Imagem: Brett Sayles
Por JOSÉ CELSO CARDOSO JR.; ALEXANDRE GOMIDE & RAFAEL RODRIGUES VIEGAS*
Para reforçar o caráter público da atuação estatal e combater a captura do Estado pelas corporações, diversas estratégias podem ser empregadas
O corporativismo é comumente definido como um sistema de representação, tramitação e implantação de interesses coletivos específicos junto ao poder público instituído. Não cabe aqui discorrer sobre suas variantes histórico-institucionais, isto é, se corporativismo estatal (organizado e tutelado pelo Estado), se corporativismo societal (animado e sustentado pelo pluralismo de interesses presentes na sociedade), bem como as combinações e derivações observadas empiricamente de ambos os modelos principais ao longo do tempo.[i]
Para os interesses desse artigo, basta dizer que o corporativismo se firmou, na história do capitalismo contemporâneo (basicamente após a Segunda Guerra Mundial), como uma forma politicamente legítima e relativamente eficaz de explicitação de atores e interesses e de canalização e resolução de conflitos, tanto na relação entre setores públicos e privados, como internamente ao setor público. No interior do setor público, isso se deu em função da grande diversidade de áreas de atuação estatal, burocracias, arenas decisórias, interesses e processos institucionais envolvidos.
Mas, em ambos os casos, para além das decisões de Estado emanadas das regras tradicionais da democracia representativa, o corporativismo (via atividades formais e informais de lobby, advocacy etc.) também veio a ser considerado uma forma – complementar e mais direta, ainda que menos regulada – de manifestação, negociação e intermediação de interesses organizados, corporativamente, visando influenciar e moldar processos decisórios em âmbitos governamentais.
Até aqui, então, nada demais, apenas as coisas como efetivamente são e funcionam nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mas, o problema começa quando, saindo da discussão formal e abstrata sobre conceitos e categorias de análise, chegamos ao chão da política como ela é.
E ela é dominada, no Brasil e alhures, por grupos e categorias mais poderosas e privilegiadas que outras. Essa hierarquia e assimetria de poder e de recursos (econômicos e simbólicos) distorce a legalidade, a legitimidade e os resultados concretos obtidos pelos diversos grupos organizados da sociedade (públicos e privados) que se relacionam corporativamente com o Estado. Distorce, em última instância, um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática, pluralista e inclusiva: a supremacia do interesse público.
Nesse sentido, sempre e quando o Estado age apenas como canal de transmissão dos interesses mais fortes e bem representados em seus circuitos decisórios, ele colabora para sacralizar as desigualdades econômicas e sociais presentes na sociedade, além de reforçar a assimetria de recursos e o poder (formal) de voto e (informal) de veto dos atores mais influentes. Ao fim e ao cabo, é a própria política em regimes formalmente democráticos que vai perdendo potência transformadora, já que por meio do “corporativismo predatório” vão-se consumando posições de poder de grupos já privilegiados e fragilizando-se as posições de atores com menos recursos e vozes menos potentes na sociedade e no interior dos governos.
Na prática, o Estado acolhe, tramita e implanta, diferenciadamente, decisões e políticas públicas, mais em favor de uns que de outros grupos sociais, pois os interesses dos grupos mais poderosos e bem-organizados tendem a estar sobrerepresentados, enquanto os interesses da maioria menos organizada ou não dotada dos mesmos recursos de poder podem ser negligenciados.
Pode-se dizer que o mesmo fenômeno acontece nas relações intraestatais, onde determinadas elites burocráticas conseguem não apenas impor e manter seus próprios privilégios de classe, como, por meio disso, conseguem afastar a sua atuação dos interesses e necessidades verdadeiramente públicas. Que isso seja a regra das corporações privadas já o sabemos, mas que tal comportamento seja a tônica de burocracias sobrerepresentadas no seio do setor público é um péssimo sinal de esvaziamento substantivo do republicanismo e da democracia em nosso país.
Um bom exemplo disso diz respeito aos privilégios remuneratórios que capitaneiam as ações de determinadas organizações públicas e seus sindicatos e associações de servidores. Ainda que sejam justas e legítimas algumas das reivindicações por recomposição salarial periódica, nada justifica privilegiamentos remuneratórios seletivos, concedidos para um subconjunto de carreiras públicas que já são, por sinal, as mais privilegiadas do ponto de vista salarial e institucional.
Grupos capazes de se mobilizar e fazer com que governos cedam às suas demandas têm, não raro, conseguido que seus pleitos sejam comumente atendidos, culminando em privilégios concentrados em setores ou carreiras públicas específicas. Isso ocorreu durante o governo de Jair Bolsonaro por meio de medidas que garantiram aumentos salariais reais aos militares, em simultâneo a muitos anos de restrições salariais dos servidores civis, mas vem ocorrendo também desde 2016 pela implantação de artifícios de remuneração variável para categorias civis que sempre estiveram no topo da pirâmide salarial no setor público, consolidando-se como uma elite de privilégios remuneratórios, dentre outras vantagens desproporcionais, que sacramentam desigualdades salariais imensas no interior do corpo funcional do Estado.
Em linha oposta a esta tendência recente de dispersão das remunerações no interior do setor público, é preciso ter claro que durante o segundo mandato presidencial de Lula (2007 a 2010) houve esforços no sentido de se conferir maior racionalidade e equidade remuneratória a diversas carreiras públicas da administração federal. A substituição de inúmeras formas de pagamento por meio de auxílios e benefícios pecuniários pelo pagamento de vencimentos por meio de subsídio foi um avanço nessa direção e impactou positivamente as remunerações e o desempenho institucional de uma gama ampla de carreiras, organizações e servidores públicos.[ii]
Desde então, vem acontecendo movimento por meio do qual organizações e carreiras mais poderosas no interior do Estado vêm conseguindo driblar a lógica do vencimento básico por subsídio, bem como o próprio teto remuneratório constitucional. Desta feita, a fragmentação remuneratória com heterogeneização da atuação de organizações e carreiras dentro do aparato estatal contribui para a perda de organicidade entre servidores, reinstitui conflitos distributivos indesejáveis no âmbito público e faz piorar o desempenho setorial e agregado do Estado, com consequências deletérias, ao fim e ao cabo, para a própria economia e sociedade nacional.
Prolifera, infelizmente, uma cultura burocrática em muitas categorias de servidores públicos que se veem como “donos” de nacos do orçamento público sobre os quais, alegam, são responsáveis por arrecadar ou fiscalizar. É como se agentes e organizações que devem se orientar pela supremacia do interesse público e pelo bem-estar da coletividade dissessem “nós atuamos para fiscalizar, arrecadar, ganhar ações judiciais, aumentar as taxas de determinado serviço e, por isso, temos direito a uma parte desse recurso”.
Esquecem o óbvio: todo servidor público já recebe uma remuneração previsível e adequada para desempenhar suas atribuições e os resultados eventualmente advindos do desempenho dessa atribuição, até por uma questão moral e em respeito ao ethos do serviço público, não deveriam ser percebidos como propriedade ou exclusividade daquele órgão e servidores que contribuíram para sua conquista, mas sim da sociedade. Espera-se dos servidores públicos ações e posturas em benefício do interesse público, colocando os interesses da sociedade acima de interesses pessoais ou de determinados grupos.
Se essa lógica da autonomização financeira for implantada e disseminada, como ficarão áreas nas quais as políticas públicas não visam arrecadação ou fiscalização, mas sim a prestação de serviços à população, tais como saúde, assistência social, educação e até mesmo segurança pública, dentre muitas outras? Se cada área de atuação governamental pleitear participação remuneratória na parte da arrecadação tributária para a qual contribuíram diretamente, a perda de autonomia relativa e discricionariedade dos governos sobre os múltiplos usos do fundo público tornará ainda mais baixa a capacidade de ação do Estado e inócua as tentativas recentes de legitimação política das eleições, do sistema representativo e da própria democracia.
Isso sem falar no evidente conflito de interesses quando o agente público recebe extras pecuniários por atuação que lhe é própria, vale dizer, que já consta do rol de atribuições específicas e precípuas dos respectivos cargos, e cujos indicadores e resultados possuem baixíssima transparência, praticamente nenhum controle social e apenas podem ser efetivamente coletados e aferidos pelos mesmos servidores e organizações que desses valores monetários se beneficiarão.
Alguns podem argumentar que basta uma boa regulamentação para que mecanismos do tipo atinjam o objetivo de aumentar a eficiência e a produtividade individual nas respectivas áreas. Isso não parece condizer com a realidade, pois uma vez implantadas no setor público, propostas de remuneração flexível tenderão a fazer aumentar – ao invés de diminuir – a insegurança financeira e a instabilidade emocional dos servidores afetados, deixando-os mais expostos a vivenciarem situações de assédio moral, captura externa, tentativas de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção ativa ou passiva no desempenho de suas funções.
Deste modo, ao invés de estimular um maior e melhor desempenho individual, ou incrementar a produtividade própria ou organizacional, medidas dessa natureza tenderão, na verdade, a acirrar a competição interna e a deteriorar as condições pessoais e coletivas de sanidade e salubridade no ambiente de trabalho.
No setor privado, a competição, disfarçada de cooperação, é incentivada por meio de penalidades e estímulos individuais pecuniários (mas não só) no ambiente de trabalho, em função da facilidade relativa com a qual se pode individualizar o cálculo privado da produtividade e os custos e ganhos monetários por trabalhador. No setor público, ao contrário, a operação de individualização das entregas (bens e serviços) voltadas direta e indiretamente para a coletividade é tarefa metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável, simplesmente pelo fato de que a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional.
Em suma, dadas as imensas diferenças qualitativas que existem entre as funções de natureza pública (cuja razão última é de índole sócio-política) e as de motivação privada (cuja razão última é de índole econômica, mais facilmente quantificável e mensurável), e sendo dificílimo identificar e isolar as variáveis relevantes necessárias ao cômputo da produtividade (individual ou agregada) no setor público, conclui-se que propostas desse tipo são incompatíveis com a essência pública do Estado e suas necessidades de planejamento, gestão e implementação de políticas voltadas à cidadania.
Não à toa, causa espanto em interlocutores internacionais saber que, no Brasil, há Bônus de Produtividade para aposentados e até para pensionistas. O argumento de que esses profissionais contribuíram para o resultado institucional enquanto estavam na ativa e, portanto, merecem participar da bonificação distribuída, parece fazer sentido apenas até determinado ponto. Qual a lógica de um aposentado receber, indefinidamente, ainda que em percentual menor, um bônus por produtividade depois de já estar na inatividade há 10 ou 15 anos?
A apropriação de pedaços do orçamento público por categorias profissionais específicas constitui, adicionalmente, um pleito de direção única: se houver resultados positivos, os agentes entendem como direito inquestionável a apropriação privada de parte dos recursos públicos correspondentes. No entanto, se o resultado for negativo, não há qualquer perda ou ressarcimento individual. Não é de surpreender que todas as categorias busquem condições similares, sob olhares atônitos da sociedade brasileira e constrangidos de juristas e demais defensores desse tipo de pleito.
Desta maneira, uma das formas de se mitigar ou combater o corporativismo predatório no seio do setor público consiste em relembrar e reforçar o caráter público tanto da configuração burocrática como da atuação estatal. Isso porque há diferenças importantes entre os setores público (Estado) e privado (mercado) no que diz respeito à essência, objetivos gerais e formas de atuação de cada uma dessas esferas da vida contemporânea. Tais diferenças nos ajudam a entender melhor as diferentes perspectivas e especificidades de atuação entre ambos, ajudam também a nos situarmos melhor em relação às nossas próprias preferências e opções de atuação profissional.
Embora de forma bastante simples e esquemática, é possível dizer que a atuação das pessoas no setor privado está ancorada em imperativos de necessidade de sobrevivência e auto interesse, cujo principal objetivo é atender aos desejos e necessidades dos indivíduos mediante a venda de bens e serviços de caráter mercantil, seja diretamente como pessoa física (autoemprego, trabalho por conta própria), seja por meio de empresas formais ou informais (pessoas jurídicas).
Além disso, é importante entender que no setor privado, por razões ligadas à lógica interna do sistema capitalista, as empresas e as pessoas que produzem para o mercado são induzidas a priorizar o curto/médio prazo, adotar perspectivas micro/mesoeconômicas e visar à acumulação de valor econômico na forma de lucro monetário.
Por sua vez, a atuação no setor público deve, idealmente, estar motivada por atributos pessoais ligados à vocação à esfera pública, altruísmo, integridade e desejo de prestar serviços à população como forma de viabilizar ou aperfeiçoar o atendimento governamental à coletividade. Além disso, trabalhar para o Estado – mas sempre a serviço da sociedade – implica em entender que este é o principal ente, criado historicamente pela humanidade, que pode e deve pautar e orientar a sua atuação a partir de uma visão de longo prazo para o desenvolvimento nacional, tendo as perspectivas macroeconômica, macrossocial e territorial como guias, bem como a produção de valor social de sentido não monetário como paradigma.
Neste sentido, é preciso ousadia e coragem para barrar o processo de captura e privatização do fundo público que vem se difundindo pela administração pública brasileira, seja sob a forma dos tais bônus de produtividade ou honorários de sucumbência, seja por meio de inúmeros projetos de lei e propostas de emenda constitucional que advogam por autonomia financeira de determinadas organizações. Se levadas a termo, essas tendências reduzirão o que resta de capacidade e autonomia relativa do Estado para agir em prol da democracia, da república e do desenvolvimento nacional. Será o fim da própria ideia de Estado como esfera pública e agente da transformação positiva de que tanto necessita o Brasil.
Por fim, é importante ressaltar que nem toda a burocracia pública se enquadra no modelo de corporativismo predatório discutido neste texto. Muitos servidores públicos desempenham suas funções com integridade e dedicação, buscando genuinamente servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade. Esses profissionais desempenham papel fundamental na implantação de políticas públicas essenciais, como saúde, educação, segurança pública, entre outras, muitas vezes enfrentando desafios significativos sem os privilégios percebidos por outras categorias.
Para reforçar o caráter público da atuação estatal e combater a captura do Estado pelas corporações, diversas estratégias podem ser empregadas. Isso inclui implantar processos de recrutamento para selecionar indivíduos comprometidos com o serviço público e o bem comum. Além disso, aprimorar os mecanismos de transparência e responsabilização. Fortalecer a participação da sociedade civil nos processos de tomada de decisão e promover uma cultura de ética no setor público também são cruciais.
Para combater o corporativismo predatório, em suma, é essencial fomentar um diálogo mais inclusivo e equitativo entre governo e sociedade civil, garantindo que outras vozes sejam ouvidas e consideradas nos processos decisórios.
*José Celso Cardoso Jr. é técnico de planejamento e pesquisa do IPEA e atual Secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da gestão e da inovação em serviços públicos.
*Alexandre Gomide é técnico de planejamento e pesquisa do IPEA e atual diretor de Altos Estudos da ENAP.
*Rafael Rodrigues Viegas é pós-doutorando em Administração pública e governo na FGV.
Notas[i] Além das definições e referências bibliográficas presentes nos verbetes sobre corporativismo que constam do Dicionário de Políticas Públicas, editado por Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira (Editora Unesp, 3ª edição, 2018), e do Dicionário do Pensamento Social do Século XX, este editado por William Outhwaite e Tom Bottomore (Editora Zahar, 1996), veja-se um dos clássicos sobre o assunto em SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? The Review of Politics, v. 36, n. 1, p. 85-131, 1974.[ii] Sobre o tema ver NUNES, W.; TELES MENDES, J. A Elite Salarial do Funcionalismo Público Federal: sugestões para uma reforma administrativa mais eficiente. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 26, n. 84, 2021. E NUNES, W. A Elite Salarial do Funcionalismo Público Federal: identificação conceitual e dimensionamento empírico. Em CARDOSO JR., J. C. (org.). Reforma Administrativa Bolsonaro/Guedes: autoritarismo, fiscalismo, privatismo. Brasília: Afipea, 2022.Veja neste link todos artigos de
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