A ousadia de uma cidade


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Desde pequena, sempre quis conhecer Brasília. Nasci lá e nunca mais tinha voltado, de forma que sempre alimentei uma curiosidade grande. Fui há uns dois anos, pela primeira vez. Não me senti bem, tive aquela sensação que acho que todos que já foram para Brasília experimentaram na primeira visita. Fiquei pouco tempo nessa e na vez seguinte e não rolou nada de turismo. Voltei há duas semanas para dez dias de trabalho, quase como viver a vida de quem mora lá.
Já estava cheia de vontade de escrever sobre a loucura que é aquela cidade quando soube, dentro do Museu Nacional, da morte de Oscar Niemeyer. Não pretendo aqui tecer teorias sobre a sua obra. Não só não tenho conhecimento para isso como todo o mundo ao redor já o fez. Mas é fato que tudo toma agora outra dimensão.
Vamos, pois, a Brasília.

Eu diria, sem muito medo de falar besteira, que a palavra que mais resume a cidade é ousadia. Por todos os lados, Brasília é fruto de uma coragem absurda de fazer algo totalmente novo, diferente de tudo. Para começar, a quase insanidade dos 50 anos em cinco do Juscelino Kubitschek, que partiu completamente do zero para a construção de uma cidade inteira no meio do nada, nos apenas cinco anos de seu mandato. Isso significa enfrentar toda a burocracia que envolve tudo o que é público no Brasil para abrir concurso, aprovar projeto, licitação, obra…
Depois, vem Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Por qualquer ângulo que se olhe, Brasília é ousada, diferente, pretensiosa. Impossível se perder no Plano Piloto, graças a sua lógica urbanística. Não tem como um taxista não saber um endereço, é só saber em qual setor (hoteleiro, comercial, de indústrias gráficas, de embaixadas…) fica e, sendo nas superquadras, contar os números, crescentes à medida em que se aproximam do final das “asas”, e identificar se é lado par ou impar, ou seja, leste ou oeste. Isso, claro, sempre agregando um “norte” ou “sul” no final do endereço. Cada asa fica em um desses pontos cardeais e sua estrutura é praticamente simétrica.
Em dez dias, no entanto, não deu, pelo menos para mim, para apontar sem pensar muito onde estava o norte, o leste e seus opostos, embora eles sejam tão marcados no urbanismo da cidade. Não deu para me localizar nas superquadras, que pareciam todas iguais. Isso me incomodou um pouco, confesso, parecia falta de personalidade. Mas mais entendidos garantem que não tem nenhuma quadra igual a outra, todas têm seu toque que as diferencia, que as torna únicas.
Acontece que Brasília é uma cidade tombada, toda ela. É patrimônio da humanidade, o que a resguarda ao mesmo tempo que lhe impõe limitações. O planejamento urbanístico-arquitetônico deve ser mantido a cada nova construção, preservando a altura máxima, diferente para cada quadra e nunca, em setor algum, maior que os prédios do Congresso Nacional, e o padrão de pilotis, por exemplo, que marca a maioria dos prédios e que dá a sensação de amplidão, de horizonte sem fim.
Sensação realmente impressionante, aliás, que faz com que o céu de Brasília seja uma atração à parte. Enorme!

E aí vêm os prédios de Niemeyer. Impactantes, imponentes e simples. Voltados à função, mas também à forma. E valorizar a forma, a beleza, no caso, não é coisa de arquiteto mimado e elitista. Pelo contrário, é justamente a possibilidade de traduzir na forma o significado, de dizer o que é aquele prédio e o que ele pretende ser. E a possibilidade de levar a beleza a tod@s. Autor dos prédios, Niemeyer dizia:
“Quando me pedem um prédio público, por exemplo, eu procuro fazer bonito, diferente, que crie surpresa. Porque eu sei que os mais pobres não vão usufruir nada. Mas eles podem parar, ter um momento assim de prazer, de surpresa, ver uma coisa nova. É o lado assim que a arquitetura pode ser útil. O resto, quando ela tiver um programa humano, social, aí ela vai cumprir seu destino.”
Brasília foi planejada para ser apenas o Plano Piloto, a Região Administrativa de Brasília, que hoje tem 277 mil habitantes. O censo de 2010, no entanto, registrou 2,5 milhões de habitantes.
Sempre ouvi que não dá para morar em Brasília sem ter carro, o que me deixava contrariada com a ideia de um planejamento feito por dois humanistas não prever a convivência nos espaços públicos. De fato, a vida fica bem difícil sem o tal automóvel, mas cheguei à conclusão de que muitos dos problemas de deslocamento enfrentados pelos brasilienses são muito mais problemas de gestão do que de planejamento. Ok, caminhar em Brasília pode não parecer muito agradável, por causa das grandes vias expressas presentes em todo o plano. Mas para isso o projeto previu as superquadras, que seriam minicentros, onde se poderia encontrar o comércio necessário para o dia-a-dia sem se locomover a uma região central da cidade, como em geral acontece com as cidades do mundo. As superquadras reuniriam residências e serviços, e ali circularia gente. Ainda que não se possa encontrar tudo em uma superquadra, de fato ali as pessoas caminham, se encontra vida.
Mas deslocar-se não é mesmo fácil. As vias expressas que falei ali em cima cortam asa sul e norte e elas não são simpáticas ao pedestre. Mas, convivendo um pouco com Brasília, percebe-se que muitos dos seus problemas não são de planejamento, mas de gestão. No transporte, isso fica evidente. Para começar, os ônibus são velhos. Quando digo velhos, refiro-me a caquéticos, horríveis, coisa que em Porto Alegre se via uns 20 anos atrás, ou quase. Depois que se está dentro de um ônibus – ou das tais zebrinhas, ainda mais caquéticas -, o deslocamento é extremamente rápido, o trânsito flui e tudo fica perto. Mas caminhar é difícil e esperar um ônibus sabe ser uma tortura. Eu mesma esperei por 40 minutos, sendo que fiquei lá só dez dias e ganhei muita carona. Mas melhorar a qualidade do transporte público é nitidamente possível, mas precisa de investimento. Tenho certeza que melhoraria muito a qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs de Brasília.
Enfim, Brasília é uma cidade estranha, que em geral causa amores e ódios, ou melhor, ódios depois amores, de quem se muda para lá. Não sei se teria vontade de transferir minha vida para Brasília, porque se tem uma palavra que não a define é acolhedora. Mas Brasília fascina pela sua imponência, pela beleza de seus prédios, pelo inusitado de seu urbanismo. Por tudo que a torna um lugar absolutamente único no mundo.
Fotos (incríveis): Vinicius Carvalho

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