Foto: Guglielmo Mangiapane/REUTERS
Já no meio do mandato, primeira-ministra italiana preservou a democracia formal – mas desmonta direitos, aparelha a TV pública e quer mais poder com reforma política. UE normaliza seu governo — e vê sua brutalidade como referência no “controle migratório”
Por Jaime Bordel Gil, em El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues
Dois anos após a sua vitória nas eleições de 25 de setembro de 2022, Giorgia Meloni está no meio do seu mandato. O seu balanço, embora não tão transformador quanto ela gostaria, alcançou algumas conquistas importantes para a direita radical italiana. Além das mudanças que está conseguindo implementar no país, a grande vitória de Meloni até agora é ter normalizado a convivência com a extrema direita no poder.
Na Itália, esta normalização está ocorrendo há décadas, quando, na década de 90, Silvio Berlusconi confiou pela primeira vez na Liga do Norte e na Aliança Nacional para governar. Esse governo das três direitas é uma réplica daquele que hoje se encontra no Palácio Chigi. Com a diferença de que, desta vez, são os Irmãos da Itália de Meloni, herdeiros da Aliança Nacional, que lideram o Executivo como a primeira força, muito maior que a Liga de Salvini e a Força Itália do falecido Berlusconi.
Na Itália, ter a extrema direita sentada na cadeira do Executivo não é novidade. Na verdade, a própria Meloni já era ministra em 2008 – a mais jovem da história italiana – no terceiro governo de Berlusconi. Mas ainda permanecia uma instância de normalização da direita radical que nenhum outro partido tinha alcançado com tanto êxito antes: a Europa.
Embora tenham sido aceites dentro das suas fronteiras, a extrema direita sempre esteve isolada nas instituições europeias, onde muitos países continuaram a vê-los com maus olhos, apesar de participarem no Executivo italiano. A Europa também foi um assunto inacabado de Matteo Salvini quando ele coliderou o chamado “Governo Nacional-Populista” com o Movimento 5 Estrelas em 2018. Então Salvini escolheu o confronto com as instituições comunitárias e assumiu a arena internacional como um campo de batalha. Não importava se se tratava de um desembarque de Open Arms ou de negociações orçamentais em Bruxelas: tudo era uma oportunidade para atacar a UE, os burocratas e as elites europeias.
Meloni entendeu isso de uma forma radicalmente diferente. Em termos gramscianos, passou-se de uma guerra de movimentos para uma guerra de posições. O confronto direto que Salvini impunha foi substituído por uma tática que procura inocular ideias de extrema direita na UE de uma forma mais lenta, mais escondida e, por enquanto, eficaz.
Ao contrário de Salvini, Meloni não entrou em conflito com Bruxelas nas negociações orçamentais, nem fez grande alarido nos seus dois anos à frente do Executivo, mas tentou cultivar uma imagem de parceira confiável. E aos poucos, discurso após discurso e reunião após reunião, foi introduzindo as suas ideias nas instituições europeias. Da questão da imigração à exclusão do aborto entre os direitos mencionados no documento final da última cúpula do G7. E para muitos, as ideias de Meloni já não soam como as de uma pessoa ultra-perigosa, mas sim como as de um parceiro com quem há coisas a aprender sobre questões como a gestão da imigração.
A hegemonia gramsciana falava em conquistar o bom senso da época, e Meloni está garantindo que medidas que há não muito tempo eram consideradas de extrema direita sejam hoje entendidas como sensatas e coerentes. Se ainda há muito tempo não ficávamos chocados com o fato de o governo moribundo de Rishi Sunak ter enviado para Ruanda imigrantes irregulares recém-chegados ao solo britânico, hoje o fato de Meloni assinar um acordo semelhante com a Albânia não faz soar o alarme para ninguém na União Europeia. Um reflexo fiel disso é a visita de Alberto Núñez Feijóo [político espanhol de direita], que há apenas dois anos, quando a líder dos Irmãos da Itália venceu as eleições, teria evitado por todos os meios uma foto como a que decidiu tirar na semana passada. A direita radical de Meloni ainda não tem capacidade para conquistar a Europa, mas aos poucos vai capturando o “bom senso” da União Europeia.
Estabilidade e um projeto de longo prazo
No que diz respeito ao seu desempenho interno, o governo tem tido muitas luzes e sombras. O Executivo de Meloni está longe de aplicar o programa máximo que prometeu durante a campanha e os seus dados econômicos são piores que os dos seus vizinhos do sul da Europa. No entanto, conseguiu algo há muito desejado pela população italiana: a estabilidade.
O outro grande triunfo de Meloni nos seus quase dois anos como primeira-ministra foi conferir estabilidade a um país que parecia condenado a mudar de Executivo uma vez por ano. De forma imediata, o governo manteve-se sem grandes alterações e os maiores altos e baixos que sofreu foi o caso Sangiuliano [ministro da Cultura no país, que renunciou após a mídia revelar que ele cometia adultério], um misto entre confusão de saias e má administração de fundos públicos que culminou com a demissão do agora ex-ministro.
Encontramos a mesma estabilidade quando vemos as opiniões dos italianos nas principais sondagens. Desde as eleições de setembro de 2022, Meloni subiu entre três e quatro pontos, o mesmo número que perdeu a Lega de Matteo Salvini. Na centro-esquerda a situação é idêntica, com um Partido Democrata que cresce às custas do Movimento 5 Estrelas, o que deixa os dois blocos em posições semelhantes às de há dois anos.
O contexto neste momento é bastante plácido para Meloni, que nestas circunstâncias tentará avançar com a sua agenda durante a segunda metade do seu mandato. Até à data não conseguiu transformações radicais, mas deu ao país uma orientação mais conservadora. O objetivo a longo prazo é que a Itália avance pouco a pouco em direção ao modelo historicamente defendido pelo neofascismo italiano. Um país mais presidencialista, com um governo forte, onde a oposição não impede a ação do Executivo e onde a “Deus, pátria e família” são os valores fundamentais que estruturam a sociedade.
Nessa linha estão medidas como o controle rigoroso imposto à rádio e televisão públicas italianas (RAI), as restrições às adoções LGTBI+ ou medidas contra o aborto, como a proposta de forçar as mulheres a ouvir os batimentos cardíacos do feto ou permitir associações antiaborto que tenham acesso às clínicas que realizam aborto. E haveria também aquela que, se concretizada, será a mãe de todas as reformas: a Premierato.
A reforma conhecida como Premierato significaria uma transformação sem precedentes das instituições italianas, onde até o momento o Parlamento tem sido o eixo da vida política do país. Esta reforma, que prevê uma eleição separada para primeiro-ministro, a quem seriam automaticamente atribuídos 55% dos assentos caso vencesse as eleições, mudaria subitamente todo o quadro institucional italiano. De um regime parlamentar com sistema eleitoral misto, passaria para outro muito mais “presidencializado” e com um sistema eleitoral maioritário, aumentando consideravelmente os poderes do primeiro-ministro. Se conseguir efetuar esta reforma até ao final do seu mandato, a marca de Meloni ficará na política italiana durante as próximas décadas.
Até hoje, a opinião maioritária na Europa sobre a líder italiana é que a sua chegada à chefia do governo da terceira economia europeia “não foi um grande negócio”. Há quem acredite que Meloni moderou ou que pertence a uma extrema direita do bem, enquanto os maus são Marine Le Pen, Matteo Salvini ou Viktor Orban. Há analistas que defendem mesmo que a primeiro-ministra italiana não é de extrema direita, mas sim “conservadora”.
E enquanto estes debates ocorrem entre aqueles que ainda não veem Meloni como uma parceira aceitável e aqueles que consideram normal fazer um acordo com ela e visitar Roma para tirar fotos no Palácio Chigi, a líder dos Irmãos de Itália continua o seu trabalho em nível nacional e internacional. Aos poucos, lenta mas seguramente, como sempre tem sido a sua carreira política, Giorgia Meloni está construindo uma estrada que lhe permitirá estabelecer um regime onde o Executivo tenha poderes extraordinários permanentes na Itália e estabelecer relações na Europa que irão converter uma Itália ultradireitista em uma parceira aceitável – e sua gestão migratória como uma referência para a União Europeia.
Um país onde o primeiro-ministro tem uma maioria confortável, mesmo que ganhe por alguns décimos, e uma União Europeia que não o repreende se ele ignora os direitos humanos. Esse é o horizonte de médio prazo que Meloni considera. No final deste mandato, a Itália não se tornará uma ditadura fascista, mas poderá tornar-se um país com uma legislação muito mais conservadora socialmente, e onde o primeiro-ministro convive com uma maioria absoluta permanente. Um panorama que o torna muito mais sensível a todo tipo de tentações caudilhistas.
Embora a atual correlação de forças internacional não lhe permita ir mais longe do que isso, Meloni já está fazendo muito mais do que alguns querem reconhecer. Ela está semeando o terreno para que outros possam colher os frutos do seu legado. E depois de Meloni, por que não será possível governar ou pactuar com governos de extrema direita, se isso aconteceu na Itália e a vida continuou igual?
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