domingo, 9 de março de 2025

A política externa de Donald Trump

Imagem: Aaron Kittredge


DIOGO FAGUNDES*

Trump nunca escondeu que sua visão sobre política externa era abertamente chauvinista, mas ao contrário tanto dos democratas quanto dos neocons, voltada para o protecionismo e isolacionismo

Muitos estão impressionados com a maneira como Donald Trump vem se afastando de aliados tradicionais para entabular negociações com a Rússia – apesar de isto não constituir exatamente uma surpresa, pois o fim da guerra era promessa de campanha do republicano. O símbolo máximo dessa virada foi o bullying – digno de Tony Soprano em relação aos seus subordinados – realizado contra Volodymyr Zelensky em pleno Salão Oval, gravado para o mundo inteiro assistir.

As perguntas são inevitáveis. Por que abandonar o papel de vanguarda mundial da defesa do “mundo livre”? Por que abdicar do papel de liderança global do “Ocidente”, reconhecido pela Europa Ocidental?

Afinal de contas, não apenas a OTAN está ameaçada, mas também a rede complexa de alianças e soft power construída pacientemente ao longo de décadas. Isso se manifesta concretamente em iniciativas de pôr fim à USAID ou mesmo em efeitos que passam mais desapercebidos mas são significativos.

Por exemplo: o Australian Strategic Policy Institute (ASPI), um think tank especializado em difundir propaganda anti-China, anunciou que deixará de realizar uma “pesquisa” sobre China por falta de verbas após a chegada de Donald Trump.[i] (Deixemos de lado a questão de um órgão responsável por subsidiar políticas públicas para a Austrália precisar de financiamento de uma potência estrangeira para lidar com outro país…).

Donald Trump nunca escondeu que sua visão sobre política externa era abertamente chauvinista, mas ao contrário tanto dos democratas quanto dos neocons (cuja aliança simbólica foi consagrada pelo apoio de Dick Cheney a Kamala Harris), voltada para o protecionismo e isolacionismo, características que marcavam os EUA antes de Woodrow Wilson.

Isso não é de hoje – antes de entrar para a política, escreveu textos até mesmo contra a guerra no Iraque, além de ter sempre denunciado que o livre-comércio irrestrito prejudicava os EUA e favorecia a China – mas parece que neste segundo mandato incorporou um ímpeto muito mais audacioso e “monárquico” (no sentido de sequer considerar o Parlamento) – em conformidade com certos ideais antidemocráticos de ideólogos caros a Elon Musk, como Mencius Moldbug – o que lhe confere o poder de ditar o ritmo da agenda do país e do globo.

Basta escutar qualquer discurso de J.D.Vance, seu vice-presidente que pretende representar o espírito do “Rust Belt“, para notar mudanças significativas: há o reconhecimento do fim da globalização iniciada nos anos 1990, bem como da realidade da multipolaridade – termo também saído da boca de Marco Rubio, secretário de Estado – e até mesmo o elogio à política externa chinesa de não interferir em assuntos internos dos outros países, reconhecendo que o proselitismo em nome da democracia e dos direitos humanos, marca do “globalismo” tão criticado pela extrema direita, era prejudicial aos interesses dos EUA.

Não nos iludamos, no entanto, com o discurso, pois dificilmente os EUA abdicarão totalmente de seu papel interventor – principalmente em seu “quintal”, já que a Doutrina Monroe voltou com tudo –, apenas haverá uma mudança de estilo, passando da retórica pró-direitos humanos para algo a favor da “liberdade de expressão”, como vemos na postura de Elon Musk contra o Judiciário brasileiro.

Tem lógica? Para alguns liberais, Donald Trump seria uma espécie de agente de Vladimir Putin – logo eles que odeiam teorias da conspiração… -, ressuscitando a histeria do “Russiagate” que deu a tônica do discurso democrata contra o primeiro mandato do atual presidente norte-americano.

Na real, tanto a fabricação da guerra contra a Rússia, quanto o atual recuo, possuem, sim, explicações bastante racionais. Joe Biden apenas seguia a lógica de um processo político de longa data, iniciado com o desmonte da URSS, envolvendo expansionismo da OTAN (que é bom dizer, havia perdido razão de existir após o fim da Guerra Fria) para o leste europeu.

Muitos estrategistas norte-americanos reputados criticaram tal política já nos anos 1990, como George F. Kennan[ii] (arquiteto da estratégia de “containment” da Guerra Fria), mas a velha “húbris” (nome, aliás, de um livro de Jonathan Haslam muito bom sobre o assunto) falou mais alto: tratava-se de humilhar e isolar a Rússia, quem sabe balcanizando-a ainda mais, em vez de incorporar seus interesses num novo arranjo partilhado. Ao agirem assim, as lideranças norte-americanas estavam repetindo a velha estratégia do império britânico de impedir a Rússia de ter qualquer acesso a águas quentes, na lógica de controle do poder terrestre eurasiático (chamado de “Heartland“) consagrada por um dos pais da geopolítica, Halford Mackinder.

Esta estratégia, cristalizada no famoso livro The Grand Chessboard de Zbigniew Brzezinski, bastante influente, especialmente nos círculos democratas, considerava que a Rússia estava fraca demais para reagir. E, de fato, os anos Yeltsin pareciam indicar isso – a Rússia mal foi considerada durante a guerra da Iugoslávia, envolvendo a Sérvia, de interesse especial para os russos devido à herança cristã ortodoxa e eslava. Mesmo nos anos Putin, até que este chegasse à decisão de impor um “basta”, no seu famoso discurso de 2007 em Munique, houve tentativas russas de amizade e cooperação com os EUA – como na parceria inicial na “guerra ao terror” após o 11 de setembro.

Após o golpe de Estado na Ucrânia em 2014 – no qual figuras do Estado norte-americano, como Victoria Nuland, exerceram papel decisivo – e os acontecimentos subsequentes, desencadeando uma mortífera e sectária guerra civil, tal política norte-americana foi intensificada, com alguns ganhos importantes para os EUA, ao contrário do que Donald Trump diz: não apenas pelo papel econômico do complexo industrial-militar (não são poucos os que sustentam que os EUA vivem uma espécie de “keynesianismo militar”), mas principalmente pelo objetivo de afastar a economia da Alemanha da Rússia (de novo, algo presente nas considerações antigas do Império Britânico), incluindo destruição do gasoduto Nordstream, o que teve efeitos econômicos desastrosos para o continente, privado do gás barato russo, mas agora dependente do gás oferecido pelos EUA, extraído por métodos particularmente agressivos ao meio-ambiente, o tal fracking.

E como disse cinicamente um senador norte-americano: trata-se de um dinheiro militar bem gasto, pois nenhum norte-americano estava morrendo! Nada melhor do que usar territórios distantes como bucha de canhão.

O que deu errado então? Bem, Brzezinski, que menosprezava a Rússia em seu livro supracitado, avaliando que o gigante euroasiático não teria condições de reagir, já dizia qual seria o pior cenário possível: uma aliança entre China, Rússia (que tradicionalmente possuem rusgas, inclusive na época da Guerra Fria) e Irã. Bem, foi exatamente o que aconteceu.

Ao contrário do que os democratas previam, a economia russa não colapsou com as sanções – pelo contrário, cresce bastante –, e a parceria entre China e Rússia apenas se intensificou com a “virada ao Oriente” feita pela Rússia, necessária após o rompimento de laços com a Europa. A Ucrânia, apesar de muito dinheiro, tecnologia e homens, não conseguiu recuperar território significativo em suas contra-ofensivas espetaculosas (como a de Bakhmut), a ponto de mudar o destino da guerra.

Atualmente, é difícil vislumbrar uma saída vitoriosa para a Ucrânia, presa em um atoleiro, a não ser que uma terceira guerra mundial se instalasse, com todos os perigos nucleares envolvidos, afinal a Rússia já fez questão de dizer várias vezes que se trata de uma “guerra existencial” para eles, ou seja: não podem perder de jeito nenhum. Como já alertavam muitos analistas de um perfil mais realista, como Jeffrey Sachs[iii] e John Mearsheimer, a aposta na derrota da Rússia era delirante.

Isto significa que agora EUA e Rússia viraram parceiros estratégicos? Não. A postura de negociação não implica que a Rússia se separará da China, o principal inimigo norte-americano, contra quem Donald Trump quer focar seus esforços, em vez de explorar várias frentes. As analogias com Nixon e China nos anos 70 são capciosas, pois na época, ao contrário de hoje, as relações entre China e URSS já estavam esgarçadas há mais de uma década.

Em várias zonas decisivas e estratégicas, como no Oriente Médio – onde o Irã é o principal parceiro da Rússia –, os interesses se colidem frontalmente, pois Donald Trump é aliado incondicional de Benjamin Netanyahu, cujo sonho mais molhado é entrar numa guerra contra o regime xiita.

A Europa, sem autonomia militar e estratégica há dezenas de anos, encena agora uma “independência” capaz de lhe assegurar uma liderança do tal “mundo livre”, uma vez que o Pai abdicou da tarefa, mas a realidade é que dificilmente isto terá efeito concreto no curso da guerra. Que europeu está, de fato, disposto a dar sua vida pela Ucrânia? É muita pose. Donald Trump não os enxerga como forças políticas independentes e relevantes, por isso a ausência do convite para participar das negociações, e ele não está totalmente errado nisso – vassalagem excessiva não gera respeito em ninguém.

Infelizmente, as lideranças europeias parecem viver num mundo de fantasia caracterizado por uma Guerra Fria eterna. A propaganda algo infantilizada de que se trata do bem contra o mal, encarnado em Vladimir Putin, um novo avatar de Hitler que decidiu, do nada, invadir a Ucrânia e não parar até chegar em Berlim, é ridícula, mas ainda domina a mentalidade europeia, viciada em se auto-congratular como o umbigo da civilização mesmo quando não representam mais muita coisa.

Raramente vimos lideranças de responsabilidade tão elevada agirem de forma tão pueril e insensata, como o caso de Kaja Kallas, chefe da política externa europeia, declarando que a vitória contra a Rússia é necessária para uma posterior vitória contra a… China![iv]

Esta guerra inútil, totalmente catastrófica para a Ucrânia – que está prestes a assinar um acordo neocolonial de entrega de metade dos lucros advindos da exploração de recursos mineiras inexplorados para os EUA –, poderia ter sido evitada em muitas ocasiões: se os dois Acordos de Minsk, assinados com o beneplácito da ONU e voltados a garantir, em um modelo federativo, autonomia linguística e cultural para o leste da Ucrânia (pois é, resolveram simplesmente eliminar os direitos linguísticos básicos de quase metade do país…), fossem respeitados; se a OTAN tivesse se comprometido a nunca aceitar o ingresso da Ucrânia, numa proposta feita por Moscou em 2021; se as negociações de Ancara em 2022 – o verdadeiro objetivo inicial da invasão – tivessem ido para a frente, em vez do rompimento unilateral ucraniano, após pressão feita por Joe Biden e Boris Johnson – que chegou a dizer que a guerra era necessária para garantir a “hegemonia do Ocidente coletivo”… –, com direito até a morte misteriosa do negociador ucraniano.

À luz dos acontecimentos recentes, parece claro que quem dizia tratar-se de uma guerra por procuração entre a OTAN e Rússia – o que foi admitido depois até por Jens Stontelberg, ex secretário-geral da OTAN[v] – teve suas análises e prognósticos validados. Volodymyr Zelensky, que foi dragado pelos holofotes e acabou acreditando demais nas adulações falsas, entregou o destino do seu país às potências ocidentais, atolado em um moedor de carne infernal e sem saída.

Ele, que fora eleito prometendo paz com o fim da guerra civil (e por isso teve bastante voto no leste do país), aprofundou todos os processos desastrosos iniciados em 2014: guerra contra o Donbass, russofobia explícita, eliminação da língua e cultura russa vividas por quase 40% do país, incorporação de milícias nazistas nas forças de segurança e defesa, celebração do ultranacionalismo de “heróis”, como Stepan Bandera, genocida de russos e judeus na Segunda Guerra Mundial, proibição de mídia e partidos populares no leste (como o relevante Partido Comunista Ucraniano, hoje banido).

Fica a velha lição de Mao Tsé-Tung: é necessário contar sempre com as próprias forças. Ou na versão de Henry Kissinger, outra grande cabeça a alertar contra a estratégia norte-americana que levou à atual guerra: pode ser perigoso ser inimigo da América, mas ser amigo da América é fatal.

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.


[ii] Veja este artigo de 1997: veja aqui

[iii] Sua palestra recente no Parlamento europeu é especialmente elucidativa: veja aqui


[v] “So he went to war to prevent NATO, more NATO, close to his borders”. Veja aqui



 

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