Osvaldo
Bertolino*
Os corruptos verdadeiros, os que não aparecem na mídia corrupta
como tal, normalmente são pessoas que entregam seu dinheiro apenas para
instituições bancárias muito bem enfronhadas nas malandragens do mundo
financeiro. Se não fosse assim, já teriam perdido tudo ou grande parte do que
possuem.
Os departamentos de private banking das mais conhecidas
instituições financeiras do Brasil recrutam profissionais com a tarefa
exclusiva de atender a esse seleto público — essa categoria de pessoas, os
chamados high net worth clients (HNWC), só aceita conselhos de consultores que
consideram do seu próprio nível. No extrato mais rico da população estão
indivíduos acostumados a obter as melhores informações em relação às diversas
formas de investir na ciranda financeira.
Muitas vezes eles conhecem os mercados financeiros tão bem quanto
os próprios consultores. Utilizam cada vez mais freqüentemente a Internet.
Sabem o que se passa no mundo financeiro — lêem revistas como Business Week,
The Economist, Forbe e Fortune. E são mestres na arte da sonegação de impostos.
A universalização da malandragem nessa área mostra uma outra face perversa do
Brasil.
Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a
quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%. Quando o ex-
secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, depôs na CPI dos Bancos, ele
revelou números estarrecedores. Das 530 maiores empresas do país, metade não
paga Imposto de Renda (IR).
O mesmo ocorre com os bancos. Das 66 maiores instituições financeiras,
42% não recolhem IR. A Receita tinha, na ocasião, R$ 115 bilhões a receber em
impostos devidos pelas empresas que não foram pagos por causa do que Maciel
chamou de “indústria de liminares”. No sistema financeiro, 34% dos débitos
reconhecidos com a Receita estavam com o pagamento suspenso por causa de
liminares.
Em 1999, as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 12 bilhões em
impostos nos últimos cinco anos decorridos até ali, dos quais R$ 3,5 bilhões
seriam devidos pelos bancos. O motivo: a Lei 8200, de 1991, permitiu a correção
monetária das despesas nos balanços, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa
parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de
brasileiros.
O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna ao país sob a
forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação
do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras
registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz
para poder remeter os juros às matrizes sem pagar IR.
Sonegar virou uma vantagem “competitiva” no Brasil. As empresas
que atuam na legalidade são obrigadas a enfrentar concorrentes que, por não
pagarem ou pagarem muito pouco imposto, podem praticar preços mais baixos e se
beneficiar de margens de lucros mais elevadas. O assunto já rendeu até uma CPI,
promovida pelo Senado em 1994.
Uma pesquisa da Receita Federal na ocasião, feita com 214 mil
empresas de todos os ramos de atividade, revelou que no setor de alimentos 98% do
IPI devido não eram recolhidos pelas empresas. Em seguida vinham setores como
químico (59%), têxtil (54%) e metalúrgico (51%). Essa evasão, segundo os
técnicos da Receita, tem como causas a sonegação pura e simples e a
inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga).
Há ainda a chamada elisão fiscal. Por esse nome está enquadrada
toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos. Durante muito
tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar
arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado.
Outro ex-secretário da Receita, o combativo Osíris Lopes Filho,
também revela números estarrecedores. Ele estudou a concentração de imposto no
Brasil e chegou à conclusão de que os 150 maiores contribuintes pagam 50% de
todo o imposto de renda da pessoa jurídica; e 70 empresas recolhem a metade do
IPI. “O grau de concentração não reflete a realidade da geração de renda
nacional”, disse Lopes Filho.
O afunilamento se mantém em relação aos tributos cobrados pelos Estados.
Em São Paulo, que recolhe US$ 16 bilhões por ano em impostos, 50 grandes
contribuintes comparecem com 30% do ICMS. Abrindo um pouco mais o leque,
verifica-se que os 1 600 maiores entram com três quintos. Em contrapartida, 344
mil empresas contribuem com apenas 15% do arrecadado.
Diante desse quadro, não é difícil imaginar quem se beneficia da
universalização da malandragem e quem paga por isso. A transformação do Fisco
num instrumento de defesa de quem cumpre com suas obrigações e, por isso mesmo,
tem o direito de exigir que as regras do jogo sejam iguais para todos, passa
também pelo seu reaparelhamento.
Sua máquina sofreu estragos consideráveis durante a “era FHC”.
Para se ter uma ideia, em 1969, quando o o Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro era de US$ 160 bilhões, o órgão contava com 12 mil fiscais, segundo
a CPI da Evasão. Atualmente, são cerca de 8 mil. Uma máquina mais azeitada e um
sistema tributário mais equitativo são as pedras fundamentais para o
encaminhamento da questão fiscal no Brasil. Mas as dificuldades são de toda
ordem, sobretudo políticas.
Ela exige, também, uma descomplicação e agilização nos processos
de cobrança dos sonegadores — os depósitos judiciais chegam atualmente a US$ 17
bilhões. Pendências de 5 e até 10 anos são corriqueiras. Que ninguém se iluda:
a noção de que pagar impostos é uma obrigação de todo mundo e não apenas de um
punhado terá de ser arrancada a fórceps.
No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar
impostos? Mas esses sonegadores falam pelos cotovelos, publicam lixos como a
revista Veja e o jornal Folha de S. Paulo, promovem passeatas pela “paz”
pedindo “mais segurança” e pregam sistematicamente contra o governo.
São elas também que atribuem a existência do Primeiro Comando da
Capital (PCC) à “frouxidão” das autoridades e pregam uma dura política
repressiva como prova visível de que o crime não compensa. Para essas pessoas,
a solução seria colocar a polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo,
implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte.
*Osvaldo Bertolino é jornalista e editor do Portal da Fundação
Grabois.

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