Léa
Maria Aarão Reis / www.cartamaior.com.br
Kenneth
Loach, de 77 anos, é filho de operários de Nuneaton, no Reino Unido, pequena
cidade próxima de Coventry, uma das mais arrasadas pela blitzkrieg de Hitler na
Segunda Guerra Mundial.
Sua
idade e sua origem são duas chaves para entender a coerência e a profunda
humanidade presentes na filmografia desse cineasta socialista, um dos grandes
mestres do cinema. Sua realidade vem contida nos perfis afetuosos da classe
operária inglesa e das suas lutas, na memória da experiência da guerra vivida
na própria carne e nos difíceis anos do pós-guerra imediato, na Inglaterra.
“Venho de um meio operário,” costuma dizer Loach. “É o mundo que conheço e que
me interessa retratar.”
O
seu mais recente longa-metragem, O Espírito de 45, exibido no Festival do Rio,
é mais um documentário do alentado pacote de 148 documentários apresentados,
este ano, entre as 380 produções da mostra.
O
filme é objeto de comemoração especial. Marca o retorno do mestre inglês ao
gênero do filme doc do qual se afastara há décadas e no qual é inigualável.
Apresenta emocionantes imagens de época, pérolas históricas, que Loach e sua
equipe garimparam em diversos depósitos esquecidos, no Reino Unido. Documentos
tratados com tal apuro técnico que se assemelham a imagens produzidas hoje. Um
deles mostra Churchill discursando na praça, em campanha para Primeiro Ministro
pelos conservadores (acabou derrotado pelos trabalhistas) e, surpreso e
constrangido, sendo vaiado. Imagem rara. “Com a vitória socialista começa uma
época triunfante”, diz uma mulher em entrevista. “Na educação, por exemplo, as
escolas formavam cidadãos porque as crianças aprendiam a pensar por elas
próprias.” Naquele tempo, depõe outro homem, “tínhamos o controle sobre nossas
vidas.”
A
miséria extrema da população nos meses subsequentes ao armistício, o estado
falido e exaurido pelo esforço de guerra, o desemprego, a fome, crianças
andrajosas brincando nas ruas, e tocantes entrevistas com trabalhadores, homens
e mulheres hoje idosos, mineiros, estivadores, ferroviários, enfermeiras,
médicos e professores todos se lembram da época de agonia.
A
montagem de cenas e sequências capta com vivacidade (uma das marcas do cinema
de Loach) e intenso realismo a atmosfera de 1945 quando centenas de milhares de
pessoas viviam em favelas. “Às vezes”, comenta um velho, “eu e mais oito
crianças, meninos e meninas, dormíamos na mesma cama convivendo com pulgas,
percevejos e ratos. A comida ainda era racionada e comia-se pão e geléia dias a
fio.”
A
narrativa do filme começa com uma imagem ícone da época, a jovem radiante nas
festas populares da vitória, em Piccaddily. Em seguida, a energia e o
entusiasmo das pessoas construindo o estado de Bem-Estar Social britânico e a
consciência de união e solidariedade que tomaram conta do Reino Unido - o
espírito de 1945. Uma nova Londres é construída, com moradias dignas para os
trabalhadores. Casas com banheiros também no andar térreo (antes, só no andar
superior) e um pequeno quintal, o tão caro backyard dos ingleses.
A
partir de então se seguem as nacionalizações. Keynes participa do governo como
conselheiro informal. Em 1946 o Ministro da Saúde Anerin Bevan cria um Serviço
Nacional de Saúde, o célebre NHS (National Health Service). Parte do princípio
que é inadmissível o elemento comercial interferir na relação entre médico e
paciente. “Meu avô“, diz uma mulher, “só começou a usar óculos aos 70 anos, com
a criação do NHS. Antes, sem dinheiro, lia usando um pedaço de vidro de fundo
de garrafa à maneira de lupa.” Outro trabalhador aposentado comenta com
orgulho: “Eu ficaria envergonhado de ser cidadão de um país tão rico como os
Estados Unidos, sem um sistema de saúde semelhante ao nosso.”
O
filme vai seguindo passo a passo os anos seguintes. Em 1947, nacionalização das
minas. Os mineiros passam a trabalhar em condições seguras. Dos portos - até 47
os estivadores não contavam com salário fixo. Um ano depois chega a vez das
ferrovias, outro acontecimento histórico. Em 1949 o gás é nacionalizado e, em
1951, o ápice do estado de Bem-Estar Social é celebrado com o Festival da
Inglaterra.
No
terço final do filme, Loach apresenta o desastre tatcheriano dos anos 70. Uma
única imagem marca a aparição da Primeira Ministra em um dos seus primeiros
discursos em praça pública no qual invoca São Francisco de Assis (!). É vaiada.
Começa
o desmonte do estado de Bem-Estar Social e das suas estruturas. Redução dos
salários, demissões em massa, o enfraquecimento dos sindicatos e a repressão
policial. Em 1984 a água é privatizada, em 86 o gás, em 87 a aviação comercial
e em 88 as grandes manifestações de rua são reprimidas violentamente pela
polícia de ferro. Em 1989 é a vez das docas e a volta do trabalho informal dos
estivadores. No mesmo ano a eletricidade é privatizada, em 94 é a vez dos
portos. Um milhão de jovens ingleses engrossava, então, as fileiras dos
desempregados. Em 2011 foi a vez dos correios. As imagens são desalentadoras.
Vemos
empresas terceirizadas contratadas, hoje, para atuar no serviço público, em
especial nos hospitais. ”Não há mais nenhum país para os pobres”, diz uma idosa
para a câmera de Loach. “E estaremos acabados se o governo conseguir terminar
com o Serviço Nacional de Saúde.” Será a última fronteira.
Por
que Kenneth Loach fez este filme? Os jornalistas que cobriram o Festival de
Cannes – onde ele foi premiado seis vezes; duas com a Palma de Ouro -, em maio
passado, perguntavam. Ele respondeu ao jornal La Repubblica de Roma: “Porque a
sociedade hoje não funciona; é um caos. E para que as pessoas pensem no que
pode ser feito, outra vez, na promoção do bem-estar social. Meu filme é para
lembrar o que foi conseguido no passado.” E aproveitou para lamentar: “Não há
mais esquerda na Europa. Ela se desmanchou na social-democracia e foi devastada
pelas divisões internas.”
O
Espírito de 45 é um filme esférico. Depois das sequencias otimistas com imagens
das festas do Labour Party, nas ruas, tratadas em tecnicolor, ele volta à mesma
imagem do início. A moça de Piccadilly no meio de uma multidão exultante e a
trilha musical insinuando o que pode ser transformado, novamente, hoje. É uma
daquelas músicas das bandas dançantes de época pinçadas por George Fenton,
compositor e colaborador de Loach em onze filmes do mestre.
Mas
uma ponta de tristeza vem do trompete de Harry James.
Créditos
da foto: .
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