. Marcuse construiu, assim, uma versão final da filosofia da práxis que tentei desenvolver ainda mais em uma teoria crítica da tecnologia.
Filosofia da práxis hoje
Muito do pensamento de Marcuse se aplica a movimentos sociais contemporâneos, como o movimento ambientalista, que surgiu da Nova Esquerda. Esses movimentos abordam as limitações das disciplinas técnicas e dos projetos em termos de lições de experiência. Muitas vezes, essas lições são reformuladas com base um “saber contra” nas críticas às abordagens dominantes. As pessoas comuns – trabalhadores, consumidores, vítimas da poluição – são muitas vezes as primeiras a perceber e protestar contra perigos e abusos. Em outros casos, os usuários podem identificar potencialidades não exploradas dos sistemas que usam e abri-las por meio doa método hacker. Foi assim que a Internet voltou a funcionar como meio de comunicação.
Todos esses casos exemplificam praticamente a estrutura básica da metacrítica. A dessublimação da racionalidade toma a forma de uma crítica social das disciplinas técnicas racionais. O lugar da necessidade em Marx, da consciência em Lukács e da “nova sensibilidade” em Marcuse é agora ocupado pela experiência prático-crítica com a tecnologia no mundo da vida. Trabalho e classe, embora continuem a ser importantes, não são mais teoricamente centrais. O trabalho é um domínio do mundo da vida em que as pessoas têm experiências significativas que são trazidas em relação com as formas racionais da tecnologia por meio de vários tipos de engajamento e luta social. Mas há outras formas de abordar a tecnologia que se colocam em uma relação crítica com disciplinas técnicas e projetos.
A teoria crítica da tecnologia, portanto, rejeita a restrição de grande parte da teoria marxista à economia política, abordando criticamente toda a gama de reificações na sociedade moderna. Estes incluem não apenas a reificação da economia, mas as reificações administrativas e tecnológicas, bem como o consumo e a estetização capitalista da vida cotidiana. É certo que a administração, a tecnologia e o consumo foram moldados pelas forças econômicas, mas não são redutíveis à economia, nem a resistência nesses domínios é menos significativa para um movimento radical contemporâneo do que a luta trabalhista.
Os movimentos sociais contemporâneos não oferecem mais do que prefigurações de uma estrutura mais democrática da modernidade. A cautela de Marcuse ao avaliar a promessa da Nova Esquerda é igualmente apropriada hoje. A luta social pode nos ensinar algo sobre uma possível transformação da relação entre razão e experiência, mas isso está longe de prever uma revolução por simples extrapolação. No entanto, podemos ir além do pessimismo sistemático de Adorno com base nisso.
A questão de saber se a filosofia da práxis nessa nova forma pode resolver as “antinomias do pensamento burguês” se afigura como mais difícil. As ambiciosas reivindicações dos primeiros Marx, Lukács e Marcuse pressupunham que a dessublimação metacrítica das categorias filosóficas permitia uma resolução social das antinomias. Sujeito e objeto, que foram conceitualmente subjugados pelo idealismo, poderiam ser reunidos, quando redefinidos em termos sociológicos. Apesar de problemático, a aplicação deste esquema à natureza sempre foi essencial para este programa.
Uma exposição social da natureza e da ciência natural parece mais plausível hoje do que em qualquer momento do passado. Uma geração de trabalhos em Estudos de Ciência e Tecnologia refutou os pressupostos positivistas que separavam a racionalidade de seu contexto social. Mas se a racionalidade é concebida de outro modo nesse contexto, então a filosofia da práxis pode ser fundamentada em pesquisas empíricas. A passagem de uma crítica geral da razão como tal para uma crítica de suas diversas realizações em tecnologias e disciplinas técnicas renova a filosofia da práxis.
A filosofia da práxis é significativa para nós hoje como a tentativa mais desenvolvida dentro do marxismo de refletir sobre as consequências da racionalização da sociedade sob o capitalismo. Ele foi o primeiro a levantar questões filosóficas fundamentais sobre ciência e tecnologia de um ponto de vista crítico e dialético.
Atacou o capitalismo não em seus pontos fracos, como a desigualdade e a pobreza, mas em seus pontos mais fortes: a racionalidade de seus mercados e técnicas de gestão, sua ideia de progresso, sua eficiência tecnológica. Mas não rejeita a racionalidade como tal. Ao contrário, a filosofia da práxis ousou formular uma “crítica racional da razão” que identifica as falhas nas conquistas da modernidade e propõe uma alternativa racional em novas bases.
*Andrew Feenberg é professor de Filosofia da Tecnologia na Communication School of Simon Fraser University, no Canadá. Autor, entre outros livros, de Tecnologia, modernidade e democracia (Independently Published). [https://amzn.to/3VfXFnq]Tradução: Eleutério F. S. Prado.ReferênciasADORNO, T. Negative dialectics. Trans. E. B. Ashton. New York: Seabury, 1973.__________ “On subject and object”. In: Critical models: interventions and catchwords. Trans. H. W. Pickford. New York: Columbia University Press, 1998.ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialectic of enlightenment. Trans. J. Cumming. New York: Herder and Herder, 1972.BLOCH, E. “Something’s missing: a discussion between Ernst Bloch and Theodor Adorno on the contradictions of utopian longing”. In: The utopian function of art and literature. Trans. J. Zipes and F. Mecklenburg. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1988.FEENBERG, A. Lukács, Marx and the sources of critical theory. Totowa, NJ: Rowman and Littlefield, 1981.___________. The philosophy of praxis: Marx, Lukács and the Frankfurt School. London: Verso, 2014.FEUERBACH, L. Principles of the philosophy of the future. Trans. M. Vogel. New York: Bobbs-Merrill, 1966.HORKHEIMER, M. “On the problem of truth”. In: Between philosophy and social science. Trans. G. F.Hunter, M. S. Kramer and J. Torpey. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1995.LUKÁCS, G. History and class consciousness. Trans. R. Livingstone. Cambridge: MIT Press, 1971.MARCUSE, H. One-dimensional man. Boston: Beacon Press, 1964.________- “Nature and revolution”. In: Counterrevolution and revolt. Boston: Beacon, 1972.MARX, K. “Economic and philosophical manuscripts”. In: Karl Marx: early writings. Trans. and ed. T. B. Bottomore. London: C. A. Watts, 1963._________ “Theses on Feuerbach”. In: Writings of the young Marx on philosophy and society. Trans. and ed. L. Guddat and K. Guddat. New York: Doubleday, 1967.Veja neste link todos artigos de
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