segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A hegemonia do dólar


O ônus do ajustamento para atingir o equilíbrio dos pagamentos não deve recair sobre os países deficitários – como acontecia no sistema de Bretton Woods e como acontece agora – mas sim sobre os países excedentários.

Prabhat Patnaik [*]
A opinião liberal sustenta que o sistema monetário e financeiro internacional é um dispositivo para promover os interesses de todos os países participantes, fornecendo um arranjo de pagamentos conveniente dentro do qual o comércio pode ser realizado. A realidade, porém, é completamente diferente: o sistema internacional baseia-se na hegemonia do imperialismo ocidental e, por sua vez, sustenta essa hegemonia. Uma vez que o dólar americano é o elemento central deste sistema internacional, pode dizer-se que a hegemonia do dólar na economia internacional é sustentada pela hegemonia do imperialismo ocidental e que, por sua vez, sustenta essa hegemonia; e esta hegemonia chega mesmo a impedir o comércio mutuamente conveniente entre os países participantes.

Um exemplo tornará este ponto claro. Suponhamos que o país 1 necessita da mercadoria x que o país 2 possui, e que o país 2, por sua vez, necessita da mercadoria y que o país 1 possui. No sistema atual, estes países não podem simplesmente trocar estes dois bens entre si. Cada um deles tem de dispor de dólares antes de comprar o produto do outro. E, a menos que cada um deles disponha de reservas suficientes de dólares à partida, esta transação simplesmente não se realizaria. Por outras palavras, sendo o dólar o meio de circulação nas transações internacionais, uma escassez de dólares nas mãos de alguns países impediria mesmo as suas transações mútuas. É o caso, nomeadamente, do comércio entre os países do terceiro mundo, que permanece limitado porque cada um deles é afetado pela escassez de dólares. Poderiam alargar o seu comércio mútuo se pudessem transacionar nas suas próprias moedas, ou seja, “desdolarizar”. O termo “desdolarização” refere-se à redução da dependência do dólar americano como meio de circulação, unidade de conta ou forma de detenção de reservas para transações internacionais.

A desdolarização, no entanto, tem a oposição natural dos EUA, pois, sendo a sua moeda crucial na economia mundial e geralmente considerada “tão boa como o ouro”, dá aos EUA uma imensa vantagem, como se estivessem sentados numa mina de ouro gratuita e inesgotável. Podem comprar os recursos de outros países, podem adquirir as suas empresas, podem investir o que quiserem no estrangeiro e financiar os seus próprios défices da balança de transações correntes; tudo isto pode ser feito simplesmente imprimindo mais dólares.

Mas, para além destas vantagens óbvias, de ter acesso a quantidades ilimitadas de poder de compra internacional de valor garantido, os EUA também podem usar este papel do dólar para coagir os países a aceitarem a sua hegemonia. Podem colocar dólares à disposição de um país que favorecem; em alternativa, podem confiscar as reservas em dólares de determinados países que desejam punir, pois essas reservas são normalmente detidas em bancos ocidentais. Na verdade, já aplicou este tipo de castigo a numerosos países, desde o Irão à Rússia. A tendência para a desdolarização, que é geralmente favorecida por países terceiros que são tipicamente afetados por uma escassez de dólares, adquiriu um grande impulso nos últimos tempos, devido à frequência com que este tipo de confisco tem sido feito nos últimos anos.

Se cerca de um terço dos países do mundo foram sujeitos a sanções ocidentais unilaterais, isto é, sanções que não têm o apoio das Nações Unidas e que, por conseguinte, não são impostas em defesa de um princípio qualquer, como o foram as sanções anti-apartheid contra a África do Sul, então é natural que exista um forte desejo entre os países do Sul global, e entre os países que foram alvo de tais sanções, de desdolarizar. Este desejo teve recentemente expressão na Cimeira de Kazan dos países BRICS.

O papel das sanções ocidentais, lideradas pelos EUA, no reforço do desejo de desdolarização foi reconhecido pela própria administração americana. A secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, falando perante a Comissão de Serviços Financeiros da Câmara dos Representantes em julho, afirmou que as sanções econômicas dos Estados Unidos tinham levado os BRICS a tentar desdolarizar-se. Ela admitiu: “Quanto mais sanções os EUA impuserem, mais países (BRICS) procurarão métodos de transação financeira que não envolvam o dólar americano”. Implícito na observação de Yellen estava a admissão de que os EUA usam a hegemonia do dólar para intimidar os países a seguirem a sua linha, e que o número de países assim intimidados tem aumentado.

Há uma dialética específica no exercício da hegemonia através de sanções unilaterais. Se as sanções forem impostas a um ou dois países recalcitrantes, podem ser eficazes sem ameaçar toda a estrutura; mas se forem impostas a uma série de países, a própria estrutura fica ameaçada. E dado o sofrimento a que os países são reduzidos sob o neoliberalismo, há uma tendência para o número de países recalcitrantes aumentar ao longo do tempo. Mas com o aumento do número de países sancionados, a tendência para a desdolarização continua necessariamente a reforçar-se. E é também nesta altura que a pura coerção subjacente à hegemonia do dólar, o facto de esta hegemonia se basear em pressões imperialistas, se torna claramente evidente, expondo a vacuidade da afirmação liberal de que o acordo sobre o dólar é do interesse de todos os países.

Uma razão próxima muito importante por detrás da hegemonia do dólar, que remonta à década de 1970, foi o acordo entre os EUA e os países produtores de petróleo, conseguido através da mediação da Arábia Saudita, segundo o qual o dólar seria o meio através do qual os preços do petróleo seriam expressos e o comércio de petróleo efetuado. Dada a importância do petróleo, este facto deu um grande impulso ao dólar; de facto, mais recentemente, quando foram impostas sanções ocidentais contra a Rússia com o objetivo de arruinar o rublo, esta moeda foi salva, entre outras coisas, pela insistência da Rússia em que todos os pagamentos das suas exportações de petróleo e gás fossem feitos em rublos.

Mas é evidente que um acordo deste tipo com os exportadores de petróleo, como aconteceu na década de 1970, não é considerado suficiente atualmente para garantir a continuação da hegemonia do dólar. Até mesmo Janet Yellen, que antes desdenhava qualquer conversa sobre a desdolarização, leva-a agora mais a sério. Não é surpreendente, neste contexto, que Donald Trump tenha mesmo ameaçado os países que procuram afastar-se do dólar com a imposição de direitos aduaneiros de 100 por cento sobre as suas exportações para os EUA. A ameaça de Trump deixa bem claro para todos que por trás da hegemonia do dólar está a coerção exercida pelo imperialismo norte-americano.

Essa coerção pode ser eficaz porque qualquer desdolarização é um processo que leva tempo. Se as exportações para os EUA dos países que estão a desdolarizar-se forem entretanto reduzidas, então enfrentam uma escassez aguda de dólares que pode tornar as suas vidas extremamente difíceis. Mesmo que consigam, de alguma forma, satisfazer as suas necessidades de importação através de pagamentos que não sejam em dólares, se tiverem compromissos de dívida externa em termos de dólares com o FMI ou o Banco Mundial ou com instituições financeiras ocidentais, então o cumprimento desses compromissos torna-se impossível. A ameaça de Trump é, portanto, séria. Significativamente, ao emitir esta ameaça, Trump expõe descaradamente os mecanismos do imperialismo dos EUA que são normalmente camuflados pela conversa liberal.

Ironicamente, no entanto, esta mesma ameaça, que pode ser eficaz a curto prazo, tornará cada vez mais países conscientes da necessidade de desdolarizar, pelo facto de a hegemonia do dólar implicar a escravidão aos Estados Unidos. É claro que ainda há um longo caminho a percorrer até que ocorra uma desdolarização significativa, e a cimeira de Kazan estava bem ciente desse facto. Após a ameaça de Trump, vários países, incluindo a Índia, manifestaram a sua falta de interesse na desdolarização. Mas embora isso possa ser um movimento imediato para permanecer em bons termos com a América, o facto de o imperialismo estar a enfrentar um sério desafio está fora de dúvida. Mesmo a unidade entre as potências imperialistas que é visível na questão da Ucrânia e de Gaza, com a social-democracia em todos os países imperialistas a alinhar-se carateristicamente atrás do imperialismo, testemunha a seriedade do desafio ao imperialismo.

A conversa sobre a desdolarização faz parte deste desafio. No entanto, nem mesmo entre os países BRICS existe uma ideia clara sobre a arquitetura financeira alternativa que deve substituir a atual. A opinião progressista no mundo deve assegurar que esta substituição, quando ocorrer, não se limite a substituir a hegemonia do dólar pela hegemonia de outra moeda, reflectindo a hegemonia de outro país ou conjunto de países.

Para isso, é necessário que não se mantenham os mesmos acordos quando o dólar for substituído por outra moeda, seja ela uma moeda existente ou uma moeda alternativa dos BRICS; as próprias regras têm de mudar, e uma mudança importante deve ser que o ônus do ajustamento para atingir o equilíbrio dos pagamentos não recaia sobre os países deficitários, como acontecia no sistema de Bretton Woods e como acontece agora, mas sim sobre os países excedentários.

15/Dezembro/2024

Ver também:

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

Este artigo encontra-se em resistir.info



 

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