Com sua campanha, a FIESP apenas
tenta manter os privilégios obtidos junto a esse mesmo Estado que ela tanto diz
combater. A hipocrisia parece não ter fim.
Paulo Kliass* // www.cartamaior.com.br
O discurso do liberalismo radical
exorciza toda e qualquer menção à presença do Estado na economia, nas relações
sociais e mesmo no entorno da individualidade. Ao promover a confusão
deliberada entre as liberdades do indivíduo e a liberdade de atuação para as
forças de oferta e demanda no mercado, tudo fica turvo e abrem-se espaço para
as raivas se manifestarem de maneira descontrolada.
A narrativa liberal parte do
princípio de que a maior parte das pessoas não acha mesmo muito interessante a
idéia de pagar impostos. Assim, deitar falação contra o dito “intervencionismo”
fica muito fácil. Afinal, por que pagar a mais por uma mercadoria ou por um
serviço que tem seu preço majorado em razão de uma alíquota que vai ser
direcionada aos cofres da União, do Estado ou do município? Ou então qual a
razão para ter a minha renda ou meu salário reduzido pela incidência de algum
tributo que também vai parar nos cofres públicos?
Não quero! Lógico que não! Fora
esse Estado, que só vem aqui me tungar e não oferece nada de qualidade em
termos de serviços públicos, em troca desse recurso que é meu de direito. Filas
imensas na rede pública de saúde? Educação de baixa qualidade nas escolas
estaduais ou municipais? Dificuldades de atendimento nas agências da
Previdência Social? Denúncias de corrupção nas empresas estatais? Chega! Fora
com o Estado! E viva a iniciativa privada!
Liberalismo às avessas.
Esse é o caldo de cultura para
santificar a lorota a respeito da eficiência intrínseca à atividade empresarial
privada, bem como para condenar a incompetência e a roubalheira que os meios de
comunicação transformam sempre em característica típica da intervenção estatal
na economia. Assim, a derivação lógica é de que o Estado deva ser mínimo, para
que o ambiente geral possibilite o florescimento do empreendedorismo
mirabolante do capital privado. Maravilha!
No entanto, sabemos que a vida
real é muito mais complexa do que esse mundo idealizado, típico de um sonho
numa noite de verão. E o nosso capitalismo tupiniquim sempre foi, e continua
muito dependente da presença desse Leviatã - demonizado a não poder mais - na
economia. Na verdade, esse ente tão detestado na teoria pelos ideólogos do
nosso liberalismo mal formado, sempre foi muito solicitado a prestar, de forma
generosa, serviços essenciais ao capital.
É o caso típico da oferta de
serviços públicos gratuitos e universais, como mecanismo de barateamento do
custo de produção e reprodução da força de trabalho. Em bom português: forma de
assegurar baixos salários. Basta que lembremos de educação, saúde, habitação,
previdência, saneamento e outros bens públicos oferecidos pelo Estado. Ou então
de toda a rede de infraestrutura montada pelo poder público ao longo das
décadas, concretizada em energia elétrica, rodovias, ferrovias, telecomunicações,
portos, aeroportos e outros. História de oferecer estruturas de custos de
produção reduzidos para o capital, com a consequente elevação suas margens de
lucro.
Impostômetro e sonegômetro.
As crises do capitalismo a partir
da década de 1980 e o advento do neoliberalismo mudam essa paisagem. O Estado
passa ser enxergado como adversário e a reação vem sob a forma da denúncia da
suposta “elevada carga tributária”. Os grandes meios de comunicação oferecem
todo o espaço necessário à estratégia de parte da liderança empresarial.
Privatização, desregulamentação, liberalização transformam-se em panaceia e
surge o medidor do “impostômetro”. Em 2005, o então presidente da Associação
Comercial de São Paulo, Guilherme Afif Domingos, lança esse factóide com o
intuito de sensibilizar a população em sua cruzada anti Estado. Quis a ironia
da História que esse político de origem malufista viesse a fazer parte da base
aliada dos governos Lula e Dilma, ocupando o cargo de Ministro da Micro e
Pequena Empresa até poucas semanas atrás.
Ora, quem reclama contra os
atuais 34% de participação de tributos no nosso PIB só pode estar agindo de má
fé ou por ignorância. Essa porcentagem está na média dos demais países da OCDE
e não representa nenhuma extravagância em termos de comparação internacional. O
ponto central de debate refere-se a que tipo de sociedade desejamos construir.
Um país solidário, contando com uma rede de serviços públicos de acesso
universal, tal como previsto em nossa Constituição, pressupõe a necessidade de
recursos orçamentários para que o Estado possa dar conta de tais tarefas.
O caminho oposto implica a
privatização completa das atividades desenvolvidas ainda no âmbito da
administração estatal e a transformação dos serviços públicos em simples
mercadorias. Sob esse novo modelo, para a maioria da população tudo passaria a
ter seus preços, seus contratos e suas condições de acesso. Quem não possuir
saldo no cartão de crédito não se matricula na escola, não entra no hospital e
não se aposenta pelo INSS. Simples assim.
Mas a hipocrisia desses
chupadores de recursos públicos, travestidos de arautos do liberalismo, parece
não ter fim. Afinal, é de amplo conhecimento a natureza extremamente regressiva
de nossa estrutura tributária. Isso significa dizer que as camadas sociais da
base da pirâmide são as que mais recolhem impostos em relação ao seu nível de
renda e de patrimônio. Já as grandes corporações do capital e os setores
concentrados no topo da escala social são os que menos contribuem sob a forma
de obrigações tributárias. Pagam pouco, reclamam muito e sonegam a pleno vapor.
Foi por isso que se criou o
movimento de denúncia: o “sonegômetro”. A idéia era fazer o necessário
contraponto aos que reclamam sem razão, sempre sob o manto acolhedor das
entidades representativas do empresariado. E ali se percebe que o volume total
de impostos sonegados, desde o início do ano até o momento em que escrevo esse
artigo, é de R$ 506 bilhões. Um volume absurdo, típico de quem se esconde atrás
de nossa conhecida impunidade, com a colaboração tão bem remunerada de
especialistas em planejamento tributário e com a segurança de que haverá
sempre, no futuro, algum novo REFIS. Ou seja, um plano do governo para perdoar
esse crime de sonegação e parcelar o valor devido em suaves 180 prestações
mensais sem juros.
Quem paga o pato é o povo.
Por outro lado, a própria Receita
Federal divulgou uma lista com o histórico dos maiores sonegadores do País, que
não estão contabilizados nos bilhões acima mencionados. No caso, são dívidas
reconhecidas pela União e que se encontram em diversos estágios de cobrança. Os
500 maiores devedores acumulam um valor não pago de R$ 400 bilhões junto ao
governo federal. A Vale deve R$ 41 bi, o grupo Parmalat deve R$ 25 bi, a
Petrobrás deve R$ 16 bi e por aí vai.
E agora ainda vem o Presidente da
FIESP, Paulo Skaf, com essa estória do seu patinho amarelinho, muito bonitinho,
todo charmosinho. Mas ele sabe muito bem a verdade a respeito de sua fábula
mentirosa: quem paga realmente o pato da nossa desigualdade e quem arca com os
custos do ajuste conservador são os trabalhadores e a maioria da população
excluída de nossa terra. As elites, em nosso País, pagam muito pouco imposto e
são responsáveis pela enormidade escandalosa da sonegação.
A direção da entidade, cuja sede
ocupa um belo edifício na emblemática Avenida Paulista, apenas tenta jogar uma
cortina de fumaça em sua estratégia de manter os privilégios obtidos junto a
esse mesmo Estado, que tanto diz combater. Os dirigentes da entidade e os
representantes do empresariado não medem esforços para manter seus ganhos e
seus privilégios, atuando por meio de poderoso “lobby” junto aos corredores do
poder.
O pato da FIESP pressiona contra
a extinção do amplo leque de desonerações tributárias a favor do capital. O
pato da FIESP atua pela ampliação da generosa política de crédito subsidiado,
por meio da carteira do BNDES a juros reduzidos para as grandes empresas. O
pato da FIESP coordena as ações para obtenção de benefícios públicos de toda a
ordem, inclusive rompendo os limites da ética e da legalidade, como foi
amplamente denunciado pelas diversas ações da Polícia Federal e do Ministério
Público.
A FIESP berra, chia e bate o
bumbo. Mas quem paga o verdadeiro pato é o povo, como sempre.
* Paulo Kliass é doutor em
Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: Fiesp
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