Após a vitória de David Cameron nas eleições de
maio, os editorialistas britânicos concluíram: seu adversário trabalhista,
Edward Miliband, pendera demais para a esquerda. Os militantes do Labour viram
o contrário. Assim, elegeram para a presidência do partido um representante da
ala mais progressista do partido
por Alex Nunns // http://www.diplomatique.org.br/
Algumas horas depois de ser eleito presidente do
Partido Trabalhista, em 12 de setembro, Jeremy Corbyn tomou a palavra diante
dos milhares de militantes apinhados na Praça do Parlamento, em Londres, para
defender os refugiados e o direito de asilo. Quando seu discurso chegava ao
fim, um grupo de jovens manifestantes com camisetas vermelhas escritas “Team
Corbyn” se deu as mãos para formar um cordão de isolamento e escoltar o novo
homem forte da esquerda pela multidão.
Três meses antes, ao final de outra manifestação no
mesmo lugar, Corbyn permaneceu no local, tagarelando agradável e tranquilamente
com membros de seu público. Nada, naquele instante, pressagiava que esse
veterano do Parlamento, figura venerável, mas discreta, da esquerda do Labour
Party, logo encabeçaria a principal força de oposição de Sua Majestade.
Marginalizado havia décadas por seus colegas da Câmara dos Comuns e ignorado
pela mídia, esse candidato improvável transformou-se em fenômeno graças ao boca
a boca, açambarcando 59,5% dos votos já no primeiro turno e expondo ao ridículo
seu principal rival, que ficou quarenta pontos atrás dele. Vitória sem
precedentes na história política do Reino Unido.
A reunião de junho dera sinais de que um
acontecimento extremamente raro talvez fosse ocorrer. Organizado não muito
depois da vitória dos conservadores nas eleições legislativas de maio, com uma
esquerda derrotada e deprimida, esse encontro antiausteridade conseguiu, para
surpresa geral, atrair centenas de milhares de manifestantes, todos eleitores
potenciais de Corbyn. “Foi um movimento de pessoas que buscavam uma casa
comum”, explica-nos o humorista Mark Steel, cofundador da Assembleia do Povo, a
federação de grupos e sindicatos que promoveu o encontro.1
O fato de o movimento assumir o caráter de campanha
em favor de Corbyn pode parecer duplamente estapafúrdio, pois o homem é a
própria antítese do estereótipo do ardoroso tribuno esquerdista. Sem o carisma
de Alexis Tsipras ou os talentos oratórios de seu mentor, Tony Benn, líder
histórico da ala esquerda dos trabalhistas em 1979 e 1980, Corbyn não
representava, a priori, nenhum perigo para seus colegas e concorrentes da elite
trabalhista. Mas seu estilo direto e sem floreios revelou-se um trunfo
precioso.
Corbyn preferiu agir como um para-raios pronto a
captar a carga elétrica que já saturava a atmosfera. Seus partidários são de
todas as idades e de todos os meios sociais, mas ele foi especialmente bem
acolhido por três grupos. Em primeiro lugar, os jovens, condenados pela
contraofensiva neoliberal pós-2008 a empregos precários e aluguéis proibitivos.
Não por acaso o estereótipo do seguidor de Corbyn tem a aparência juvenil, é
bem-educado e trabalha numa cafeteria. Essa geração se politizou graças ao
conflito provocado pela triplicação das mensalidades universitárias em 2012.2
O segundo pilar de sua sustentação política é o
movimento antibelicista. Corbyn preside a coalizão Stop the War, que organizou
a retumbante passeata de 2 milhões de pessoas contra a invasão do Iraque em
2003 – o maior protesto de massa da história britânica. Lindsay German,
coordenadora da Stop the War, calcula que a herança dessa manifestação “ajudou
bastante” a campanha de Corbyn. “Muita gente odiava o que o Labour Party havia
feito e não suportava Tony Blair. Inúmeras pessoas mais velhas deixaram o
partido por causa do Iraque, mas agora voltarão.”
Apoio dos sindicatos
A mídia britânica tentou inutilmente desmerecer,
por um reflexo natural, a importância das manifestações, sem as quais o
fenômeno Corbyn não seria compreensível. O novo dirigente do Labour tomou a
palavra diante de um número tão grande de manifestantes mobilizados em prol de
tantas causas diferentes – da Palestina aos serviços de saúde psiquiátrica –
que ele podia contar com um forte arroubo de simpatia a partir do anúncio de
sua candidatura.
O terceiro grupo é o do mundo sindical. Isso não
chega a surpreender: no setor público, onde os sindicatos ainda têm voz, os
salários estão congelados há anos, com bom número de serviços reduzidos ou
privatizados. Vários sindicatos são hoje dirigidos por secretários-gerais de
clara propensão esquerdista. Pouco atentos a esse novo perfil, os barões
trabalhistas reagiram com estupor quando as duas principais entidades sindicais
do país, Unite e Unison, passaram, sob pressão de suas bases, a apoiar Corbyn.
Essas mudanças de humor podem ser observadas em
outras partes da Europa. O Reino Unido, no entanto, se distingue por uma
história política que jamais concedeu posição de destaque a partidos situados à
esquerda do Labour. O sistema eleitoral britânico do “first past the post” –
escrutínio uninominal de um turno e por circunscrição – garante que formações
menores, como o Partido Verde, fiquem sempre de fora do Parlamento. Não há
nenhuma esperança para equivalentes ao Syriza ou ao Podemos. Nem o Partido para
a Independência do Reino Unido (Ukip), na outra extremidade do espectro
político, conseguiu essa façanha. Assim, a oposição aos políticos neoliberais
se exprime em grande parte no próprio seio do Partido Trabalhista, o qual,
entretanto, muitos consideram irreversivelmente “blairizado”.3
O Labour mudou sob o efeito, ao mesmo tempo, de um
grande afluxo de adeptos e de uma modificação no sistema para a eleição de seu
presidente. Dessa vez, qualquer cidadão podia votar, desde que pagasse uma taxa
de 3 libras esterlinas (R$ 18). Ironia do destino: a reforma interna fora
proposta pela direita do partido. Os blairistas, fascinados pelo modelo das
primárias nos Estados Unidos, apostavam que a abertura do voto ao grande
público enfraqueceria a influência dos sindicalistas e acabaria por ancorar o
partido no confortável lamaçal do “centro”. Ficaram decepcionados quando
perceberam que o mecanismo construído para assegurar sua vitória servia, na verdade,
aos interesses da esquerda. O dispositivo estava perfeitamente adaptado às
redes sociais – pois bastava um clique para aderir e passar a informação aos
amigos –, o que em muito beneficiou Corbyn, popular no Facebook e no Twitter.
“A dinâmica nasceu, quase toda, fora do partido e
em seguida se disseminou por dentro, graças à mudança de perfil de seus
adeptos”, explica a escritora feminista Hilary Wainwright, que por muito tempo
trabalhou com Corbyn. A seu ver, o rebuliço em torno do candidato de esquerda
“motivou os adeptos mais antigos a votar nele, criando o efeito de um movimento
de massa”. Impressão confirmada pelos 99 comícios de Corbyn: eles atraíram
tanta gente que muitas vezes o orador, terminado o discurso, tinha de deixar a
sala para fazer outro diante da multidão bloqueada diante das portas. Já se
fala até em “corbynmania”.
A pergunta agora é se essa mobilização persistirá
por muito tempo e com vigor suficiente para repelir os ataques que, sem dúvida,
virão em rajadas. As reações de hostilidade que ele já provoca não são de
admirar, pois, para bom número de súditos, as posições de Corbyn se chocam
frontalmente com aquilo que o Estado britânico julga ser de seu interesse. Ele
não imagina circunstância alguma capaz de justificar uma mobilização das Forças
Armadas; opõe-se aos bombardeios na Síria; não quer que o reino invista em uma
nova geração de mísseis nucleares (Trident); e mostra-se extremamente cético
quanto ao papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e à
ampliação de sua zona de intervencionismo.
Em matéria de economia, diz-se pronto a acertar as
contas com a indústria financeira da City de Londres; restabelecer o controle
político sobre o Banco Central; abalar a ortodoxia thatcheriana,
renacionalizando as estradas de ferro e vários serviços públicos etc. Sem tomar
claramente posição quanto à saída da União Europeia (o “Brexit”), prefere
enfatizar a construção de uma “Europa social”. Critica com virulência o
tratamento infligido à Grécia e o Grande Mercado Transatlântico (GMT), um
acordo de livre-comércio que está sendo negociado entre Bruxelas e Washington
(ler mais na próxima página).
Quantas dessas tomadas de posição encontrarão lugar
na plataforma do Labour é algo que ainda não se sabe. Entre o novo chefe e a
base, que por grande maioria o apoia, intervém a estrutura dos notáveis do
partido, principal obstáculo à sua renovação programática. Boa parte dos
parlamentares trabalhistas iniciou sua vida política sob a tutela de Tony Blair
ou Gordon Brown4 e construiu sua carreira sobre as ruínas da esquerda. “Ninguém
jamais tentou assumir a direção do partido com tão pouco apoio dos parlamentares”,
observa Lance Price, ex-encarregado da comunicação de Blair.
A fim de evitar ciladas, a estratégia do novo homem
forte da esquerda europeia consiste em democratizar o Labour. Seriam
restabelecidas as prerrogativas de decisão da base durante os congressos
anuais, de maneira a limitar a influência dos caciques. “Corbyn tem em mãos
alavancas de poder consideráveis”, avalia Price, que acha “improvável” o
cenário de um “dirigente esquerdista paralisado por um aparato de posições
políticas diferentes das suas”.
Alguns parlamentares trabalhistas já evocam na
surdina a eventualidade de uma cisão – que, no entanto, parece pouco realista.
Os blairistas vão mal das pernas: sua candidata à direção trabalhista, Liz
Kandall, colheu um resultado humilhante: 4,5% dos votos. O problema deles é de
ordem ideológica. Por mais vibrante que tenha sido, o blairismo se nutriu em
fontes que a crise de 2008 esgotou.
Com maior verossimilhança, é no próprio seio do
Labour que a direita buscará os meios de se vingar, embora enfrentando os
riscos de uma espiral autodestrutiva. Os adversários de Corbyn podem reunir
facilmente os 47 parlamentares – teto fixado pelos estatutos – necessários para
inverter o rumo e forçar uma nova eleição à presidência do partido. Não de
imediato, é claro: levando-se em conta a vitória esmagadora de seu bicho-papão,
uma manobra tão brutal suscitaria protestos dos militantes e conduziria à
reeleição de Corbyn por uma margem talvez ainda maior. O momento certo de
passar ao ataque poderia ser um mau resultado do partido nos próximos
escrutínios, como os legislativos na Escócia, em maio de 2016, ou os europeus,
em 2019. Enquanto esperam, não há dúvida de que os blairistas se empenharão
escrupulosamente em puxar o tapete de Corbyn junto à imprensa e nos corredores
do Parlamento.
Já a oposição dos conservadores apresenta ao menos
a vantagem de ser franca e previsível. Sua estratégia? Não recuar diante de
nada, como em vídeo difundido por seus simpatizantes que faz de Corbyn um
cúmplice do Hamas, do Hezbollah e mesmo de Bin Laden. O primeiro-ministro David
Cameron deu o tom em 13 de setembro, numa postagem em reação à primária
trabalhista: “O Labour é hoje uma ameaça à nossa segurança nacional, à nossa
segurança econômica e à segurança de vossas famílias”.
“Que sinal essa mensagem envia ao M15 e aos
serviços de inteligência?”, pergunta-se Julian Assange, fundador do WikiLeaks,
cuja causa Corbyn defendeu várias vezes perante a Câmara dos Comuns. Para
Assange, se o presidente do Labour continuar criticando a Otan e os mísseis
nucleares Trident, “meios consideráveis serão postos em prática para barrar seu
caminho antes das próximas eleições. Se ele tiver a mínima chance de ser eleito
primeiro-ministro, considerando-se os desafios, tudo poderá acontecer”. O alarmista
espera que Corbyn leve a ameaça a sério: “Ele já pôs de lado a proposta inicial
de tirar o Reino Unido da Otan. É mais sensato, com efeito, não lutar em todas
as frentes ao mesmo tempo”.
Em direção a uma aliança mais ampla?
Neste momento, Corbyn é a próxima vítima da mídia,
que com relação a ele já passou por todas as etapas da animosidade: primeiro a
consternação, depois o pânico e finalmente o desprezo. Essa postura não se
manifesta apenas por meio da pena ou das ondas sonoras de grupos de imprensa
reacionários mantidos por magnatas; ela foi adotada também por todos os grandes
jornais do país. Desde os primeiros dias que se seguiram ao triunfo de “Corb”,
como o rebatizaram com desdém, os tabloides já lançavam: “Corb ofende a
rainha”, vociferou a manchete do Sun(16 set. 2015) depois que o líder do Labour
resolveu não cantar o hino nacional numa cerimônia de comemoração da Batalha da
Inglaterra.
“Sabe Deus o que encontrarão para denegri-lo”, diz
Steel. “Devemos esperar golpes extraordinariamente sujos. A única defesa é o
movimento. Caluniar se torna mais difícil quando 1 milhão de pessoas respondem:
‘O que você está dizendo é mentira’.” Corbyn declarou que pretendia
“transformar o Labour numa espécie de movimento social”.5 A inimizade dos
parlamentares poderia obrigá-lo a manter esse compromisso. A campanha de
imprensa orquestrada contra ele exige que se aplique logo uma estratégia de
refutação e de mobilização nas redes sociais.
“Se todos os que votaram em Corbyn não se puserem
em campo o mais rápido possível, juntando-se ao Labour ou defendendo-o de fora,
toda essa campanha nada mais será que uma confissão de amor no Facebook”,
inquieta-se o cantor Billy Bragg. O homem cujas canções animaram lutas
incontáveis, principalmente durante os anos Thatcher, preceitua uma aliança
vasta e aberta, uma “sinergia de esquerda” da qual poderiam fazer parte os
ecologistas. Natalie Bennett, dirigente do Partido Verde, não descarta essa
ideia: “O Labour que conhecíamos era favorável à austeridade, às privatizações,
aos mísseis Trident e ao intervencionismo militar, isto é, a tudo aquilo que o
Partido Verde condena. Vamos esperar, primeiro, para ver que tipo de Labour
surgirá agora”.
O fato de o movimento antiausteridade no Reino
Unido ter sido forjado no seio de um grande partido governista apresenta
grandes vantagens, mas também sérios inconvenientes. O Partido Trabalhista não
nasceu para se opor ao Estado: não é uma organização que desafia a ordem
estabelecida, como faz o Syriza. Para vencer, Corbyn terá de transformar o
Labour em uma força militante capaz de preservar o extraordinário impulso que o
colocou à frente dessa agremiação. Caso o entusiasmo gerado nos últimos meses
se propague a outros setores da população e a aventura siga seu curso, Corbyn
terá todas as chances de sucesso. Caso o movimento arrefeça e o homem da
renovação se aproxime dos velhos centros de poder, a oportunidade estará
perdida.
Alex Nunns
Alex Nunns é jornalista, escritor e colunista político
da revista Red Pepper.
Ilustração: Toby Melville
1 Ver David Nowell-Smith, “Amers
lendemains électoraux pour l’université britannique” [Amargos amanhãs
eleitorais para a universidade britânica], Le Monde diplomatique, mar. 2011.
2 Salvo menção em contrário, as citações
foram extraídas de entrevistas com o autor.
3 Eleito chefe do Partido Trabalhista em
julho de 1994, Tony Blair foi primeiro-ministro de maio de 1997 a junho de
2007.
4 Ministro da Economia durante o mandato de
Blair e depois primeiro-ministro de junho de 2007 a 2010.
5 The Andrew Marr Show, BBC, 26 jul.
2015.
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