Enel (Foto: Reuters)
A lógica de obtenção do maior lucro possível no menor tempo colabora para o processo de sucateamento da empresa e dos serviços por ela prestados
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O drama vivido pela população de São Paulo durante os últimos dias tem todas as características de uma conduta criminosa por parte uma empresa que foi beneficiada com a privatização de um serviço público essencial. A Enel é a atual corporação que detém a concessão federal para administrar os serviços de transmissão de energia elétrica no Estado de São Paulo. O processo remonta ao processo de venda de uma empresa estatal para o capital privado ainda na década de 1990, quando o governo paulista transferiu o patrimônio da então Eletropaulo para um grupo privado. Como era comum naquele período, 50% do valor de compra foi oferecido pelo BNDES em condições extremamente vantajosas para os adquirentes.
Ao longo das décadas seguintes a empresa foi mudando de dono e o atual grupo italiano comprou a empresa das mãos da companhia norte-americana AES em 2018. Essa dança do capital financeiro em busca de melhores oportunidades de lucros provoca sérios prejuízos ao desempenho operacional da empresa e uma perda de sua capacidade de oferecer resultados de qualidade para a população e para os demais usuários. O apagão atual é “apenas” um evento a mais na longa de série de crises anunciadas e cuja responsabilidade é totalmente atribuída à direção da Enel. Em novembro de 2023 e em março do presente ano já houve situações catastróficas semelhantes.
Atualmente a empresa é responsável pelo fornecimento de energia elétrica para um contingente de 18 milhões de pessoas distribuídas por 24 municípios na região da Grande São Paulo. Dentre elas, a mais importante e estratégica é, sem dúvida alguma, a capital paulista. Afinal, este município conta com uma população de quase 12 milhões, ou seja, o equivalente a 2/3 de toda a clientela da empresa.
Enel ultrapassou todos os limites - Não existe a menor dúvida entre os especialistas na matéria de que a emergência de uma conjuntura caótica como a atual tem suas raízes na redução de investimentos e na diminuição de despesas estratégicas por parte da empresa. A lógica de obtenção do maior lucro possível no menor tempo colabora para o processo de sucateamento da empresa e dos serviços por ela prestados. A manutenção da rede de eletricidade tem um custo relativamente elevado e eles optaram por cortar os recursos necessários para esse fim. As equipes de pessoal cumprem um papel fundamental nesse tipo de atividade do setor elétrico, mas a lógica privada é reduzir os gastos com recursos humanos e com seu treinamento. As consequências são funcionários com baixos salários e pouca motivação, além de uma gritante carência de gente para dar conta das necessidades de toda a rede.
Privatizar empresas estatais, inclusive aquelas que prestam um serviço público essencial como a eletricidade, sempre representou uma orientação antiga do chamado Consenso de Washington. A intenção era a de promover ajustes estruturais nas economias pelo mundo afora com base no receituário do neoliberalismo. Assim, para além da imposição de regras de austeridade fiscal e da liberação generalizada das economias, a recomendação era que os Estados nacionais transferissem o patrimônio de suas próprias empresas ao capital privado. Partindo do pressuposto equivocado e altamente ideologizado de que a ação do setor público seria sempre ineficiente, a narrativa falaciosa da exaltação da competência do capital privado como símbolo da eficiência ganhou espaço amplo nos meios de comunicação e no interior da sociedade.
Ocorre que a realidade tem demonstrado exatamente o oposto. Diferentes grupos de capital financeiro ganharam muito dinheiro com as privatizações, mas as promessas de tarifas mais baratas e serviços de maior qualidade ficaram para trás. Os processos de transferência do patrimônio público para o setor privado foram marcados por significativas elevações das tarifas cobradas dos clientes. Por outro lado, as obrigações das empresas concessionárias passavam longe do centro de preocupações dos órgãos responsáveis pela regulação e pela fiscalização do sistema depois de sua privatização. Como autênticos profetas do liberalismo extremado, deixaram tudo no mais bruto estado do “laissez faire, laissez passer”. E dane-se o prejuízo social e econômico provocado por ações irresponsáveis do capital privado.
Lula deve agir rápido! - No caso específico do setor elétrico, em 1996 foi criada a Agência Nacional da Energia Elétrica (ANEEL). No entanto, aqui também se deu o conhecido caso dos processos de “captura” das agências regulatórias. O desenho institucional do modelo pressupõe conceder autonomia aos organismos que passaram a usufruir de funções regulatórias em áreas cujas empresas haviam sido privatizadas. Assim, a tendência que se verificou em quase todos os países e setores foi a paulatina incorporação da lógica das empresas por parte das direções dos órgãos encarregados de regulação e fiscalização. Na verdade, a ação regulamentadora deixa de cumprir com sua função, qual seja, a de defender a grande maioria dos usuários contra os abusos cometidos pelas empresas que oferecem os serviços - no caso da energia elétrica, de forma quase monopolista.
A recorrência com que a Enel tem ignorado as suas funções basilares de prestação deste serviço público estratégico apontam para a necessidade urgente de medidas por parte do Estado brasileiro, tal como previsto na própria legislação. A empresa não apresenta as mínimas condições para continuar se beneficiando do status de uma concessionária para fins de fornecimento de energia elétrica para a população de São Paulo. O atual contrato de concessão oferecida pelo governo federal, ainda vigente, prevê que essa relação se estenda até 2028. Mas a administração pública conta ainda com outras alternativas de natureza jurídico-institucional. Existe a possibilidade de se promover uma intervenção na direção da empresa, tendo em vistas os abusos cometidos, as irresponsabilidades evidenciadas e os crimes praticados.
O que se faz necessário é introduzir o elemento da vontade política de agir na defesa do interesse da maioria contra um bando oportunista e criminoso que não apresenta o menor interesse em promover serviço público. O governo Lula já teve várias oportunidades para tomar alguma decisão neste sentido, mas até o momento nada foi feito. Atualmente, a gravidade da crise é de tal ordem que até mesmo personagens políticos de amplo espectro têm se manifestado duramente a esse respeito. É o caso do Ministro de Minas e Energia (Alexandre Silveira, do PSD de Kassab), do governador bolsonarista de São Paulo (Tarcísio de Freitas) e do prefeito da capital paulista (Ricardo Nunes), quando todos se declararam claramente pela intervenção na Enel e pelo fim da concessão ao grupo italiano.
Já passou da hora de Lula tomar finalmente uma decisão a respeito da Enel. Ele não pode passar a impressão de que está indo a reboque de figuras políticas do campo da direita. Apesar da demora inexplicável, é fundamental que o governo decrete a intervenção imediata na empresa. E, na sequência, que instaure procedimentos encaminhando para o cancelamento da concessão da mesma.
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