Jorge Hage:”Precisamos de uma lei de
responsabilização civil administrativa dos corruptores”. Foto: Antonio
Cruz/ABr
Há dez anos na Controladoria Geral da
União (CGU), primeiro como secretário-executivo e desde 2006 como chefe do
órgão fiscalizador do uso de recursos públicos federais, o baiano Jorge Hage
Sobrinho desenvolveu uma visão privilegiada do sistema político brasileiro que
lhe dá certeza: o poder econômico tem muita e má influência. O peso quase
absoluto das doações feitas por empresas para campanhas, diz o ministro,
deforma a democracia. Leva a classe política a trabalhar para os financiadores,
não para os eleitores, e com isso gera o grosso da corrupção.
A crua avaliação ajuda a entender por
que o Congresso resiste a votar uma reforma política que proíbe doações
empresariais para campanhas e as substituiria por dinheiro reservado nos cofres
públicos para uma espécie de investimento na democracia. Também explica por que
esse mesmo Congresso faz corpo mole há três anos diante de uma lei que expõe a
constrangimentos e punições aquelas empresas que forem pegas comprando
funcionários públicos.
A aprovação de uma lei contra
corruptores foi um compromisso assumido em 2000 pelo Brasil perante a
Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 1997, a
OCDE firmara uma convenção, ratificada por 39 países, que buscava conter a
prática de suborno por parte de empresas. O alvo eram as multinacionais que
pagavam propinas fora do país da matriz, mas o acordo estimulou a adoção de
legislações com enfoque doméstico.
É o caso da proposta no Congresso
brasileiro. Pelo projeto, uma empresa corruptora poderia ser punida pelo
governo sem necessidade de julgamento na Justiça, com penas como multa com base
no faturamento, expiação da culpa em praça pública via publicidade do nome do
corruptor e veto à presença em licitações, por exemplo. “Essa lei permite
atingir o patrimônio da empresa e recuperar o dinheiro para os cofres públicos,
que é realmente o que faz diferença, o que realmente tem capacidade de inibir a
corrupção”, diz Hage.
A seguir, a entrevista concedida pelo
ministro a CartaCapital na terça-feira 9, Dia Internacional de
Combate à Corrupção.
CartaCapital: Existe
influência excessiva do poder econômico na política brasileira?
Jorge Hage: Não tenho
nenhuma dúvida. E será assim enquanto tivermos o financiamento empresarial das
campanhas e dos partidos. Não digo nem financiamento privado, porque se fosse
um financiamento privado amplamente pulverizado entre pessoas físicas, ainda
seria algo palatável, mais compatível com um sistema realmente democrático. Mas
como é um financiamento essencialmente empresarial, com grandes doações de
grandes grupos, a incompatibilidade com o sistema democrático para mim é algo
óbvio. Deixei a política eleitoral por isso. Cheguei à conclusão de que é
inviável [disputar eleições] para quem não pretenda aderir a este
financiamento. Desde que vim para a CGU trabalhar no combate à corrupção, a
cada dia me convenço mais de que o financiamento empresarial está na raiz mais
profunda da corrupção. Mas é muito difícil a proposta do financiamento público
lograr êxito.
CC: A corrupção é a
principal conseqüência do financiamento privado?
JH: Não é apenas em
corrupção que se reverte a má influência do poder econômico, é também através
do lobby. Pode implicar muitas vezes uma influência direta de segmentos
econômicos nas decisões públicas. Talvez não seja justo rotular isso como
corrupção, mas na minha opinião é uma influência ilegítima. Veja um exemplo nos
Estados Unidos. Há uma dificuldade enorme de aprovar medidas de desarmamento
mesmo diante da matança por loucos que saem metralhando. Boa parte da população
pede o controle da venda de armas, mas o governo não consegue aprovar devido ao
lobby da indústria armamentista.
CC: Quer dizer, mesmo
que não haja irregularidade, o sistema está montado em cima de uma estrutura
que não é a melhor do ponto de vista da democracia.
JH: Com certeza.
Até onde é possível você chegar a ter sistemas democráticos isentos dessas
influências é a grande questão posta no mundo inteiro. É imperioso buscar
caminhos de reduzir as influências não democráticas, que não correspondem ao
ideal “um homem, um voto”. Temos de continuar nos esforçando para aprimorar o
sistema democrático.
CC: O senhor diria
que a dimensão da corrupção ativa fica escanteada no debate público também por
isso, porque nela está a digital dos financiadores de campanha?
JH: Sem dúvida. É
muito difícil aprimorar a legislação mas também é difícil aplicar mecanismos
que já existem. Aqui na CGU partimos de uma tradição e uma cultura que
dificilmente aplicavam punições. E as que eram aplicadas, voltavam-se quase que
exclusivamente para dentro do balcão, para o lado passivo.
Para punir o lado ativo, o lado da
oferta da corrupção, nós começamos do zero. E temos instrumentos muito parcos
disponíveis na legislação, só a declaração de inidoneidade de empresa
corruptora, o que a impede de participar de licitações, e a suspensão
temporária dela. Outras penas, como multas contratuais, são ridículas, não têm
poder de inibir a corrupção.
Nós precisamos de uma lei de
responsabilização civil e administrativa dos corruptores. Ela vai permitir a
punição do corruptor baseada na responsabilidade objetiva da empresa,
independentemente da prova da culpa de um diretor, um preposto. Ela eliminaria
por exemplo as discussões que existiram no caso Delta [empreiteira alvo da CPI
do Cachoeira]: “Ah, foi um ato de um diretor regional, ele não estava
autorizado pela direção nacional”. A responsabilidade objetiva implica
responsabilizar a empresa independentemente de quem praticou o ato e se houve
dolo.
CC: Essa lei está
parada no Congresso há três anos. A não votação dela é resultado da influência
do poder econômico?
JH: Claro. Temos um
relator [deputado Carlos Zarattini, do PT de São Paulo] comprometido com o
projeto, mas ele encontra enormes resistências de determinados setores das
bancadas, não preciso nominar quais são. Já houve sucessivas negociações,
cedemos os anéis para não ceder os dedos, abrimos mão de inúmeros dispositivos
que considerávamos importantes porque é mais importante ainda o Brasil ter essa
lei.
O Brasil vai ficar numa situação muito
constrangedora agora em novembro, que é o prazo da nova avaliação pela OCDE. O
Brasil é signatário de uma convenção da OCDE contra o suborno nacional e
transnacional e se comprometeu a adotar essa lei. A grande maioria dos países
já têm essas leis, e há muito tempo. Não estou falando só de EUA, Inglaterra,
França, países como Grécia, Itália e tantos outros também têm. Hoje o que se
discute na OCDE é quantas condenações um país já tem graças à lei, quantos
processos estão tramitando. No caso do Brasil, nem a lei nós temos. Estamos há
quilômetros de atraso. Já passamos situações desagradáveis na OCDE por causa
disso e em novembro passaremos de novo.
CC: Uma comissão de
juristas que auxiliou o Senado no debate sobre a atualização do Código Penal
propôs no ano passado a punição penal das empresas corruptoras. Concorda?
JH: Acho
inadequado, não é da tradição do sistema jurídico brasileiro aplicar a
responsabilização penal a pessoas jurídicas, temos alguns exemplos disso mas
com pouco êxito na lei de crimes ambientais. O que interessa é alcançar o
patrimônio da empresa ou impedi-la de funcionar. A legislação penal não é a
mais adequada para isso. É perda de tempo.
CC: Da sua posição de
fiscal do Executivo, quem o senhor diria que é mais responsável por tomar a
iniciativa da corrupção: o corruptor ou o corrompido?
JH: O lado da oferta,
não tenho dúvida.
CC: E no entanto a
sociedade não discute isso.
JH: Sou ministro há
vários anos e a única vez que fui ao Congresso discutir o lado do corruptor foi
quando participei [em outubro de 2011] de uma audiência pública sobre esse
projeto da responsabilização da pessoa jurídica.
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